O primeiro 1º de maio

A situação atual impõe uma ressignificação do 1º de maio, pois, concretamente, a identificação com as conquistas foi abandonada e não há mais direitos a exaltar.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Blog do autor
Data original da publicação: 01/05/2019

Partindo do pressuposto de que a vida não será mais como era antigamente, inaugura-se um estágio de recontagem ou ressignificação dos eventos históricos e diante das circunstâncias atuais que marcam essa alteração nada mais simbólico do que o 1º de maio.

O 1º de maio, dia do(a) trabalhador(a), marca as lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores contra as más condições de trabalho, resultando na conquista de direitos tais como a limitação da jornada de trabalho de 8 horas e a fixação de um salário mínimo.

Esses direitos, difundidos mundo afora, melhoraram as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora.

Mas o 1º de maio não é a marca dos direitos e sim das lutas que os precederam e os motivaram.
Ocorre que há muitos anos, diante do alargamento das forças neoliberais, o poder econômico avançou sobre os direitos sociais, buscando a redução destes com o argumento de que o custo desses direitos inviabiliza a produção e diminui espaço na concorrência.

Com isso, a classe trabalhadora se viu na circunstância da luta pela preservação dos direitos.

O 1º de maio deixou de saldar as lutas e os seus personagens e passou a ter como horizonte os direitos. Isso representou uma grave cisão na classe trabalhadora, pois muitos trabalhadores e trabalhadoras, não sendo detentores de direitos, foram alijados da classe trabalhadora. E, também, a precariedade de direitos mais intensa de certos trabalhos acabou servindo como escudo econômico para a defesa de direitos mais amplos de outros(as) trabalhadores e trabalhadoras, só que em número cada vez mais reduzido.

Essa mudança implicou em perda de identidade histórica e não impediu o movimento, sempre renovado e criativo, em direção a retirada de direitos, até se chegar ao contexto da pandemia da COVID-19, ao ponto mais profundo das MPs 927 e 936, acompanhadas da ameaça do xeque mate da denominada carteira verde e amarela, no qual a classe trabalhadora foi colocada de joelhos (literalmente).

Essa situação impõe, como dito, uma ressignificação do 1º de maio, pois, concretamente, a identificação com as conquistas foi abandonada e não há mais direitos a exaltar.

As consequências da pandemia, no entanto, por outro lado, por mais paradoxal que pareça, conferem a oportunidade ideal para essa mudança.

E considerando que no momento inaugurado pela pandemia tudo passará por uma revisão profunda, não será diferente com a classe trabalhadora, o que exige, mais do que nunca, uma tomada de consciência do processo histórico, para não ser atropelado por ele.

E, por mais que pareça, a pandemia confere grandes oportunidades para essa mudança de rumos, pois, se por um lado, os trabalhadores e trabalhadoras estão sendo desvalorizados institucionalmente com a perda de direitos, por outro, fica evidenciada a relevância e a essencialidade do trabalho para a economia e a preservação da vida de todos e todas. E resta claro, também, que são pessoas (trabalhadores e trabalhadoras) que executam o trabalho e que essas pessoas devem ser vistas enquanto tais, ou seja, como seres humanos iguais a todos os demais.

Talvez isso já se permitisse perceber antes por quem fosse mais atento e não conduzido por um viés ideológico que bloqueia a mente para realidade.

A diferença fundamental desse momento é que os trabalhadores e trabalhadoras que se tornaram visíveis são aqueles e aquelas que, historicamente, foram extraídos do horizonte das organizações da classe trabalhadora: domésticas, terceirizadas(os), entregadores(as) e “informais” de toda espécie.

Constatando que na realidade brasileira esse tipo de trabalho tem gênero e raça, pois são executados na grande maioria por mulheres e negros, e, sobretudo, por mulheres negras, o reconhecimento necessário é o de que as preocupações priorizadas na estruturação política da classe trabalhadora reproduziram as piores mazelas da sociedade brasileira, o racismo e o machismo.

E como essas profissões foram marcadas pela precariedade de direitos e pela baixa renda, o que se desenvolveu com o apoio das demais frações da classe trabalhadora, há de se reconhecer que no seio das organizações trabalhistas foram disseminados os principais valores liberais de dominação sobre o trabalho, transformado em força de trabalho: quebra da solidariedade e concorrência (marcada pelo individualismo – ou o “salve-se quem puder”).

Talvez por isso muitas dessas pessoas conduzidas à precariedade extrema acabem se identificando mais com o discurso (amplamente estimulado pelas mídias de grande alcance) do empreendedorismo. Não foram integradas à classe trabalhadora e a alternativa de vida que lhes resta é a de se apegarem a tudo que lhes possa conferir uma sobrevivência imediata.

O momento da pandemia permitiu, também, que se percebessem a relevância e as dores do trabalho doméstico, que foi historicamente direcionado de forma impositiva às mulheres. Com isso as mulheres trabalhadoras foram sobrecarregadas com a dupla jornada e com a sua exclusão, generalizada, do ambiente político das organizações sindicais, com a reprodução da falácia de que “lugar de mulher é em casa”.

Como tudo isso, que agora passa a ficar escancarado em nossas vistas, foi produzido e reproduzido ao longo da história de organização da classe trabalhadora, o primeiro 1º de maio da pandemia não pode ser uma comemoração, precisando ser, portanto, o marco de uma transformação profunda no seio das organizações e dos horizontes da classe trabalhadora.

Daqui para adiante só haverá legitimidade em movimentos trabalhistas (nos setores públicos ou privados) que, de forma conjunta:

a) não tenham como propósito a defesa exclusiva dos interesses imediatos de uma determinada “categoria” de trabalhadores (ainda mais sobrepondo-se aos interesses de outra “categoria”). “Categoria”, aliás, que foi um conceito formal, juridicamente instituído, para dividir a classe trabalhadora;

b) se organizem na perspectiva da defesa dos interesses da classe trabalhadora como um todo, integrando, necessariamente, os excluídos do mercado de trabalho;

c) estejam baseados na igualdade plena de direitos e na divisão igualitária de tarefas entre homens e mulheres, abrangendo os ambientes públicos e privados, enfrentando, inclusive, todas as formas de discriminação baseadas em gênero e orientação sexual;

d) tenham como ponto de partida fundamental a igualdade de direitos entre trabalhadoras e trabalhadores em geral e as empregadas domésticas, integradas, enfim, à classe trabalhadora politicamente organizada;

e) superem a divisão de classe determinada pela terceirização;

f) enfrentem de forma objetiva e intransigente todas as questões (inclusive na vida privada) relacionadas ao racismo e ao machismo;

g) integrem ao centro de suas preocupações, na exigência de tratamento igualitário e de ampliação de direitos, os trabalhadores e trabalhadoras informais e, sobretudo, os que prestam serviços por intermédio de aplicativos.

É preciso, pois, que se reconstitua o conceito de classe trabalhadora por meio concreto dessas integrações e não no ambiente conceitual abstrato.

Fato é que quaisquer defesas de direitos ou ações políticas no seio do movimento trabalhista que não partam desses pressupostos estão fadadas ao insucesso, como demonstram as sucessivas experiências anteriores. Até porque esses trabalhadores e trabalhadoras historicamente excluídos(a) constituem a enorme maioria das pessoas que vivem do trabalho no Brasil e devem, necessariamente, ser inseridos na base das preocupações das organizações trabalhistas.

Se tudo não será mais como era antigamente, assim também será com o 1º de maio.

O que se espera é que o 1º de maio de 2020 seja o primeiro de uma nova etapa da história da classe trabalhadora e da humanidade.

Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr.

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