O que está errado com o capitalismo?

Um defeito central do capitalismo é sua tendência à crise – a sua tendência a canibalizar seus próprios pressupostos e, assim, a gerar periodicamente miséria galopante e em escala maciça.

Nancy Fraser

Fonte: A terra é redonda
Tradução: Eleutério F. S. Prado
Data original da publicação: 14/09/2021

* Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Lara Monticeli durante a reunião anual da rede de pesquisa “Alternatives to Capitalism”, realizada na New School for Social Research em 2019. Para ler a primeira parte, clique aqui.

O capítulo sobre as “críticas ao capitalismo” do livro Capitalismo em debate – uma conversa em teoria crítica (Boitempo), baseia-se em grande parte no trabalho de minha coautora, Rahel Jaeggi. Nos capítulos anteriores do livro (ou seja, “conceituando o capitalismo” e “historicizando o capitalismo”), discorri sobre o que é o capitalismo e como devemos entender sua história. Mas a próxima questão consiste nas perguntas: o que há de errado (se há algo errado nele) com o capitalismo? Como devemos criticá-lo?

Um defeito central do capitalismo é sua tendência à crise – a sua tendência a canibalizar seus próprios pressupostos e, assim, a gerar periodicamente miséria galopante e em escala maciça. Portanto, a “crítica” que visa revelar as contradições ou tendências de crise embutidas no sistema, é importante. A sua força consiste em mostrar que a miséria decorrente das crises não é acidental, mas o resultado necessário da dinâmica constitutiva do sistema. Nos últimos anos, no entanto, esse tipo de crítica tem sido censurada. Tem sido rejeitada, junto com o marxismo, sob a acusação de que seria “funcionalista”, isto é, tratar-se-ia ela de uma crítica econômico-reducionista e determinista.

Não nego que algumas formas de marxismo merecem esses rótulos, mas não joguemos fora o bebê com a água suja do banho. Os tempos que vivemos clamam por uma crítica às tendências de crise profundamente arraigadas do capitalismo, cujas atualizações são agora dolorosamente óbvias. Portanto, tentei reconstruir a crítica da crise de uma forma que não fosse vulnerável a essas objeções. Ao destacar as tendências de crise não econômicas (ecológica, social, política), evitei o reducionismo econômico. E ao enfatizar a abertura de períodos de interregno, quando a hegemonia se desfaz e, assim, a imaginação política e a liberdade de ação se expandem, evitei o determinismo.

Mas, como enfatiza Jaeggi, o capitalismo também pode ser criticado em bases normativas. Ao contrário de Marx, eu não hesitaria em usar o termo moralmente carregado de “injusto” para descrever esse sistema social. Eis que põe a existir múltiplas formas de dominação estrutural por meio das quais um grupo de pessoas floresce graças à opressão de outros. O relato marxista da dominação de classe, baseado na exploração dos trabalhadores assalariados (duplamente livres) por parte dos capitalistas, na esfera da produção, é certamente o caso.

A dominação de gênero está igualmente arraigada na sociedade capitalista. E o mesmo é verdade sobre a opressão racial e imperial quando se leva em conta a exploração e a expropriação. Essas injustiças são tão estruturais quanto a dominação de classe; nenhuma delas é secundária ou incidental. Em geral, então, sustento uma visão expandida do capitalismo como uma ordem social institucionalizada, a qual requer também uma crítica normativa expandida. São múltiplas as injustiças inerentes a esse sistema social.

Enfim, Jaeggi explora o potencial de uma crítica ética ao capitalismo. Esta espécie de crítica também é normativa, mas não mais porque se concentra nas injustiças inerentes ao capitalismo. O seu foco, ao contrário, é a “maldade” do sistema, o seu entrincheiramento na alienação e na reificação, que nos impedem de viver uma vida boa. Em outras palavras: o capitalismo é uma forma de vida ruim – não porque algumas pessoas estão roubando outras, nem porque alguns estão nadando em águas turvas e, assim, afundando, mas porque tudo isso atrapalha e bloqueia a nossa capacidade de viver bem.

Claro, é notoriamente difícil aclarar o que tudo isso significa – e fazê-lo de uma forma que não seja tendenciosa ou sectária, que não seja, por exemplo, eurocêntrica. Jaeggi acha que encontrou uma maneira boa de fazê-lo. Pessoalmente, não tenho tanta certeza, embora concorde que devemos tentar. Seria uma grande perda se fôssemos forçados a abandonar a crítica da sociedade capitalista como algo intrinsecamente alienante, aceitando passivamente tais modos de vida ruins.

A crítica a partir da ideia de “liberdade” é uma forma de se preocupar sem assumir uma visão concreta da vida boa. A ideia é que o capitalismo reforça necessariamente a heteronomia e impede a autonomia; trata-se de uma forma social inerentemente antidemocrática. As sociedades capitalistas removem uma vasta gama de questões fundamentais da tomada de decisão democrática coletiva. Elas deixam para o capital, ou melhor, para aqueles que possuem capital ou se dedicam à sua expansão ilimitada, a determinação da gramática básica de nossas vidas. Essa elite econômica decide o que vai ser produzido, quanto e por quem; em que base energética e por meio de quais tipos específicos de relações sociais.

Como resultado, determinam a forma das relações entre aqueles que trabalham na produção e entre eles e aqueles que não trabalham, incluindo os seus patrões, por um lado, e as suas famílias, por outro. Além disso, o investimento de capital dita as relações entre famílias, comunidades, regiões, estados e associações coletivas, bem como nossas relações com a natureza não humana e com as gerações futuras. Todas essas questões são retiradas da agenda e decididas às nossas costas. Ao pô-las nas mãos dos donos do capital e dos investidores, o capitalismo institucionaliza a heteronomia. E assim nega a todos os outros a capacidade coletiva de moldar as próprias vidas. Em geral, então, uma crítica baseada na liberdade direciona nossa atenção para a gramática da vida, incluindo essa “maldade” que temos sob o capitalismo. Mas, ela evita se envolver com a definição do que é bom e do que é ruim concretamente. Em vez disso, deixa isso para os cidadãos socialistas resolverem por si próprios.

A contestação do capitalismo

O último capítulo do livro mobiliza todo o trabalho conceitual anterior para analisar a conjuntura atual. O seu objetivo prático é revelar as potencialidades de nossa situação para buscar uma transformação social emancipatória. Portanto, trata-se de uma teorização crítica semelhante àquela do jovem Marx, qual seja, um esforço de “auto-clarificação das lutas e desejos da época”. A tarefa é, em parte, diagnosticar as contradições e as dificuldades, mas também identificar as forças sociais que podem se aglutinar em torno de um projeto contra-hegemônico que poderia superá-lasO capítulo examina as várias lutas sociais que nos cercam, tendo esse objetivo em mente.

Esse interesse sobre a questão de um sujeito emancipatório norteia o meu pensamento. Para mim, por essa questão é a melhor forma de atrair participantes em potencial para a constituição de um bloco contra-hegemônico, uma força que possa emergir tendo por fim um projeto emancipatório. Tudo o que eu disse até este ponto implica que o projeto deve ser anticapitalista – em um sentido expandido.

Pois as lutas por cuidado, pela natureza, raça e política são tão profundamente enraizadas na sociabilidade capitalista quanto as lutas contra a exploração na esfera da produção. Para mim, um bloco anticapitalista deve articular as preocupações de feministas, ambientalistas, antirracistas, anti-imperialistas e democratas radicais, uns com os outros e com os movimentos trabalhistas. Mas isso ainda deixa em aberto a questão de como interpelar os atores relevantes. Que tipo de abordagem subjetiva seria melhor para convidá-los a abraçar esse entendimento da mudança e a lutar juntos pelo projeto que vai torná-la uma nova realidade?

Parece-me que existem duas possibilidades. A primeira evita a ideia de um único agente de emancipação. No lugar de um sujeito abrangente que simplesmente inclui os vários constituintes do bloco, ele prevê uma aliança de múltiplos agentes cujas preocupações primárias diferem, mas estão enraizadas, no entanto, em um mesmo sistema social, que nenhum deles pode mudar por conta própria. O que os une não é uma posição de sujeito comum, mas uma compreensão compartilhada da sociedade capitalista como a fonte profunda dos vários problemas e do inimigo comum. Esse diagnóstico sustenta a solidariedade e motiva a cooperação.

Essa visão tem algumas vantagens óbvias. Não só está em sincronia com as suspeitas esquerdistas generalizadas do “leninismo”, mas é relativamente pouco exigente e não chega a ser ameaçadora: não requer que os atores sociais alterem suas identidades políticas existentes, mas apenas os seus diagnósticos cognitivos. Eu me pergunto, no entanto, se essa confiança na “cola” cognitiva em oposição à “cola” afetiva também não seria uma fraqueza. Tal objetivo seria forte o suficiente para manter o bloco unido? Em especial, se se considera a inevitabilidade dos estratagemas inerentes ao capitalismo que visam protegê-lo por meio de uma mistura inteligente de incentivos atraentes e porretes repressivos?

Uma segunda possibilidade poderia proporcionar uma “cola” mais forte, mas ela seria mais difícil de vender. A ideia aqui consiste em abordar o mesmo conjunto de forças sociais que acabamos de identificar, mas de uma forma um pouco mais unificada: como constituintes de uma classe trabalhadora expandida, ainda que com partes posicionadas de forma diferente na estrutura social. Essa ideia decorre, também, da visão expandida do capitalismo, que revela a dependência estrutural do capital no trabalho social-reprodutivo e expropriado, bem como no trabalho explorado.

Se a acumulação requer todos os três tipos de trabalho, então todos os três tipos de “trabalhadores” constituem a classe trabalhadora do capitalismo. Ora, isso inclui também o grande número de pessoas que realizam trabalhos que se encaixam em mais de um desses três tipos. Vista desta forma, a classe trabalhadora torna-se generalizada de modo constitutivo, bem como inerentemente global; ademais, ela se encontra discriminada como se fosse uma “raça inferior”. Ao contrário das visões padrão, que focam os homens de etnia majoritária e que trabalham em fábricas, minas e construção, a classe trabalhadora expandida também inclui pessoas de cor, mulheres e migrantes; donas de casa, camponeses e trabalhadores em serviços; aqueles que recebem um salário e aqueles que nada ganham.

A vantagem aqui consiste em ter um sujeito político que pode plausivelmente reivindicar estar constituído como unidade e generalidade, enquanto permanece internamente diferenciado e capaz de acomodar especificidades. O efeito dessa “cola” seria o fortalecimento da coesão solidária formadora de um bloco contra-hegemônico anticapitalista. Mas essa abordagem é consideravelmente mais exigente – ela requer um salto cognitivo-afetivo além da autocompreensão atual de muitas pessoas. Talvez a forte atuação de Bernie Sanders em duas campanhas presidenciais dos Estados Unidos tenha mostrado que esse salto não é impossível, pelo menos em condições relativamente favoráveis.

Mas, é claro, não há como prever se qualquer um desses dois cenários se afirmará no curso da história, supondo que isso de fato venha a ocorrer.

Movimentos sociais

Começo observando que as intervenções recentes dos movimentos sociais, tanto progressivas quanto regressivas, estão se desdobrando em um vácuo hegemônico. Portanto, o campo político está incrivelmente confuso. Antonio Gramsci expressou bem essa situação: “o velho está morrendo, mas o novo não pode nascer. No interregno aparecem todos os tipos de sintomas mórbidos”. Seria possível pedir uma melhor caracterização da situação atual!

Agora, quanto ao lado francamente regressivo desse campo histórico, quero fazer duas observações heréticas. Em primeiro lugar, os partidários dos movimentos e partidos de direita que você mencionou estão buscando em suas nações, ou melhor, em certos homens fortes que personificam essas nações, proteção social contra as forças que estão destruindo suas vidas, forças estas que eles não entendem de maneira correta ou plenamente. Assim, esses partidos e movimentos, por mais equivocados e autoritários que sejam, encarnam uma revolta contra o bom senso neoliberal – contra o mantra, repetido ad nauseum e por décadas, de que só os mercados podem nos libertar, de que o poder estatal não é a solução para nada – mas sim o problema que precisa ser atacado. Implicitamente, portanto, mesmo os movimentos de direita mais assustadores abrigam uma reavaliação do papel do poder público. Ora, uma esquerda sofisticada politicamente poderia construir também uma alternativa…

Em segundo lugar, há algo de vazio em gente como Trump, Bolsonaro, Modi, Erdogan, Salvinie assim por diante. Essas figuras me lembram “O Mágico de Oz”. Eles são como os homens-show que se exibem e se pavoneiam diante da cortina, enquanto o verdadeiro poder se esconde por trás dela. O verdadeiro poder é, claro, o do capital: as megacorporações, grandes investidores, bancos e instituições financeiras cuja sede insaciável de lucro condena bilhões de pessoas em todo o mundo a vidas atrofiadas e encurtadas.

Além do mais, tais homens-show não têm soluções para os problemas de seus adeptos; eles dormem com as próprias forças que os criaram. Tudo o que podem fazer é distrair a população com acrobacias e espetáculos. À medida que os impasses pioram e suas “soluções” deixam de se materializar, esses homens de frente são levados a aumentar a aposta com mentiras cada vez mais bizarras e bodes expiatórios perversos. Essa dinâmica tende a aumentar até que alguém puxa a cortina e expõe a farsa.

E isso é precisamente o que a oposição progressista dominante falhou em fazer. Longe de desmascarar os poderes por trás da cortina, as correntes dominantes dos “novos movimentos sociais” se enredaram neles. Estou pensando nas alas liberais-meritocráticas do feminismo, antirracismo, direitos LGBTQ +, ambientalismo etc., que operaram por muitos anos como parceiros juniores em um bloco “neoliberal progressista” que também incluía setores “com visão de futuro” do capital global (inteligência artificial, finanças, mídia, entretenimento).Então, eles também serviram como forças de frente, embora de uma certa maneira diferente, qual seja ele, lançando um verniz de carisma emancipatório sobre a economia política predatória do neoliberalismo. Sou tentada a chamar isso de “lavagem do arco-íris” porque combina lavagem rosa com lavagem verde e muito mais.

Mas seja como for que chamemos tais ações, o resultado não foi emancipatório. Não “apenas” porque essa aliança profana devastou as condições de vida da vasta maioria e, assim, criou o solo que alimentou a direita. Além disso, associou feminismo, antirracismo etc. com o neoliberalismo, garantindo-lhe uma defesa. Quando a barragem finalmente se rompesse e as massas populares passagem a rejeitar esse programa político, rejeitariam também aqueles que deveriam ser o seu oposto. E é por isso que o principal beneficiário, pelo menos até agora, tem sido o populismo de direita reacionário. É também por isso que agora estamos presos em um impasse político; fomos apanhados em uma batalha simulada e diversiva entre dois grupos de agentes rivais, um regressivo e o outro progressista, enquanto os poderes por trás se voltam mesmo para os bancos. Voltando a Gramsci, eu diria que “o novo não pode nascer” até que arranquemos a cortina e construamos uma esquerda que é totalmente anticapitalista.

A aliança contra-hegemônica

Cabe aqui alguns comentários sobre três termos-chave: separação, realinhamento e populismo. Deixe-me começar pela “separação”. Na verdade, estou propondo uma estratégia que abrange duas separações: uma que acaba com a aliança neoliberal progressista que acabei de descrever; e uma outra que derruba o bloco neoliberal reacionário que se opõe a ele. A primeira separação requer separar a maioria das mulheres, pessoas de cor, pessoas LGBTQ + e ambientalistas das forças corporativas liberais que os mantiveram reféns por décadas. O segundo envolve a divisão dos segmentos da base da direita que poderiam, em princípio, ser conquistados para a esquerda. Os elementos separados de ambos os lados estariam então disponíveis para um novo realinhamento.

Claro, essa estratégia também é baseada numa heresia. Ele rejeita o senso comum liberal reinante que diz que os fascistas estão às portas, então os esquerdistas devem arquivar suas ambições radicais, mover-se para o centro e cerrar fileiras com os liberais. Também se opõe à visão muito repetida de que as polarizações atuais estão tão entrincheiradas que não há chance de afastar da direita os eleitores da parte majoritária da classe trabalhadora. Ambos os pontos de vista estão errados e são contraproducentes.

O primeiro consiste numa tática para amedrontar. E ela foi usada nos EUA, no ano passado, para tirar Bernie Sanders, prematuramente, das primárias presidenciais do Partido Democrata. O segundo vem ser incapacitante, pois consiste numa receita para a derrota. A meu ver, este é um momento de divisão, não de unidade, porque os fascistas não estão realmente às portas. E a única maneira de mantê-los longe do poder é oferecer a seus apoiadores da classe trabalhadora uma alternativa anticapitalista progressista. Da mesma forma, os alinhamentos atuais não são realmente gravados em pedra. Pelo contrário, os eleitores são altamente voláteis; eles tentam diferentes posturas políticas para ver o que funciona. Nos EUA, por exemplo, uma grande parte dos que votaram em Trump, em 2016, havia votado anteriormente em Obama e/ou Sanders; depois eles retornaram para uma opção democrata, em 2020.

No Brasil, da mesma forma, muitos apoiadores de Jair Bolsonaro haviam votado anteriormente em Lula e em Dilma Rousseff; agora, eles estão prontos outra vez para votar em Lula. Trajetórias análogas foram observadas na Grã-Bretanha, França e Itália. Contra uma tese da ideologia neoliberal progressista, muitos eleitores de direita não são por princípio “racistas”, mas apenas “racistas oportunistas”: eles votam em um racista de fato quando ninguém mais está oferecendo uma opção em prol da classe trabalhadora. Logo, o jogo pode potencialmente mudar. Seria o cúmulo da tolice classificá-los como “deploráveis” em vez de tentar cortejá-los.

Isso me leva ao realinhamento. Suponhamos que os componentes-chave de qualquer novo bloco político sejam os elementos cindidos que acabamos de descrever. O que poderia motivá-los a se unirem? Onde está a “cola” que é forte o suficiente para superar a intensa animosidade que agora os divide?

Uma possibilidade, invocada no livro, é o populismo de esquerda. Mas meu entendimento dessa opção política difere do que delineiam outros pensadores, incluindo Chantal Mouffe. Para mim, o populismo não é uma característica inerente da política como tal, nem um objetivo político desejável. É antes uma formação de transição que muitas vezes surge em situações de crise hegemônica. Está centrado na rejeição das elites governantes e pode assumir duas formas principais. O populismo de direita que combina oposição às elites com demonização de uma classe inferior desprezada, enquanto valoriza “o povo” preso no meio desses dois polos.

O populismo de esquerda tem o topo como alvo principal, abstém-se de tratar a base como bode expiatório e define “o povo” de modo inclusivo, abrangendo tanto o meio quanto a base. Essa é uma grande diferença entre as duas variantes. O populismo de direita, ademais, identifica os seus inimigos em termos identitários concretos– como, por exemplo, muçulmanos, mexicanos, negros ou judeus. Em contraste, o populismo de esquerda define seus inimigos numericamente – por exemplo, o 1% superior da escala de renda ou a classe dos bilionários. Em ambas essas questões, o populismo de esquerda é largamente preferível ao seu homólogo de direita. Mas isso não é analiticamente preciso. Para realmente entender o que está acontecendo, é preciso uma análise de classe muito mais refinada; requer-se o conceito de capital e da visão ampliada da sociedade capitalista.

Para mim, então, o populismo de esquerda abriga possibilidades e limitações. Do lado da possibilidade, às vezes pode servir como uma formação de transição que obtém vitórias, amplia seu alcance, aprofunda sua crítica social e se torna mais radical. Mas pode educar as pessoas no curso da luta, esclarecendo contra qual sistema estão de fato lutando e explicando exatamente como esse sistema tem sido “manipulado”. Meu palpite é que o populismo de esquerda oferece um ponto de entrada acessível para a luta de classes. Tenho menos certeza de que ele pode gerar uma visão genuína de como o sistema realmente funciona e o que realmente precisa ser feito para mudá-lo.

É por isso que agora estou inclinado a contemplar as perspectivas de uma formação sucessora do populismo de esquerda – penso numa perspectiva “analiticamente mais precisa” e politicamente mais exigente.

Uma perspectiva possível, que nos Estados Unidos alguns chamam de “socialista democrática”, convida os participantes em potencial a se verem como membros de uma classe trabalhadora expandida no sentido antes aqui definido. O requisito seria satisfazer dois imperativos que muitas vezes são contrapostos como incompatíveis, mas que devem ser acomodados simultaneamente: primeiro, a necessidade de cultivar um senso robusto de pertencimento de classe compartilhada, com base em um inimigo sistêmico comum; e segundo, a necessidade de reconhecer a realidade da diferenciação interna tanto no eixo da classe – mas, especialmente, ao longo dos eixos do gênero, da raça e da nação.

Se isso parece difícil, não é impossível – graças à visão expandida do capitalismo que aqui foi elaborada resumidamente. Essa visão postula que deve haver um único sistema social que se alimenta de divisões, criadas por ela, entre os explorados, os expropriados e os domesticados – e várias combinações deles. Um realinhamento baseado nesse entendimento seria uma força poderosa para a transformação emancipatória.

Em qualquer caso, minha visão atual é que o populismo de esquerda é uma resposta relativamente espontânea à crise. Como tal, pode e deve ser trabalhado. Mas é mais bem entendido como um ponto de passagem de transição a caminho de um projeto emancipatório mais radical. Este último, eu sustento, deve ser anticapitalista no sentido expandido.

Nancy Fraser é professora de ciências políticas e sociais na New School University. Autora, entre outros livros, de O velho está morrendo e o novo não pode nascer (Autonomia Literária).

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