O projeto político da dívida pública

Imagem: Chronis Yan/Unsplash

Na ponta da despesa, BC alimentou o financismo com juros estratosféricos. Resultado: um país apequenado, porém com cada vez mais bilionários

Marcio Pochmann

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 26/06/2023

A alienação geral aliada à consciência ingênua tem permitido que a dívida pública seja o projeto político pela qual a estagnação econômica favorece ricos, poderosos e privilegiados. Por quase três décadas, a centralidade do endividamento público produz um efeito equivalente ao detergente que na formação de espumas termina por ocultar a profundeza da poluição presente nos rios que cortam algumas cidades brasileiras.

A questão central do subdesenvolvimento submerge diante da extensa artificialidade que prioriza o endividamento público enquanto questão-chave da nação. Assim, o atraso nacional atinente à fome, escassez da infraestrutura, habitações, trabalho e renda decentes, bem como a defasagem educacional e a dependência externa da tecnologia e de bens e serviços de maior valor agregado se encontram subordinados à centralidade do projeto político da dívida pública.

Como se sabe, o papel que o Brasil cumpriu na Divisão Internacional do Trabalho entre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Guerra Irã-Iraque (1980-1988) permitiu internalizar a moderna estrutura produtiva pertencente à segunda Revolução Industrial e Tecnológica. Tanto assim que ao final da década de 1970, o Brasil junto com a Coreia do Sul eram os dois únicos países de passado colonial que tinham levado mais adiante a passagem do antigo agrarismo para a moderna sociedade urbana e industrial.

Mas a interrupção do ciclo do desenvolvimento nacional na década de 1980 passou a criar obstáculos crescentes à reprodução capitalista no Brasil. O enfrentamento decisivo de problemas como a geração da riqueza nova e a valorização do estoque da riqueza velha passou a estar vinculado à funcionalidade do Estado a serviço do andar de “cima da sociedade”, seja pelo retorno ao modelo primário exportador, seja pela difusão da economia do rentismo.

Isso porque a perda do dinamismo econômico do país não significou, em geral, prejuízos ao conjunto seletivo de ricos, poderosos e privilegiados. Pelo contrário, enquanto a participação do Brasil no Produto Interno Bruto mundial (PIB) declinou de 3,2%, em 1980, para 1,7%, em 2022, a quantidade de brasileiros super-ricos (patrimônio mensurável igual ou superior a US$ 1 bilhão) saltou de apenas três, em 1987, para 62, em 2022.

De acordo com a Revista Forbes, a multiplicação por 21 vezes do número de bilionários no país foi acompanhada pela mudança profunda do seu perfil. Atualmente, os bilionários se encaixam na função de banqueiros e vinculados ao agronegócio, quando há mais de três décadas se concentravam na indústria de transformação e construção civil.

O resultado disso tem sido o subdesenvolvimento. Sem conseguir crescer a riqueza relativamente para todos, os interesses de ricos, poderosos e privilegiados ganharam dimensão focada no projeto político da dívida pública.

Para tanto, o deslocamento do fluxo de riqueza numa economia estagnada teve início com a inflação promovida há mais de quatro décadas com o ajuste exportador adotado na gestão da crise da dívida externa (1981-1983). Acontece que a via da superinflação foi se tornando disfuncional diante das forças populares, que engajadas no interior do conflito distributivo de uma economia estagnada, se organizaram e cresceram lutando por conquistas como a redemocratização nacional e a Constituição Federal de 1988.

Com o Plano Real, em 1994, a rústica apropriação dos ricos, poderosos e privilegiados de parte da massa de rendimentos da sociedade pelo mecanismo da superinflação foi substituída pelo sofisticado projeto político da dívida pública. De fato, a estabilização monetária alcançada desde então conferiu certo esvaziamento aos movimentos populares e sindical diante da centralidade alcançada pelo endividamento estatal favorecido pelo receituário neoliberal da privatização.

Uma breve “autópsia” do projeto político exitoso de proteção da riqueza do “andar de cima” da sociedade e de empobrecimento da nação pode ser revelada por duas razões principais. De um lado, a artificialidade da escassez de recursos públicos gerada para tornar o Estado dependente do endividamento financeiro. Desde a adoção do receituário neoliberal nos anos de 1990, a carga tributária se distanciou da arrecadação tributária potencial.

A contínua implementação dos instrumentos estatais para atendimento de ricos, poderosos e privilegiados permitiu a expansão das desonerações, isenções e subsídios fiscais, bem como a expansão de créditos subsidiados. Tudo isso patrocinado pelo Estado, uma vez que a carga tributária efetiva se encontra atualmente cerca de 10 pontos percentuais do PIB, abaixo da arrecadação tributária potencial.

De outro lado, houve a ampliação da despesa pública puxada por dissimulados gastos financeiros. Nesse sentido, o papel do Banco Central foi determinante para a elevação do total da despesa pública por meio da prevalência da taxa básica de juros acima da inflação extremamente elevada.

Para além da extração da economia real, há a utilização de diversos subterfúgios, como a remuneração de depósitos compulsórios e voluntários de instituições financeiras no Banco Central que alargam, de forma no mínimo questionável, o gasto público no Brasil. Atualmente, isso pode significar quase oito pontos percentuais do PIB.

Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. 

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