Jacques Távora Alfonsin
Fonte: RS Urgente
Data original da publicação: 08/01/2015
O piso salarial das/os professoras/es do Brasil foi fixado este ano em R$ 1.917,78, um valor bem inferior à metade (!) do que recebe um/z juiz/a só de “auxílio moradia”, hoje subindo a R$ 4.377,77. Tomados os salários de dezembro de 2014, esse piso é 15 (!) vezes inferior ao de um/a ministra/o do Supremo Tribunal Federal, que, naquele mês, ganhava R$ 29.462,25 e 13 vezes inferior ao de um deputado federal, cujos vencimentos chegavam a R$ 26.723,13.
Para explicar a histórica desconsideração dessa desigualdade gritante e o determinado pela lei a respeito desse piso, alguns Estados da Federação se defendem com dois argumentos, principalmente: o dos “limites do possível”, ou seja, as previsões orçamentárias de aplicação dos dinheiros públicos não permitem o pagamento do piso nos valores estabelecidos pela União, e o do “contingenciamento de verbas”, onde se mede a execução orçamentária em curso comprometida em pagar dívidas públicas já vencidas ou na iminência de vencer, atender emergências imprevistas, resultantes de catástrofes naturais ou derivadas de crises econômicas “próprias do mercado”, falências, inadimplências mais ou menos generalizadas.
Essa argumentação aparentemente séria e incontestável não resiste a uma simples comparação entre os salários permanentemente achatados das/os professoras/es e a remuneração paga às chamadas “carreiras jurídicas” do Poder Público. Ela arrisca passar até por insincera e simplória, pois, quando se trata de aumentar, ano após ano, os salários das/os integrantes daquelas carreiras e dos deputados, dos cargos públicos do primeiro escalão do Poder Executivo, nenhuma lembrança se faz a qualquer limite do possível ou contingenciamento de verbas.
Vítimas dessa desigualdade, é raro o ano letivo que não sacrifica as férias das/os professoras/es, em função dos dias em que, reivindicando seus direitos, fazem greve
Se a política pública de educação é mesmo prioritária para o país, como se depreende até do percentual de aplicação de 25% da receita resultante de impostos por parte da União, e 18% por parte dos Estados, reservados para ela, conforme determina o art. 212 da Constituição Federal, uma das prioridades para isso efetivamente acontecer é remunerar bem o magistério, passe o óbvio.
Isso ficou provado quando, em 2006, uma emenda constitucional de nº 53 modificou o art. 206, acrescentando-lhe um inciso (VIII) e um parágrafo único. O inciso tem a seguinte redação: “206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: … VIII – piso salarial profissional nacional, para os profissionais da educação pública, nos termos de lei federal.”
A lei referida foi promulgada em 16 de julho de 2008, é de nº 11.738 e, em seu art. 2º já antecipava o valor de R$ 950,00, para o piso, naquela época. O hoje senador Cristovam Buarque, ex-reitor da UnB, demonstrou, em números, em estudo publicado ainda em 1999 (A segunda abolição, São Paulo: Paz e Terra), a chance de o país viver uma verdadeira revolução em matéria de boa aplicação das receitas públicas.
Obedecidas que fossem determinadas prioridades, em matéria de política pública de educação – gestões administrativas menos presas em burocracias e mais em co-participação das comunidades – percentuais pouco significativos das receitas públicas destinadas à tal política poderiam atender demandas as mais variadas, sendo suficiente desde que tais prioridades, inclusive orçamentárias evidentemente, respeitassem tais prioridades.
Para isso, todavia, considerava ele necessária, além de uma remuneração digna das/os professoras/es, uma forte motivação delas/es para um empenho dessa magnitude, o de colocar a educação e as/os professoras/es como próprio motor da erradicação da pobreza:
“A mais difícil tarefa da luta contra a pobreza é motivação dos professores para serem os vetores dessa revolução. O Brasil montou sua mania de economia prestigiando os engenheiros, economistas, metalúrgicos, desprezando os seus professores. Uma revolução nas prioridades para erradicar a pobreza, contando com a educação como motor, terá que inverter o objeto deste prestígio. Para lutar contra a pobreza, o herói brasileiro terá que ser o professor, como no crescimento econômico os heróis foram os economistas, os engenheiros e os metalúrgicos.”
Mesmo que se possa questionar os resultados sociais desse “crescimento”, em 1999 quando o estudo referido foi publicado, a prestação de serviço do/a professor/a ganhou nessa lição um relevo extraordinário e merecido.
Num sistema socioeconômico como o nosso, porém, onde o interesse e o direito individual, para não se dizer o egoísmo, ficam sempre acima de tudo, a maioria dos pais e mães das crianças desta geração, atualmente disputando matriculadas em milhares de escolas do país, consideram os salários das/os professoras/es como um problema completamente alheio às suas vidas. Isso não os/as impede de vigiar de perto a excelência da “qualidade do ensino”; se está conseguindo alcançar um nível de excelência para preparar suas/seus filhas/os ao ponto de competirem no “mercado de trabalho”.
O que há de obsceno nessa expressão tida como natural, capaz de fazer do serviço público prestado por um/a professor/a uma reles mercadoria, explica perfeitamente o pouco valor atribuído pela nossa sociedade a uma prestação de serviço dessa necessidade e grandeza. Ele corre o risco de ser puramente instrumentalizado para largar no mundo robôs desconfiados e agressivos muito hábeis em competir, sem outro objetivo que não o de ganhar dinheiro, passar quem quer que seja “para trás”, saber enganar, tratar a/o próxima/o como um/a adversária/o ou até inimiga/o a ser vencida/o, lidar com tablets, computadores e celulares com muita competência, mas infelizes idiotas em relacionamento humano afetivo e moral. Justiça social, solidariedade, gentileza e amor com o povo pobre nem pensar, pois ele mesmo é que não foi capaz de competir.
Não anda por aí a lição do senador Cristovam. A mudança de objetivo da política de educação e dos trabalhos profissionais do magistério, reféns do mercado, para a erradicação da pobreza, constitui, realmente, uma revolução,
No dia em que os pais e as mães das/os estudantes brasileiras/os se conscientizarem de que podem fazer essa mudança, empoderando os protestos públicos dos sindicatos de professoras/es, enchendo os endereços eletrônicos das autoridades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, aliando-se aos Conselhos e às ONGs de defesa dos direitos humanos, explorando massivamente as redes sociais, exigindo audiências públicas de questionamento das prioridades de aplicação dos dinheiros públicos, transformarão aqueles direitos em poderes de pressão política suficientes para garantir às/aos suas/seus filhas/os, à sociedade como um todo e ao próprio Estado, a realização do previsto em parte do preâmbulo da nossa Constituição:
“…instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…”
Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.