A direita política hoje é marcada por uma profunda convicção de que sua liberdade está em perigo em todos os lugares. Medidas de distanciamento social e ordens de uso de máscara facial, argumentam os conservadores, prejudicam sua liberdade pessoal; assar bolos para casamentos gays ou obrigar as empresas de seguro saúde a fornecerem métodos anticoncepcionais para funcionárias violam sua liberdade religiosa; os espaços seguros da universidade e o politicamente correto censuram sua liberdade de expressão em sala de aula; expandir os cuidados de saúde mina sua liberdade. Cada uma dessas formas de pensar a liberdade está ligada à ideia de que o Estado deve ser cerceado para salvaguardar os direitos individuais.
No entanto, essa ideia de liberdade, argumenta a historiadora política Annelien de Dijn em seu novo livro, Freedom: An Unruly History [Liberdade: uma história de indisciplina], não é apenas uma invenção relativamente recente, mas deve ser vista como uma reação antidemocrática às revoluções norte-americana e francesa, que substituíram o governo formado por elites tradicionais, por governos amplamente populares. Vendo no controle popular uma ameaça aos seus interesses de classe e direitos de propriedade, os críticos conservadores lançaram uma campanha ideológica contra essa concepção democrática de liberdade. Como alternativa, eles inventaram a ideia de que a liberdade política seria encontrada na proteção dos indivíduos, limitando a esfera do governo. Daí as origens, conclui De Dijn, de como concebemos a liberdade hoje e por que ela significa algo diferente para conservadores e progressistas.
Recentemente, conversei com de Dijn sobre seu novo livro. Ao longo do caminho, discutimos a relação entre socialismo democrático e liberdade política, a relação entre a liberdade e os movimentos populistas de hoje e como interpretar o apelo da direita à liberdade política.
Daniel Steinmetz-Jenkins: Freedom: An Unruly History é um livro muito ambicioso. Em cerca de 400 páginas, você se propôs a fornecer uma história da liberdade política no Ocidente que cobre bem mais de 2.000 anos, desde os antigos gregos até o presente. Estou intrigado para saber o que a motivou a escrever este livro. Você disse que a ideia surgiu por causa da presidência de Barack Obama e não de Donald Trump. Isso é interessante, já que a crise do liberalismo e da democracia tornou-se assunto limitado, mas entusiasticamente abordado, por conta da presidência de Trump. Por que então o assunto a motivou no governo Obama?
Annelien de Dijn: Meu interesse pela história da liberdade foi despertado há cerca de uma década, quando o governo Obama tentou reformar o sistema de saúde, e gerou uma forte reação. Milhares de norte-americanos foram às ruas para marchar contra o Obamacare, alegando que ele representava um perigo mortal para a liberdade. Achei isso muito intrigante. Como você pode dizer que expandir o atendimento à saúde – uma medida apoiada pela esmagadora maioria dos norte-americanos – é algo que solapa sua liberdade? De maneira mais geral, por que insistir que toda tentativa do governo de melhorar a vida de seus cidadãos diminui sua liberdade? De onde veio essa concepção individualista ou mesmo niilista de liberdade? Ao procurar respostas para essas perguntas, descobri que não havia uma boa visão geral recente da história da liberdade no pensamento político ocidental, então decidi eu mesma escrever.
Dito isso, acho que as perguntas que originalmente impulsionaram minha pesquisa continuam tão relevantes hoje quanto eram há uma década, quando comecei a escrever o livro. Se a resposta dos EUA à Covid-19 deixou alguma coisa clara, é que essa forma antigovernamental de pensar sobre a liberdade ainda prevalece – o que torna muito difícil implementar qualquer mudança progressista significativa. Nesse sentido, há muito mais continuidade entre as eras de Obama e Trump do que pode parecer à primeira vista.
DSJ: A maior parte de seu livro é dedicada a mostrar que, até o início do século 19, homens e mulheres – incluindo os antigos democratas atenienses e plebeus romanos, os primeiros humanistas florentinos modernos e os revolucionários norte-americanos e franceses – associavam a liberdade política ao autogoverno popular. O que você quer dizer com isso é que, até há relativamente pouco tempo, os pensadores políticos do Ocidente identificavam a liberdade com a capacidade de um povo de exercer controle sobre a forma como é governado. O que os leitores contemporâneos podem extrair da “liberdade dos antigos”, especificamente em relação ao que os plebeus viam como o perigo político representado pelos patrícios?
AD: Se você tiver uma visão de longo prazo, ficará claro que nossa maneira atual de pensar a liberdade – ser capaz de fazer o que você quiser sem a interferência do Estado – é na verdade uma invenção bastante recente. Durante séculos, as pessoas que hoje chamamos de “Ocidente” associaram ‘serem livres’ com o exercício de controle coletivo sobre o governo. Eles tinham o que eu chamo de concepção democrática de liberdade: um estado livre era aquele em que o povo governava a si mesmo. Para eles, a chave para preservar a liberdade política era afastar a dominação da elite, não estabelecer mecanismos para patrulhar os limites do poder do Estado.
Na Atenas antiga, a maioria dos funcionários públicos era escolhida por sorteio e ficava no cargo apenas por curtos períodos de tempo. Isso significava que qualquer cidadão do sexo masculino, não importa quão obscuro tivesse sido seu nascimento ou quão humilde fosse sua posição na vida, tinha uma chance igual de alcançar um alto cargo. Além disso, os atenienses recebiam uma bolsa para comparecer à assembleia popular, onde todas as decisões políticas importantes eram tomadas. Dessa forma, mesmo os cidadãos pobres podiam participar das reuniões, muitas vezes de um dia inteiro, pois eram indenizados pela perda de renda. Essas e outras medidas semelhantes garantiam que o poder político permanecesse nas mãos dos cidadãos comuns, como é ilustrado pelo fato de que os atenienses ricos frequentemente reclamavam que sua cidade era governada pelos pobres e para os pobres. De fato, as elites atenienses eram tão hostis ao regime político sob o qual viviam que tentaram duas vezes derrubar sua própria democracia, embora nas duas vezes tenham sido derrotadas.
Em contraste, hoje tendemos a colocar mais fé nas instituições contramajoritárias como uma forma de preservar a liberdade. Temos a tendência de pensar que nossas liberdades são mais bem protegidas por instituições como a Suprema Corte – um conselho de anciãos supostamente acima da política. Isso porque passamos a pensar que as maiorias democráticas, e não o governo da elite, são a verdadeira ameaça à liberdade. Isso teria sido muito estranho para os antigos gregos e romanos. Eles acreditavam que os direitos e liberdades individuais eram ameaçados principalmente por reis autocráticos ou elites arrogantes.
DSJ: O principal argumento de seu livro é que a liberdade dos antigos foi eclipsada no início do século 19 por uma nova concepção moderna de liberdade. O que é essa nova compreensão da liberdade e como ela aconteceu?
AD: No século 19, pensadores políticos na Europa e nos Estados Unidos começaram a rejeitar essa antiga concepção democrática de liberdade em favor de uma forma diferente de pensar. A liberdade, muitos chegaram a argumentar, não era uma questão de quem governava. Em vez disso, o que determinava se você era livre ou não era até que ponto você era governado. Quanto menor o governo, mais livre você é – independentemente de quem está no controle.
Essa nova forma de pensar foi desencadeada por uma reação conservadora. No final dos séculos 18 e 19, o movimento democratizante obteve sucessos crescentes, à medida que o governo das elites tradicionais foi substituído por governos mais amplamente populares na Europa e na América do Norte. No longo prazo, a promessa de democracia também passou a ser estendida a grupos até então marginalizados, como mulheres e homens negros.
Mas as vitórias desses movimentos democratizantes também criaram uma contrarreação poderosa que levaria a uma grande mudança no pensamento sobre a liberdade. A democracia, argumentavam os conservadores repetidamente, não traria liberdade para todos. Afinal, mesmo nos Estados mais democráticos, o poder nunca foi exercido por consenso comum. Em vez disso, em uma democracia, a maioria da comunidade governava sobre todos os outros. Se você realmente se preocupasse com a liberdade, os conservadores continuaram a argumentar, estender o controle popular sobre o governo seria, portanto, supérfluo e até contraproducente – levaria à tirania da maioria. Consequentemente, a única maneira de preservar a liberdade era limitar a esfera do governo tanto quanto possível e capacitar instituições contramajoritárias, como um judiciário independente, para proteger os indivíduos contra o alcance da maioria.
Quando falavam sobre a tirania da maioria, é importante notar que os conservadores não estavam pensando principalmente na opressão de minorias vulneráveis, como minorias religiosas ou étnicas. Em vez disso, a tirania majoritária que eles temiam acima de tudo era a dos pobres sobre os ricos; eles temiam o potencial redistributivo da democracia. Escrevendo no início de 1848 – quando os revolucionários tentaram introduzir o sufrágio masculino na Europa continental – o historiador britânico Thomas Babington Macaulay falou em nome de muitos conservadores quando advertiu que a democracia era incompatível com a liberdade, já que “os pobres saqueariam os ricos”. A democracia, pensava ele, “destruiria a liberdade, ou a civilização, ou ambos”.
Da mesma forma, as instituições contramajoritárias, nas quais os conservadores apostam tanto, tinham como objetivo principal a proteção dos direitos de propriedade contra a política popular. William Howard Taft, por exemplo, o presidente da Suprema Corte de 1921 a 1930, falou por muitos de seus colegas quando explicou que cabia ao judiciário federal, o “baluarte da liberdade do indivíduo”, proteger os indivíduos contra “a agressão da maioria do eleitorado” – notadamente por defender zelosamente seus direitos de propriedade.
Em suma, a ideia de que a liberdade depende da limitação do poder do Estado foi inventada pelos conservadores para defender os interesses da elite contra o surgimento da democracia. E os progressistas nos Estados Unidos hoje tendem a ser a favor de medidas que aumentem o controle das pessoas comuns sobre suas vidas políticas e econômicas – mas raramente falam sobre isso em termos de liberdade. Isso porque eles aceitaram a definição conservadora de liberdade como ausência de intervenção estatal.
No entanto, isso foi obscurecido nas histórias dos livros didáticos, onde essa mudança de pensamento é frequentemente atribuída a tendências de longa data na história europeia. Assim, muitas vezes é afirmado que o crescimento da tolerância religiosa no Ocidente – em si uma consequência não intencional da Reforma – desencadeou o surgimento de uma nova maneira de pensar sobre a liberdade como idêntica à independência privada. Outra narrativa popular atribui a mudança de pensamento ao surgimento de uma economia de mercado nos séculos XVII e XVIII. Isso supostamente levou a uma concepção mais iluminada de liberdade, centrada na noção de direitos individuais que precisavam de proteção contra a interferência do Estado. Mas, na verdade, nem a Reforma nem a transição para uma economia de mercado tiveram muito impacto no debate sobre a liberdade.
DSJ: Como você responderia à preocupação de que escrever uma história da liberdade política exclusivamente a partir da perspectiva do Ocidente é participar de uma longa tradição acadêmica na Europa e nos Estados Unidos que ignora ou banaliza as concepções de liberdade fora dessa esfera?
AD: Há um crescente corpo de estudos sobre tradições políticas não ocidentais, que mostra claramente que a liberdade não era apenas um conceito ocidental. Para dar apenas um exemplo: os Wajo, um povo marítimo indonésio, davam muita importância à liberdade política, como Anthony Reid demonstrou. De acordo com suas crônicas do século 18, os Wajo se consideravam livres por nascimento. Eles também foram bastante claros sobre o que isso significava: na comunidade Wajo, ninguém deve interferir nos desejos das pessoas, deve haver liberdade de opinião e as pessoas devem poder ir e vir como quiserem.
Portanto, ao me concentrar no pensamento político ocidental, de forma alguma quero sugerir que os pensadores europeus e norte-americanos foram os únicos a falar sobre liberdade. Mas, ao mesmo tempo, acho que é muito importante investigar criticamente nossa própria tradição. A liberdade não é apenas um ideal elevado; é também uma arma política poderosa, uma arma que pode ser usada para destruir oponentes políticos e bloquear mudanças legislativas.
Uma das razões pelas quais a liberdade é uma arma política tão poderosa é por causa de suposições generalizadas sobre quem somos e de onde viemos. Nos Estados Unidos, e em menor grau também na Europa, as pessoas ainda tendem a ser criadas em narrativas triunfalistas sobre a antiquíssima tradição ocidental de liberdade. Um dos principais objetivos do meu livro é questionar essas narrativas, mostrando que há muito menos continuidade em nossa maneira de pensar sobre a liberdade do que pode parecer à primeira vista.
DSJ: Vamos nos voltar para a política contemporânea. Há um crescente movimento socialista democrático neste país. Que lições podem ser tiradas de seu livro sobre a relação histórica entre o socialismo democrático e a concepção moderna de liberdade, especialmente desde que surgiram por volta da mesma época no início do século 19?
AD: Os partidos socialistas surgiram na Europa no final do século 19 em resposta à crescente desigualdade econômica, enquanto novos movimentos políticos com objetivos semelhantes, notadamente populismo e progressismo, surgiram nos Estados Unidos. Esses movimentos foram muito críticos às afirmações dos conservadores de que a liberdade só pode ser alcançada por um governo mínimo. Eles rejeitaram isso como uma falsa liberdade; era a liberdade dos ricos para suprimir os pobres. Como Marx e Engels colocaram, o pensamento laissez faire permitia apenas “a exploração de muitos por poucos”. Isso não era liberdade, mas “liberdade burguesa” – a liberdade de uma única classe.
Mas isso não significa que socialistas ou populistas fossem contra a liberdade. Muito pelo contrário – eles visavam reviver e radicalizar a concepção democrática mais antiga de liberdade. Eles argumentaram que a liberdade exigia controle coletivo sobre o governo e, portanto, pressionavam consistentemente por medidas que democratizassem os sistemas políticos sob os quais viviam. O Partido Socialista Alemão, por exemplo, foi o primeiro grande partido político na Europa a exigir o sufrágio universal, incluindo o direito das mulheres de votar. Mas socialistas, populistas e progressistas também concordaram que o controle popular sobre o governo não era suficiente. A fim de preservar a liberdade para todos, a democracia deve ser estendida da esfera política para a econômica; caso contrário, as pessoas permaneceriam dependentes da boa vontade dos ricos.
Isso me leva a um ponto mais geral. Há uma ideia generalizada nos Estados Unidos de que o socialismo leva à falta de liberdade, que é uma ideologia totalitária, “estranha à nossa cultura e valores”, como Donald Trump expressou. Mas, na verdade, socialistas, populistas e progressistas se viam como herdeiros dos revolucionários norte-americanos e franceses, que por sua vez haviam ecoado os antigos. Para eles, a liberdade significava controle coletivo sobre o governo e o perigo era a tirania das minorias. O político socialista Jean Jaurès, que também era um historiador respeitado, declarou com orgulho: “somos o partido da democracia e da Revolução”. Da mesma forma, do outro lado do lago, Franklin Delano Roosevelt argumentou que o objetivo do New Deal era “restaurar ao povo uma liberdade mais ampla”, destruindo a tirania econômica e “dar a 1936 como os fundadores deram a 1776.” Bernie Sanders, em outras palavras, está 100% correto quando nos lembra que a liberdade é um valor socialista, contanto que tenhamos em mente que ele está se referindo à concepção democrática mais antiga de liberdade.
DSJ: Você foca no livro do cientista político Yascha Mounk, The People vs. Democracy, que afirma que a liberdade hoje está sendo ameaçada pelas visões iliberais do “povo”. O livro de Mounk, junto com dezenas de outros, compõe o que o estudioso Jan-Werner Muller descreve como a “indústria de defesa da democracia”. O que você acha dessa literatura, especificamente dadas as tendências antipopulistas de longa data que reduzem a liberdade às preocupações das elites com a segurança?
AD: Desde a eleição de Trump, comentaristas políticos como Mounk têm tentado nos convencer de que nossas democracias estão em apuros por causa do surgimento de algo que eles chamam de “populismo”. De acordo com Mounk, 2016 mostra que nossa liberdade está ameaçada pelas visões não liberais do “povo”, mas essa análise me parece profundamente equivocada. Trump perdeu o voto popular, por muito, e ele é um dos presidentes mais impopulares de todos os tempos. Caracterizá-lo como populista soa bizarro. Além disso, a democracia dos Estados Unidos estava em crise muito antes de 2016. Jacob Hacker e Paul Pierson nos advertiram, já em 2005, que as elites ricas, por meio de sua captura do Partido Republicano, haviam conseguido manipular o sistema político. Isso permitiu que implementassem políticas que beneficiam os ultrarricos, apesar de serem amplamente impopulares entre o público em geral. Em outras palavras, parece bastante claro que o principal problema da democracia dos EUA é o governo das minorias, não algo como populismo.
Portanto, a questão interessante aqui é: por que tantos centristas negam essa realidade? Por que eles sentem a necessidade de atribuir a crise da democracia ao “povo” e suas tendências supostamente iliberais? Acho que a resposta a essa pergunta deve ser buscada em tendências de longa data no pensamento político ocidental, notadamente em uma tendência profundamente enraizada de retratar a tirania da maioria como a principal ameaça à liberdade. É hora de começarmos a ver isso pelo que realmente é: um fantasma levantado por elites privilegiadas com medo de perder sua posição. Se a história ensina alguma coisa, é que os direitos e liberdades individuais têm muito mais probabilidade de ser ameaçados pelo governo da elite do que pelo governo popular.
DSJ: O livro dá a impressão de que você está do lado da concepção pré-moderna de liberdade, dados seus princípios antielitistas e democráticos. E, no entanto, o livro mostra repetidamente que mulheres, escravos e outros foram excluídos daqueles movimentos de plebiscito que tentavam controlar o poder da elite hereditária. Há uma analogia com os movimentos populistas de direita de hoje, que buscam um programa político que apela ao discurso da democracia contra os políticos de Washington DC, os interesses de Wall Street e as elites de Davos, enquanto promove o nativismo, a xenofobia e o racismo. A história de indisciplina da liberdade pode lançar luz sobre isso?
AD: É verdade que, ao longo dos séculos, os autoproclamados lutadores pela liberdade muitas vezes acabaram substituindo velhas estruturas de poder por novas hierarquias, notadamente de raça e gênero. Hoje, nós nos lembramos das Revoluções Atlânticas do final do século 18 porque elas introduziram governos novos e mais amplamente populares, anunciando assim a era da democracia. No entanto, muitos dos revolucionários que protestaram mais ruidosamente contra a escravidão metafórica a que foram submetidos por reis arrogantes e elites arrogantes possuíam escravos ou estavam envolvidos no comércio de escravos.
Ao mesmo tempo, é importante notar que tais hipocrisias foram constantemente desafiadas por grupos marginalizados, que foram capazes de virar as próprias palavras dos revolucionários contra eles. Como disse o abolicionista e ativista dos direitos civis Frederick Douglass: “querem que eu argumente que o homem tem direito à liberdade? Que ele é o legítimo dono de seu próprio corpo? Vocês já declararam isso.”
O que eu acho que isso mostra é que palavras e ideias importam, embora não sejam de forma alguma tudo o que importa. Se você conseguir virar as palavras de seus oponentes contra eles, isso ajudará a fortalecer sua argumentação. Claro, seria ingênuo pensar que apontar a hipocrisia moral é suficiente. Uma guerra foi necessária para pôr fim à escravização de pessoas nos Estados Unidos, não apenas o apelo moral de Douglass. Ao mesmo tempo, as guerras não são travadas apenas com armas, mas também com palavras.
No entanto, o que estamos testemunhando hoje em dia é algo totalmente diferente. Hoje, aqueles que reclamam mais alto contra a opressão tendem a ser relativamente privilegiados. Os brancos reclamam que estão em desvantagem em relação aos negros e imigrantes, os homens heterossexuais acreditam que estão sendo discriminados no local de trabalho por causa de seu gênero e os grupos religiosos reclamam que são vítimas da cultura secular. Esses grupos privilegiados imitam o discurso dos marginalizados, mas as queixas que fazem não são reais. É ridículo, por exemplo, criticar a ação afirmativa no ensino superior quando os acessos herdados continuam a beneficiar principalmente os alunos brancos.
DSJ: Seu livro passa um bom tempo falando sobre a relação entre a história do Cristianismo e a liberdade política. Hoje, as empresas evangélicas e católicas conservadoras apelam regularmente à liberdade de religião na tentativa de recusar, a seus funcionários, a cobertura de seguro para contracepção, como no caso Hobby Lobby, ou recusar serviços criativos para cerimônias de casamento gay, como o caso da Masterpiece Bakeshop. Historicamente, como você entende esse apelo paradoxal à liberdade com o propósito de exclusão?
AD: Ao longo dos tempos, os pensadores cristãos passaram muito tempo refletindo sobre o que significava ser livre. Para muitos deles, a liberdade era principalmente uma condição interna; era a liberdade de se sujeitar à vontade de Deus em vez de pecar. Mas acho que os apelos à liberdade religiosa hoje, como no caso do Hobby Lobby, são inspirados principalmente por outra tradição mais moderna: a tradição conservadora que identifica a liberdade não com uma condição interior de liberdade espiritual do pecado, mas com a ausência da intervenção do Estado.
Como tal, o caso Hobby Lobby fornece mais um exemplo de como as noções de liberdade e direitos são usadas hoje para impedir qualquer mudança progressista. O Affordable Care Act é uma lei com amplo apoio democrático que torna obrigatória a cobertura de métodos anticoncepcionais. Quando a Suprema Corte decidiu dar às empresas uma isenção a esta disposição obrigatória de fornecer métodos contraceptivos por motivos religiosos, basicamente disse que as empresas podem ignorar as maiorias democráticas e fazer o que considerarem adequado. Em outras palavras, noções como liberdade religiosa hoje são invocadas não para proteger minorias vulneráveis, mas para permitir que atores privados poderosos ignorem as regras democráticas.
Fonte: Carta Maior, com The Nation
Texto: Daniel Steinmetz-Jenkins
Tradução: César Locatelli
Data original da publicação: 30/10/2020