Peter Ghosh
Fonte: Nexo
Tradução: Camilo Rocha
Data original da publicação: 17/06/2018
O famoso texto de Max Weber “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (1905) é certamente um dos mais mal-compreendidos trabalhos canônicos que é regularmente ensinado, mutilado e reverenciado em universidades mundo afora. Não quero dizer com isso que professores e estudantes são burros, mas que se trata de um texto excepcionalmente compacto que cobre um assunto muito amplo, escrito por um intelectual completo em sua melhor forma. Ele ficaria perplexo de saber que seu texto estava sendo usado como introdução elementar à sociologia para estudantes universitários ou mesmo crianças em idade escolar.
Usamos a palavra “capitalismo” hoje como se o significado fosse evidente, ou como se viesse de Marx, mas esse descaso precisa ser deixado de lado. “Capitalismo” era uma palavra própria de Weber e ele a definiu do modo como achou mais adequado. Seu significado mais geral era simplesmente a modernidade em si: capitalismo era “o poder mais fatídico de nossa vida moderna”. Mais especificamente, ela controlava e gerava a “Kultur moderna”, o código de valores pelos quais as pessoas viviam no Ocidente no século 20, e hoje vivem, podemos acrescentar, em boa parte do mundo do século 21. Então, o “espírito” do capitalismo é também uma “ética”, apesar de que, sem dúvida, o título teria soado um pouco sem graça se tivesse se chamado “A ética protestante e a ética do capitalismo”.
Essa “ética” moderna ou código de valores não se parecia com nada do que havia antes. Weber supôs que todas as éticas anteriores – isto é, códigos socialmente aceitos de comportamento em vez das proposições mais abstratas feitas por teólogos e filósofos – eram religiosas. As religiões forneciam mensagens claras sobre como se comportar em sociedade em termos humanos diretos, mensagens que eram tomadas como princípios da moral compartilhados por todas as pessoas. No Ocidente, isso significava o cristianismo. Sua prescrição social e ética mais importante veio da Bíblia: “Ame ao próximo…”. Weber não era contra o amor, mas sua ideia de amor era privada – um reino de intimidade e sexualidade. Enquanto guia de comportamento social em locais públicos, “ame ao próximo” era obviamente bobagem, e esse era um motivo importante pelo qual os pedidos das igrejas de falar à sociedade moderna em termos autenticamente religiosos eram marginais. Ele não teria se surpreendido com a longa temporada desfrutada pelo slogan “Deus é amor” no Ocidente no século 20 – sua carreira já estava lançada nos seus dias –, nem que suas consequências sociais pudessem ser tão limitadas.
A ética ou código que dominavam a vida pública no mundo moderno era muito diferente. Acima de tudo, era impessoal em vez de pessoal: na época de Weber, o consenso sobre o que era certo e errado para o indivíduo estava entrando em colapso. As verdades da religião – a base da ética – eram agora contestadas, e outras normas tradicionais – tais como aquelas pertinentes à sexualidade, casamento e beleza – também estavam entrando em colapso (Aqui vai uma lembrança do passado: quem hoje pensaria em sustentar uma ideia unificadora de beleza?). Valores eram cada vez mais propriedade do indivíduo, não da sociedade. Então, em vez de caloroso contato humano, baseado em um entendimento compartilhado e intuitivamente óbvio de certo e errado, o comportamento público era frio, reservado, duro e sóbrio, governado por autocontrole pessoal estrito. O comportamento correto estava na observância dos procedimentos corretos. Mais obviamente, seguia a letra da lei (pois quem poderia dizer qual era o seu espírito?) e era racional. Era lógico, consistente e coerente: ou senão obedecia as realidades modernas inquestionáveis tais como o poder dos números, das forças do mercado e da tecnologia.
Havia outro tipo de desintegração além daquela da ética tradicional. A proliferação de sabedoria e de reflexão sobre a sabedoria tornou impossível para qualquer pessoa saber e conseguir observar tudo. Em um mundo que não podia ser capturado como um todo, e onde não haviam valores universalmente compartilháveis, a maior parte das pessoas se agarrava ao nicho particular ao qual estavam mais comprometidas: seu emprego ou profissão. Elas tratavam seu trabalho como sendo um chamado pós-religioso, “um absoluto fim em si mesmo”, e, se a “ética” ou “espírito” moderno tinham uma fundação maior, aqui estava ela. Um dos clichês mais populares sobre o pensamento de Weber é dizer que ele pregava uma ética do trabalho. Isso é um erro. Pessoalmente, ele não via nenhuma virtude particular no suor – achava que suas melhores ideias apareciam quando estava relaxando no sofá com um charuto – e se tivesse sabido que seria mal-entendido dessa maneira, teria ressaltado que ser capaz de trabalhar duro era algo que não distinguia o Ocidente moderno de sociedades anteriores e seus sistemas de valores. Entretanto, a ideia de que as pessoas estavam sendo cada vez mais definidas pelo estreito foco do seu emprego era uma que ele considerava profundamente moderna e característica.
A ética profissional míope era comum a empreendedores e uma força de trabalho crescentemente mais capacitada e com salários cada vez melhores. Foi essa combinação que produziu uma situação em que o “bem maior” era ganhar dinheiro e cada vez mais dinheiro, sem nenhum limite. É isso que é mais prontamente reconhecível como o “espírito” do capitalismo, mas deve-se ressaltar que não era uma simples ética de ganância que, como Weber reconheceu, era antiga e eterna. Na verdade, há dois conjuntos de ideias aqui, ainda que sobrepostos. Existe uma sobre procedimentos racionais potencialmente universais – especialização, lógica, e comportamento formalmente consistente – e outra mais próxima à economia moderna, do qual a ética profissional é parte central. A situação moderna foi o produto da adesão mesquinha à função particular de cada um sob um conjunto de condições em que a tentativa de entender a modernidade como um todo foi abandonada pela maior parte das pessoas. Como resultado, elas não estavam em controle de seu próprio destino, mas eram governadas por um conjunto de procedimentos racionais e impessoais que ele comparou com uma gaiola de ferro, ou “moradia de aço”. Dadas as suas fundações racionais e impessoais, a moradia ficou muito aquém de qualquer ideal humano de calor, espontaneidade ou amplitude de perspectiva; entretanto, racionalidade, tecnologia e legalidade também produziram bens materiais para consumo de massa de maneiras inéditas. Por essa razão, embora pudessem, as pessoas provavelmente não deixariam a moradia “até que o último centésimo de combustível fóssil fosse queimado”.
A análise é extremamente poderosa, o que nos diz bastante sobre o Ocidente no século 20 e um conjunto de ideias e prioridades ocidentais que o resto do mundo tem tido cada vez mais satisfação em adotar desde 1945. Deriva seu poder não apenas do que diz, mas porque Weber procurou colocar entendimento antes de julgamento, e de ver o mundo como um todo. Se você deseja ir além dele, deve fazer o mesmo.
Peter Ghosh é professor associado de História e bolsista Jean Duffield de História Moderna no St. Anne’s College, na Universidade de Oxford. Ele é o autor de “Max Weber in Context: Essays in the History of German Ideas C. 1870-1930” (“Max Weber em contexto: Ensaios sobre a História das ideias alemãs”, em tradução livre)