O que faz um bolsista de pós-graduação?

Eliseu Raphael Venturi

Fonte: GGN
Data original da publicação: 06/08/2018

Diante da recente questão da possibilidade concreta do corte de bolsas no país e o consequente aumento da visibilidade da pesquisa nacional, emergiram também raciocínios distorcidos sobre a realidade dos bolsistas e que, ademais, permitem a produção de políticas de retrocesso em direitos sociais à educação, ciência, tecnologia, cultura e desenvolvimento.

Com a desconsideração, por vários indivíduos e partidos, do Estado Social como dimensão integrante do Estado de Democrático e Social de Direito construído pela Constituição de 1988, e na esteira da criminalização e estigmatização da Universidade e mesmo da educação, parece necessário pensar um pouco pragmaticamente, ainda que de modo superficial, sobre as atividades básicas de um bolsista.

Para além de devaneios privatizantes, que só minarão o texto constitucional em sua normatividade legítima de inclusão e aumentarão o já abissal fosso da desigualdade, e a despeito de todas as mazelas do mundo acadêmico, algumas dimensões precisam ser consideradas.

Diante disso, este texto pretende apenas destacar alguns dos papeis que o bolsista realiza na sociedade capitalista (cuja contribuição acerca de outros está aberta nos comentários), e que são invisibilizados no plano do senso comum comentarista, entre outros.

Assim, demonstra-se a relação destes bolsistas com a sociedade e com os anseios desta sociedade, da produção e consumo, o que só evidencia a falácia dos radicalismos esquerda-direita, de modo que, por isso, não se enfocam as dimensões filosóficas, epistemológicas e críticas envolvida em tais atividades de pesquisa – dimensões que, de qualquer sorte, não parecem tão desconectadas assim das finalidades daquela mesma sociedade, mas que, realmente, seriam as mais interessantes de se debater, embora inoportunas ao momento.

CONSUMIDOR

O bolsista é um consumidor.

O valor das bolsas não parece ser factível para permitir tornar-se um investidor ou um especulador imobiliário – salvo uma excepcional habilidade empreendedora individual, talvez embasada também em algum direito hereditário oculto ou contrato cativo com um financiamento. Nem tampouco se tornar um poupador ou mesmo alguém que juntará o dinheiro da bolsa para garantir o futuro e a aposentadoria.

Nesse sentido, o bolsista não se diferencia muito do trabalhador precário ou do informal – embora, comparativamente em termos financeiros, talvez esteja menos pior – posto que o bolsista não tem nenhuma estabilidade e garantia perpétua dentro do lapso do curso. É um consumidor da sobrevivência.

No mundo neoliberal, 50% das obrigações existenciais estão cumpridas ao se forjar uma subjetividade enquanto “consumidor” – embora haja uma parcela da humanidade que realize 100% de sua vida nesse sentido sem receber maiores críticas, acaso viva um padrão de ostentação inspirador.

Em um mundo com um contingente imenso (aos milhões) de pessoas excluídas do sistema de produção da vida, pela simples incapacidade de serem consumidoras, é um dado relevante. Chegar ao “status” de consumidor, assim, já é um sucesso neoliberal.

Bolsistas, como qualquer outro animal “homo sapiens”, têm necessidades vitais (e culturais) a serem atendidas, pois são seres humanos: alimentação, transporte, vestimenta, compra de materiais de pesquisa, livros, higiene, saúde, lazer, moradia. Algo que se convencionou chamar custos dos “direitos”: individuais, políticos, civis, econômicos, sociais, culturais etc. É interessante pensar que mesmo uma bolsa integral de Pós-Doutorado é montante inferior ao auxílio moradia da Magistratura e outros benefícios de tantas outras carreiras de servidores e, nem se fale, das privadas.

No papel de consumidores, bolsistas auxiliam no desenvolvimento econômico, pois o consumidor é um dos elementos indispensáveis do fluxo da renda e da movimentação econômica. Parece complicado imaginar um mercado tradicional ordinário, de serviços e mercadorias, da ordem da sobrevivência, sem consumidores.

Assim, quando um bolsista – mesmo o mais marxista ou o mais liberal e estereotipado deles – compra um alimento, ou um livro, ou um cigarro, além de transferir renda à cadeia de fornecedores, também contribui com a tributação, com a manutenção de empregos, com a indústria, com o agronegócio, e presta homenagem a todos os ídolos da sociedade de consumo.

PRODUTOR

A outra obrigação neoliberal de um bolsista é a produtividade.

Bolsistas não são seres inertes sustentados por dinheiro público sem qualquer efeito social, nem, como dito, corpos mortos economicamente isolados. Fato é que há vários níveis e intensidades de produtividade: há quem nem faça o mínimo, há quem faça além das obrigações. Há quem seja sancionado e há quem escape. Não é assim em todas as profissões?

Aliás, ser bolsista é uma profissão, uma construção profissional, ou um hobby, um luxo, um deleite, um período de criogenia? (Já ouvi de muita gente educada que eu estaria suspendendo tempo de construção da carreira ao me dedicar à pós-graduação).

O compromisso produtivo imediato de um bolsista é com uma pesquisa. Há um resultado com o qual o bolsista se compromete. Parece a assunção de um compromisso suficiente: pesquisa exige tempo, cuidado, maturação, dedicação e preocupação constantes.

Como é um produto criativo, uma pesquisa segue as dinâmicas do processo criativo, que não têm hora nem lugar, embora devam se assentar num processo de estudo e informação que pode ser controlado em termos de disciplina de leitura, escrita, revisão crítica, reescrita, destruição e recriação.

Um processo de criação cercado de regras, que, por si, demandam outros estudos: normas técnicas, mapeamento dos estados de arte, levantamentos exaustivos, revisões exaustivas, destruição e reelaboração de rascunhos. Métodos, metodologias, controle, julgamento constante.

Todos assim o fazem? Bem, em um mundo em que nem os bem pagos defensores da Constituição o fazem a contento mínimo, parece haver margens de cumprimento de obrigações distintas na sociedade. Agências de fomento, bancas de avaliação e acompanhamento de bolsas, e mesmo o controle entre pares, têm a obrigação de realizar esta crítica e esta autocrítica.

A pesquisa que o bolsista-pesquisador assume, portanto, depende, em algum momento e conforme as especificidades do campo científico, da publicação. Isto é: a pesquisa se materializa em produtos: artigos, eventos, congressos, trabalhos de conclusão (monografias; dissertações; teses).

Produtos intelectuais que circulam em meios próprios e movimentam uma economia própria. Produtos que resultam de trabalho, tempo, esforço e foco. Produtos que movimentam a economia: materiais, transporte, alimentação, tudo se repete aqui.

Além deste compromisso primeiro e essencial com a pesquisa e tudo que nela se envolve, o bolsista participa das atividades da Universidade e do mundo acadêmico de um modo geral. Estas atividades, embora possam muitas vezes assumir uma dimensão e profundidade que poderiam levar até ao questionamento judicial de sua compatibilidade com as atividades-finalidade da bolsa, são cumpridas, há subordinação, há controle, há disciplina.

Este cumprimento se dá em razão de uma política de colaboração e de pragmatismo que dificilmente será contestada, o que se faz em nome de uma tradição firmada neste costume, pela simples percepção dos agentes sociais envolvidos no contexto acerca dos problemas estruturais e de pessoal nas Universidades. Há um sentido de responsabilidade social – termo bastante odiado por quem capitaliza até inspiração e expiração.

Assim, bolsistas auxiliam na editoração de periódicos científicos, o que envolve um longo processo de produção intelectual e de administração de pessoas e procedimentos, bem como na organização de eventos e demais atos de documentação e comprovação na burocracia da Administração Pública das Pós-Graduações. Por vezes, trabalhos bem detalhados e exaustivos.

Por incrível que pareça, o universo administrativo das Universidades Públicas não é o Paraíso idealizado por seus perseguidores e, ademais, demanda um esforço coletivo considerável em termos de trabalho para realização das atividades.

Estas atividades também são produções: são serviços e produtos, ainda que, para grande parcela da sociedade civil, sejam entendidos como divagação ou inutilidade. Muito embora, em alguns casos, possam ser assim mesmo avaliados. Novamente: quando tudo é pensado unicamente pela via da exceção, tudo é destrutível facilmente. Fato é que se produz.

Bolsistas estudam e cursam disciplinas. Alguns programas apresentam exigências elevadas de créditos obrigatórios, o que significa muitas horas de sala de aula, seminários, avaliação e redação de artigos. Bolsistas têm exigência de curso de créditos adicionais neste contexto. Isso significa se submeter a controles, a ser corrigido, a ser analisado.

Ou seja: há uma razão de ser do fomento da pesquisa, de se vedar a atividade remunerada concomitante (salvo docência). Quem já trabalhou e se dedicou ao mesmo tempo a uma pesquisa sabe o preço emocional e intelectual pago em termos de desgaste, estresse e desenvolvimento de patologias físicas e mentais em razão da estafa.

Parece pouco para quem valoriza nada o ser humano por detrás e por dentre das relações de trabalho – vide reformas trabalhista, previdenciária etc. Mas qualquer política pública com o mínimo de dignidade e juridicidade não pode ser tão obtusa assim e deve dimensionar a situação das pessoas (seja por um imperativo da dignidade, seja em decorrência da semântica dos direitos).

A sociedade do consumo, alucinada por hierarquia e autoritarismo, ama controle e disciplina, na mesma medida em que se apavora com a ideia de liberdade (muito embora goze as clandestinidades e heterotopias). O fetiche masoquista desta mesma sociedade do medo necessita da ideia de sofrimento do outro para considerar uma atividade relevante.

Pois bem, bolsistas sofrem assédio moral, assédio sexual, subjugação e humilhações, como qualquer outro trabalhador ou ser humano, vulnerável por condição humana. Encontram exclusão e discriminação no mercado de trabalho: “seu currículo é muito acadêmico”; “sua linguagem é muito rebuscada”; “por que você não pede emprego na ONU?”. Ao mesmo tempo, “com seu salário podemos contratar outros três”. Qualificação se tornou ponto negativo, motivo de chacota e diminuição sádica e ressentida.

Muitos bolsistas, ainda, voltam a morar com os pais ou não têm filhos no ápice da juventude e da vida adulta jovem, impõem-se sacrifícios de conforto e mobilidade, e isto não se faz por uma escolha, mas por uma imposição econômica envolvida na decisão pela pesquisa. Não se trata de vitimização, mas há um condicionamento contextual que não pode ser desconsiderado; há uma desproporção que não deveria ser tão naturalizada como o é.

A toda evidência, inúmeros outros direitos fundamentais se encontram periclitados no cenário nacional: desde direitos de propriedade até direitos de saúde, moradia, subsistência e sobrevivência. O cenário dramático, e mais, necropolítico, não é desconhecido.

Se é fato essa dimensão dos problemas, não é menos relevante o papel da pesquisa, ciência e tecnologia diante do enfrentamento destes mesmos problemas (exemplo maior é a regulamentação do potencial transformador da pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (Res. 510/2016 CNS), ou das biomédicas (Res. 466/2012 CNS)). Além desta urgência social, há o atendimento normativo constitucional, com um complexo de várias dimensões de direitos que são concorrentes, e não excludentes entre si: o apagamento de uns não justifica o esquecimento dos outros.

Um bolsista é um belo espécime de figura agradável em termos neoliberais: consome e produz. Porém, há interstícios. Talvez contenha um gérmen crítico que incomoda muita gente boa e de bem que coleciona viseiras. Uma ciência e tecnologia livres podem ser muito inoportunas, ao mesmo tempo em que, quando cativas, extremamente pertinentes.

O ódio pela ciência e filosofia com solidez epistêmica não é novo. O autoritarismo depende de ideologia, reificação, obtusidade; o mal depende de uma debilidade do pensar, ou, mais, de formas programadas de pensamento (pincemos a indústria cultural). Como bem ilustra uma atual propaganda política eleitoral: há um carro em que o GPS indica esquerda, direita e centro, como se houvesse estradas com vias únicas.

O que faz um bolsista de pós-graduação? Se não criar problemas, não há o que Temer. Porém, o que não é a ciência senão esta “maravilhosa incerteza” (D. V. Salomon), ou esta incrível arte humana de problematizar?

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

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