O que está em jogo no mercado da ‘Ubereconomia’, segundo dois especialistas

Usuários de serviços de transporte individual via aplicativos, como Uber, Cabify e 99Taxis, recebem múltiplas mensagens semanais oferecendo descontos para suas viagens. Essa estratégia tem a ver com a disputa de um mercado novo, estruturado na última década — no Brasil, apenas nos últimos anos — e que suscita questões trabalhistas, políticas, urbanas e de regulamentação.

Trata-se de plataformas digitais que oferecem serviços de transporte sob demanda. Elas funcionam da seguinte forma: a empresa desenvolve a tecnologia que permite que motoristas se cadastrem e encontrem seus clientes através dela. Em troca, a empresa recolhe uma porcentagem fixa sobre o ganho desse motorista a cada corrida que ele faz usando o aplicativo, considerando-o, no entanto, como um prestador de serviço autônomo: não há vínculo empregatício reconhecido entre o motorista que faz uso da plataforma e a empresa.

A “economia sob demanda”, nascida nas empresas de tecnologia do Vale do Silício, nos EUA, se alastrou pelo mundo todo na última década. Não só no setor de transportes, mas também em serviços como hospedagem, reparos domésticos, entregas e outros, se beneficiando, em muitos países, da crise econômica em curso para atrair, como prestadores de serviços, trabalhadores desempregados ou em busca de complementação de renda.

O editorial do jornal “The New York Times” do dia 10 de abril, dedicado ao tema, criticou a vulnerabilidade em que esses prestadores de serviço se encontram. “As promessas que o Vale do Silício faz sobre a economia sob demanda parecem atrativas. Sua tecnologia permite que trabalhadores se tornem empreendedores, nos dizem, libertados da labuta dos empregos das 9h às 17h”, diz o primeiro parágrafo do texto.<

“Na realidade, não há utopia em empresas como Uber, Lyft, Instacart e Handy, cujos trabalhadores são frequentemente manipulados para trabalhar por muitas horas por salários baixos. Essas companhias descobriram que podem se aproveitar de avanços em softwares e ciências comportamentais para explorar trabalhadores à moda antiga”.

Ainda assim, esses serviços estão em centenas de países e conquistaram bases de milhões de usuários por sua eficiência, facilidade de contratação e caráter acessível. Por meio deles, é possível, por exemplo, andar de carro por um preço razoável sem possuir um carro, ou hospedar-se em uma casa no Rio de Janeiro, sem possuir uma casa no Rio de Janeiro ou ser amigo do dono do imóvel. Essa comodidade parece ter vindo para ficar.

O livro “Cooperativismo de Plataforma”, escrito por Trebor Scholz — ativista e professor da The New School, em Nova York — e publicado no Brasil em março de 2017 pela Editora Elefante e pela Fundação Rosa Luxemburgo, faz críticas ao modelo atual dessa economia e propõe uma nova estrutura, em que a propriedade das plataformas seja pública — de sindicatos ou compartilhada pelos trabalhadores — e nas quais eles tenham seus direitos garantidos

No livro, Scholz avalia ser muito difícil mobilizar os trabalhadores das plataformas. Segundo o autor, dispersos, eles não se encontram na pausa para o almoço ou nos corredores. É uma mudança de paradigma na organização sindical tradicional, uma vez que os trabalhadores não estão reunidos em um lugar

O Jornal Nexo questionou dois especialistas nesse novo arranjo econômico sobre seu estado atual, suas vantagens, possibilidades de regulamentação e a situação dos trabalhadores: Fabro Steibel, diretor executivo do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade) e professor do mestrado em Economia Criativa da ESPM Rio;Rafael Zanatta, tradutor e autor das notas na edição brasileira do livro “Cooperativismo de Plataforma” e pesquisador em direitos digitais e telecomunicações no Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).Encabeçou a pesquisa “Economia do compartilhamento e seus desafios regulatórios” pelo InternetLa.

É possível equilibrar a inovação e eficiência da economia sob demanda com a garantia de direitos dos trabalhadores?

Fabro Steibel – É central pensar não só na eficiência do serviço, mas também no interesse da cidade. Entre os interesses da cidade está a mobilidade urbana, é um ótimo argumento para aumentar as condições de transporte ou hospedagem (como Airbnb). Por outro lado, tem que se pensar também nas condições de quem trabalha com isso, como nos direitos dos trabalhadores e na segurança dos passageiros. Será necessário [contrabalancear inovação e garantia de direitos], porque fica claro que a inovação da economia sob demanda é disruptiva de outras economias. E ignorar o potencial disruptivo é contra-produtivo.

Outra coisa é como regulamentar. O direito da cidade e o interesse público têm que ser colocados antes da prestação do serviço. A gente não deve ver esse serviço como uma relação entre entes privados: alguém contrata o motorista e o motorista acha um cliente. Essa é uma narrativa que leva a uma privatização do debate. É possível fomentar inovação e ao mesmo tempo fazer garantias, mas é importante que se privilegie o interesse público nessa negociação. A economia sob demanda acaba realçando que são “duas pessoas que se encontram e fazem um contrato”.

Rafael Zanatta  – Sim, porém repensando conceitos tradicionais. É preciso questionar o modelo organizacional das plataformas do Vale do Silício, que são hierárquicos e excludentes da perspectiva de participação dos que estão nas pontas. Plataformas inspiradas no cooperativismo propõem copropriedade e inclusão, evitando precarização. A questão vai além da aplicação das leis trabalhistas

Serviços como Uber e Airbnb são questionados nos países em que atuam por não pagarem todos os impostos nem atenderem regras dos seus ramos de atuação. Quais são as dificuldades e benefícios que a regulamentação desses serviços pode gerar?

Fabro Steibel – No mercado no qual [as plataformas] operam, elas têm que ser as primeiras a chegarem e crescer o suficiente para ter a maior parte do mercado. Essa é uma característica desses serviços: eles operam com margens de lucro muito pequenas em um mercado em que podem ser facilmente copiados. A diferença entre o Uber e o Cabify, em termos de serviço entregue, é muito pequena — o que faz realmente a diferença é a oferta. O produto em si não é o diferencial. A disponibilidade é o que faz diferença, por isso a necessidade de ter escala.

Dito isso, são empresas que tendem a ser agressivas na negociação. Se o Uber fosse pedir licença para todos os mercados em que ele opera, dificilmente conseguiria ter liderança. Então ele vai, e quando dá problema, ele lida. É uma estratégia de mercado, uma estratégia bélica. Existem vários problemas que foram identificados nesse modelo. Um deles é a questão do pagamento de impostos. E há a disrupção de outras regras. No caso de Barcelona e Berlim, o preço do aluguel subiu porque as pessoas preferem alugar pelo Airbnb do que para quem mora na cidade. Isso é característico de inovações disruptivas.

Tem uma dificuldade — que é difícil saber a quem atribuir — em negociar esses “drawbacks” [ônus ou desvantagem, em inglês]. A questão é que o tempo de inovação é tão curto que é difícil pensar em como regulamentar a priori. O que a gente está vendo é que a estratégia de regulamentação é a posteriori: primeiro se deixa a inovação acontecer, depois regulamenta. Imagino que seria difícil fazer uma lei de transporte público individual, que é o que está se discutindo para o Uber, antes de saber como é o modelo do Uber. Então a inovação tem que chegar, senão você mata a inovação logo no começo. Dito isso, o que está claro é que esse tipo de economia veio pra ficar. Ele deve ser tratado com muita prioridade nas discussões de regulamentação para que favoreça a inovação, mas que, ao mesmo tempo, o interesse público seja o principal.

Rafael Zanatta  – A regulação setorial (transporte ou hospedagem) é importante para coibir externalidades negativas e buscar o interesse público. Sem regulação, o Airbnb pode promover gentrificação, concentração em turismo, encarecimento de imóveis e modificação dos aspectos sociais de um bairro. Isso avançou bastante. Hoje, os desafios regulatórios mais importantes estão relacionados à transparência dos algoritmos, à coleta excessiva de dados pessoais e à aplicabilidade dos direitos consumeristas para usuários das plataformas.

A tendência é que a economia do compartilhamento se espalhe para outros setores no futuro? Que consequências isso pode ter?

Fabro Steibel – Não se deve exagerar essa frase. Esses intermediários nas cadeias de negócios são “mais antigos do que andar para frente”. Eles fazem parte do negócio. Existem diferentes camadas e, quanto mais complexo o serviço, mais camadas. O que está avançando muito é a concentração do nicho pela rapidez, hoje, de se tornar um negócio com uma base de milhões de usuários. Isso envolve um processamento de dados e um custo inicial muito elevados. Tanto é que a gente não vê surgindo a cada dia um novo Uber. Surgem novos, mas não a cada dia. É um mercado que, por ter inovação tecnológica envolvida, é concentrado por natureza. A tendência é que, de todos aqueles [que surgem], poucos sobrevivam.

Rafael Zanatta – O frenesi da “sharing economy” já passou, deslocando-se para blockchain, criptomoedas e fintechs [tecnologias de pagamento digital]. O que há de interessante no momento atual é a maturação de alguns empreendimentos colaborativos e o fracasso de outros, gerando conhecimento sobre erros e acertos. Há também um retorno da produção: laboratórios makers (impressoras 3D com códigos compartilhados) e produção de energia em pares são campos promissores.

É possível (ou desejável) redesenhar essa economia? Como?

Fabro Steibel -É desejável que esse tipo de economia permaneça, porque ele é mais eficiente na entrega do serviço. E também que esse tipo de economia seja pensado do ponto de vista do interesse público, do que é melhor para as pessoas — não só para quem contrata, mas para o público

Rafael Zanatta – Não há uma economia, mas várias. As economias do compartilhamento são plurais. As primeiras eram focadas na produção colaborativa de informação, como Wikipedia e Linux. As seguintes tiveram enfoque em consumo e serviços sob demanda, como Airbnb e Uber. Há agora um movimento para cooperativas de plataforma (Stocky, Fairmondo, Resonate) e sistemas descentralizados e criptografados de registros e transações (Ethereum e DAO, por exemplo). São iniciativas que questionam como produzimos e consumimos em conjunto, com auxílio de computadores, códigos e internet. O redesenho passa pela compreensão de que várias economias são possíveis e que nós as construímo

Fonte: Nexo
Texto: Juliana Domingos de Lima
Data original da publicação: 07/05/2017

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