O preconceito contra transexuais no mercado de trabalho

Segundo a Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro (Triângulo Trans), apenas 5% das travestis e transexuais de Uberlândia estão no mercado de trabalho dito formal. As demais, 95%, estão na prostituição. Número semelhante é apresentado pela ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, segundo a qual 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. Ainda que elas queiram arranjar um emprego com rotina, horário de trabalho e carteira assinada, o preconceito fica evidente quando elas se candidatam a uma vaga. Daniela Andrade, militante feminista e ativista trans da cidade de São Paulo e membro da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-Osasco, sente isso no cotidiano. Pensando nesse panorama e utilizando seus conhecimentos na área de programação, Daniela, junto com mais dois companheiros, idealizou e colocou no ar o site Transempregos, com o fim de aproximar travestis e transexuais do mercado de trabalho.

Convidamos Daniela para ela nos ensinar e compartilhar conosco os obstáculos enfrentados pelo preconceito e ignorância.

Sou Daniela Andrade e durante algum tempo da minha vida me identifiquei como [homem] gay (bastante afeminado), por enorme desconhecimento sobre as questões trans, inclusive por raramente ter ouvido a palavra ‘transexual’, e por seguir o senso comum de que ‘mulher necessariamente tem uma vagina’, reduzindo gênero a genital. Apesar disso, nunca consegui de fato me ver como homem, e o adjetivo ‘gay’ sempre foi para mim um substantivo, que dentro da minha história, salvava-me de me ver colocada no grupo dos homens. Dado que geralmente a sociedade parte do pressuposto (homofóbico) que ser gay não é ser homem, algo premente nas frases que escutamos o tempo todo: “Ele é homem, ou é gay?”, “Ele é homem né? Não é gay não?!”, “Meu filho é homem, não é gay”.

Evidente que nunca consegui me encontrar vivendo como homem gay, o que só serviu para que eu sofresse enormemente do ponto de vista psiquico/psicológico. Até o dia que descobri uma amiga transexual, que me contou sua trajetória, e foi quando percebi que havia outras pessoas que haviam passado pelo mesmo que eu e que, no entanto, mais tarde reconheceram-se como mulheres. Eu costumo dizer que ninguém “vira” trans*, as pessoas se apropriam da identidade trans, via de regra negligenciada, invisibilizada ou negada inclusive em diversos lugares que se dizem LGBT. Há um enorme desconhecimento generalizado sobre o que venha a ser identidade de gênero (o gênero ou os gêneros que reconheço como meu(s)), em que as pessoas sempre confundem com orientação sexual (o gênero ou os gêneros pelo qual me atraio).

Em relação à minha vida escolar e profissional, eu fiz curso técnico em informática, tenho graduação em Análise de Sistemas, tenho pós graduação (lato sensu) em Engenharia de Software. Trabalho na área de análise e desenvolvimento de sistemas desde 1998.

É muito visível a quantidade ínfima de mulheres na área de informática. Tanto no curso técnico quanto na faculdade, e em todas as empresas que trabalhei, sempre notei que as mulheres ou não existiam, ou eram a minoria absoluta nas equipes. Na faculdade, de 40 alunos inicialmente, apenas cinco eram mulheres.

Durante algum tempo da minha vida trabalhei com um nome masculino, e me identificando como gay (afeminado ou, traduzindo, bicha pintosa). Percebia que, apesar desse “detalhe”, as empresas contatavam-me bastante e não era nada difícil conseguir colocação no mercado de trabalho. É bom salientar que a área de informática carece de profissionais, dado que absolutamente tudo hoje em dia é tecnologia, toda empresa, de todo segmento, geralmente precisa de um sistema: sabemos que no Brasil, há mais vagas que profissionais nessa área.

A partir do momento que passei a enviar currículos com nome feminino, comecei a perceber que a quantidade de contatos para participar de processos seletivos diminuiu, mas imaginava ser apenas impressão.

Resolvi fazer o teste há uma semana. Enviei currículos para 15 vagas diferentes, sempre em par: mandava um com o nome Daniela e outro com um nome masculino. Só alterei a disposição das experiências profissionais, e mudei o nome da faculdade que cursei.

Em todos os casos, a vaga era para Analista Programador Pleno ou Sênior em ASP.NET + C#.

Para o nome masculino, para os 15 currículos recebi 11 ligações; para o nome feminino, foram 6 ligações.

Há alguns dias estive em uma entrevista. Ao telefone, a recrutadora disse que meu currículo era perfeito para a vaga e marcou o encontro. Quando terminamos a entrevista, ela disse que entraria até o final da semana em contato comigo para falar quando seria a próxima etapa do processo seletivo, e perguntou-me se eu tinha empresa aberta em meu nome (a vaga era como PJ [como geralmente acontece nessa área], ou seja, você precisa ter empresa aberta em seu nome para emitir nota fiscal). Relatei que acabei de ter uma decisão judicial favorável à mudança do meu nome por eu ser uma mulher trans, e que, em razão disso, pode ser que demorasse um pouco para eu conseguir a alteração de todos os meus documentos e a retificação do registro da minha empresa na Junta Comercial e Receita Federal. Foi quando ela perguntou: “como assim, mulher trans?”.

Expliquei para ela que se tratava de transexualidade, e que as pessoas transexuais eram aquelas que não se identificavam com o gênero imposto quando nasceram.

Ela então retrucou: “Isso significa que você nasceu homem?”.

Respondi: “Isso significa que nasci com determinado genital, mas me identifico como mulher”.

E ela fez uma cara de interrogação e terminou: “Vou ver com o gestor da vaga se ele aceita essa condição”. Despediu-se de mim em seguida.

Como ela não mais entrou em contato, liguei para a empresa para saber uma posição. Quem atendeu foi outra pessoa, então eu pedi para falar com a recrutadora. Me identifiquei: “É a Daniela Andrade, eu fiz uma entrevista com ela e ela ficou de me dar um retorno para a próxima etapa do processo.”

A moça respondeu que a recrutadora estava em outra ligação, pediu meu telefone e disse que em breve me retornariam.

Deixei o telefone e desliguei. Passados alguns minutos, recebo um email da recrutadora que havia me entrevistado, agradecendo a minha participação no processo seletivo, mas que eu não tinha o perfil da vaga.

Hoje estive em outra entrevista de emprego. O homem que me entrevistava perguntou-me assim: “Como você lida com o preconceito no ambiente de trabalho?”.

Respondi: “Eu sempre espero que o gestor perceba a situação e a resolva, caso isso não aconteça, eu comunico esse fato para ele ver como proceder”.

“Mas e se o gestor não resolve, você faz o quê?”

“Fica difícil trabalhar num ambiente onde você está sendo discriminada, se a gestão nada faz para modificar isso, creio que o melhor é deixar a empresa.”

Ele rebateu: “Compreendo. Agradeço a sua presença, e em breve entraremos em contato com você”.

Uma entrevista em que pouco se falou da minha experiência profissional (ele se dizia gestor técnico), quase tudo girando em torno da minha vida pessoal.

Bem, percebe-se que em espaços dominados por homens, é muito difícil que uma mulher seja vista como tão profissional quanto os demais; de modo geral, se um homem erra, “é apenas um erro”. Se uma mulher erra: “tinha que ser mulher”, e se a transmulher erra: “mas quem contratou esse traveco?” [Já fiquei sabendo que usaram essa pergunta em relação a mim em determinada empresa]. Cansei de, nessa área, ouvir da boca de homens que “mulher na área de informática com talento não existe, elas entram nessa área pra conseguir homem”.

E já ouvi homens dizendo que “fulana com certeza deu pro gerente pra estar no cargo que está”. Porque claro que se uma mulher galgou um cargo superior, jamais foi pelo talento dela! Sempre foi com a ajuda (obscura) de um homem. Ou também: “Fulana é uma ótima programadora, deve ser sapatão” – fazendo uma clara analogia entre “ser sapatão” com “ser homem”.

Agora, imaginem ser mulher transexual ou travesti dentro de uma área como essa. Dentro da minha experiência e de tudo que passei, posso dizer que as empresas preferem ter um gay afeminado em seu quadro de funcionários que uma transmulher. Talvez porque pensem que o gay afeminado ainda assim está dentro das regras que impõem que ter pênis é ser homem; mas uma transmulher já é demais.

E bem, não adianta tomar a exceção para falar da regra. Porque seria o mesmo que tomar Joaquim Barbosa (presidente do STF) para dizer que o mercado de trabalho não é preconceituoso com os negros – até porque as pessoas negras são maioria da população, e vamos contar quantos ministros do STF eram/são negros ao longo da história do judiciário. E há quem diga que negros não conseguem emprego porque não querem, da mesma forma, ouço que as pessoas trans*, idem. Pois é evidente que racismo, misoginia e transfobia não existem; apesar da última pesquisa DIEESE dizer que negros e mulheres fazem parte de um grupo que nunca deixa o desemprego. Que é mais fácil para um homem branco se recolocar no mercado de trabalho, que para essas pessoas.

Daniela Andrade é uma militante e ativista trans da cidade de São Paulo, buscando em sua luta a atenção para a causa dos Direitos Humanos no Brasil. É membro da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-Osasco, empreendendo ações de inclusão para a população LGBT; diretora da Liga Humanista Secular – LiHS, lutando pelo laicismo do estado e pelo humanismo no Brasil; membro do coletivo Feminismo sem Demagogia, atuando na erradicação do machismo e misoginia, assim como na luta pela equidade de direitos entre os gêneros; membro do coletivo Juntos! LGBT, repensando e atuando na efetiva mobilização na luta contra a discriminação em função de identidade de gênero e orientação sexual. Possui atuação em frentes de luta pela visibilidade das pessoas trans no Brasil, no tocante à participação, protagonismo e direitos negados a essa população. Acredita que um país mais justo é possível, desde que as pessoas repensem as opressões de forma interseccional: todas as opressões estão de alguma forma interligadas e afetando determinados grupos populacionais historicamente oprimidos, o que vem a acarretar em prejuízo para a sociedade como um todo.

Fonte: Feminismo pra quê?/Carta Capital
Texto: Nádia Lapa
Data original da publicação: 31/10/2013

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