O paradoxo do trabalho escravo e ESG

Fotografia: SIT/MTE

Tratar o ESG como um capital moral e não estratégia de marketing, com práticas concretas para respeitar os direitos humanos e combatendo o trabalho análogo à escravidão.

Denis Coitinho

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 26/05/2023

Há um aparente paradoxo no campo dos direitos humanos no Brasil atualmente, a saber, quanto mais as empresas e empresários se preocupam com a responsabilidade ambiental, social e de governança (termo conhecido em inglês pela sigla ESG), mais tem se descoberto casos de trabalho análogo à escravidão em empresas ou organizações de grande porte localizadas nas regiões mais desenvolvidas do país, como na região Sudeste e na região Sul. Lembremos o caso de trabalho análogo à escravidão ocorrido com os safristas de uva que prestavam serviços às vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi que vieram à tona em fevereiro de 2023, bem como a denúncia de trabalho escravo no Festival Lollapalooza que veio à público em março do mesmo ano, festival este organizado pela empresa T4F Entretenimento. O problema que quero chamar atenção é que estas empresas declaram ter um comprometimento ético tanto com as causas ambientais, como com as causas sociais, bem como com a transparência e diversidade. Mas, então, como entender estes casos análogos à escravidão em seus domínios em pleno século 21, uma vez que o comprometimento social deveria implicar no respeito aos direitos humanos e, mais especificamente, deveria conduzir, no mínimo, ao respeito às leis trabalhistas? 

Trabalho escravo e produção de vinho 

Mas, antes de tentar entender esse paradoxo, vamos relembrar os casos em tela. 

Em 22 de fevereiro de 2023, numa quarta-feira, uma ação conjunta da Polícia Rodoviária Federal (PRF), da Polícia Federal (PF), do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) do Rio Grande do Sul resgatou 207 trabalhadores de vinícolas gaúchas em Bento Gonçalves que trabalhavam como safristas na colheita da uva, oriundos majoritariamente da Bahia. Uma denúncia permitiu a descoberta das condições análogas à escravidão em que estes safristas eram mantidos numa pousada da cidade. Foram identificados o monitoramento por câmeras, prática de tortura, alimentação estragada, cerceamento do direito de ir e vir por meio de vigilância, entre outras situações previstas pelo artigo 149 do Código Penal, que tipifica o crime de escravidão contemporânea no Brasil. 

O caso foi denunciado por um grupo de trabalhadores que conseguiu fugir do esquema e procurar a PRF em Porto Alegre. Eles relataram aos policiais que foram cooptados por aliciadores de mão obra (gatos) na Bahia e trazidos para a serra gaúcha para trabalharem para uma empresa que presta serviço às vinícolas da região. Eles contaram que trabalhavam diariamente, das 5h às 20h, com folgas somente aos sábados. Também denunciaram que representantes da empresa ofereciam a eles comida estragada e que só podiam comprar produtos em um mercadinho com preços superfaturados e que o valor gasto era descontado do salário, resultando na chamada servidão por dívida que os impedia de deixar o local. 

Trabalho escravo no festival de música 

Por sua vez, o caso Lollapalooza, ocorrido na cidade de São Paulo, veio a público um pouco antes do início do festival, que ocorreu entre 24 e 26 de março de 2023. Uma fiscalização do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE) nas instalações do festival afirma ter flagrado trabalhadores em condições degradantes, podendo ser enquadrado em regime análogo ao escravo. Segundo o comunicado do Ministério Público do Trabalho (MPT), os cinco trabalhadores desempenhavam a função de “carregadores por 12 horas durante do dia (das 7h às 19h) e durante a noite eram obrigados a dormir no Autódromo Interlagos, nos diversos pontos de estoque de bebidas, para fazerem a vigilância das cargas”. A ação de fiscalização considerou a produtora de eventos T4F e a prestadora de serviços Yellow Stripe responsáveis pela situação. Além do recolhimento imediato das verbas trabalhistas, as empresas respondem administrativamente pelas infrações e podem ser processadas pelo MPT. 

Importante salientar que a reação inicial das vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, bem como a da produtora T4F foi muito semelhante, a saber, elas responsabilizaram as empresas terceirizadas e tentaram se isentar da culpa pelo ocorrido, embora essa estratégia tenha sido rechaçada tanto pelos órgãos públicos competentes quanto pela sociedade como um todo. Por exemplo, as vinícolas Salton e Aurora emitiram um comunicado que dizia que não compactuavam com a violação de direitos humanos e que os casos análogos à escravidão eram de responsabilidade da empresa terceirizada Fênix Serviços Administrativos, responsável pela contratação e manutenção dos safristas. Similarmente, a produtora T4F disse em nota exigir que todas as empresas prestadoras de serviço garantam condições de trabalho aos seus funcionários e que encerrou o contrato com a terceirizada Yellow Stripe.  

Acontece que estas vinícolas, bem como a produtora, afirmam o comprometimento com o ESG, como pode ser visto em seus sites e declarações públicas, o que implica em respeitar e procurar integrar os aspectos ambientais, sociais e de governança em todas as etapas do processo produtivo. No site da Salton, por exemplo, está dito que ela “(…) está empenhada em integrar os aspectos ambientais, sociais e de governança em todas as etapas do processo produtivo e junto aos diferentes stakeholders que formam nossa cadeia de valor”. E no site da Aurora, encontramos a seguinte afirmação: “Através da relação com investidores e empreendedores, desenvolvemos um modelo voltado para a lucratividade, enquanto a responsabilidade social se faz presente em nossas iniciativas de cidadania, no engajamento das partes interessadas e na geração de emprego”. E no site da T4F há a afirmação de que “Dentre outras práticas a Time For Fun implementou seu Código de Conduta Ética, por meio do qual foram estabelecidos os propósitos, os valores e os princípios da Companhia e o que se espera de seus administradores, colaboradores, fornecedores, prestadores de serviços e parceiros, tendo como pressupostos a transparência, a integridade e a conduta ética em suas atividades e operações, visando a integridade e perenidade da Companhia”. Mas, como pode esse tipo de compromisso com o ESG resultar em uma terceirização da responsabilidade das condições de trabalho de alguns de seus colaboradores, uma vez que o trabalho destas pessoas é essencial para o seu sucesso? Será que estas empresas sabem de fato o que é ESG e qual é a extensão do comprometimento assumido por elas?

O que é ESG? 

ESG é uma sigla em inglês que significa EnvironmentalSocial and Governance, e corresponde às práticas de responsabilidade ambiental, social e de governança de uma organização que não se preocupa apenas com o lucro no mercado financeiro, mas que tem uma preocupação com o mundo no qual está inserida. O termo foi cunhado em 2004 em uma publicação do Pacto Global em parceria com o Banco Mundial, chamada Who Cares Wins, o que significa algo como “Quem Cuida, Vence”. Surgiu de uma provocação do secretário-geral da ONU Kofi Annan a 50 CEOs de grandes instituições financeiras, sobre como integrar fatores sociais, ambientais e de governança no mercado de capitais. Na mesma época, a Organização das Nações Unidas lançou o relatório Freshfield, que consistia em um relatório sobre os princípios para o investimento responsável e que mostrava a importância da integração de fatores ESG para avaliação financeira (Pacto Global, Rede Brasil, ESG, acesso em 11/05/23). 

Desde então, o termo ESG tem sido usado como uma métrica para nortear boas práticas de negócios, o que significa estabelecer critérios normativos-morais para orientar as diversas etapas da cadeia de produção e dos negócios. Alguns importantes aspectos que devem ser observados pelo ESG são: 

  1. Mitigação das emissões de carbonos em razão da poluição da água e do ar; 
  2. Respeito à biodiversidade; 
  3. Gestão de resíduos e rejeitos provenientes de determinada atividade; 
  4. Respeito aos direitos humanos e às leis trabalhistas; 
  5. Preocupação com a segurança e a saúde dos empregados; 
  6. Preocupação com a diversidade, equidade e inclusão nos locais de trabalho; 
  7. Combate à corrupção;  
  8. Combate ao assédio tanto moral como sexual; 
  9. Compromisso com a transparência e respeito à privacidade.

E, importante frisar, que estes e outros aspectos similares são fundamentais na análise de riscos e nas decisões de investimento das empresas. Assim, o ESG é importante porque mostra o compromisso da empresa com as questões imperativas de sustentabilidade ambiental, direitos humanos e democracia, uma vez que estas são questões urgentes de nosso tempo e são demandadas por toda a sociedade, mostrando o compromisso da empresa com a construção de uma mundo ético, inclusivo e ambientalmente sustentável, de forma a garantir a qualidade de vida das pessoas que formam a sociedade. Especificamente no que concerne ao S do ESG, isto significa assumir um dever moral de respeitar os direitos humanos, promover a justiça social, cumprir às leis trabalhistas e se preocupar com a segurança e saúde dos empregados, bem como significa defender a diversidade, equidade e inclusão nos locais de trabalho. Não se trata se apenas cumprir as leis, como uma obrigação externa, mas de se comprometer moralmente em cumprir essas leis e isso pelo compromisso com os valores de equidade, igualdade, integridade e justiça, por exemplo. E tudo isso deveria convergir na boa governança, com ética, transparência e responsabilidade, que efetivamente ajudam na prevenção do trabalho escravo e exploração da mão de obra em toda a cadeia de suprimentos. 

É claro que alguém poderia argumentar que essa maior visibilidade nas ocorrências de trabalho análogo à escravidão é uma consequência da reforma trabalhista feita no governo Temer em 2017, que flexibilizou uma série de garantias importantes aos trabalhadores. Mas, ressalto que os dois casos em tela estavam descumprindo às leis trabalhistas vigentes pós reforma, em razão do excesso de horas trabalhadas por dia e cerceamento da liberdade de ir e vir, entre outras razões. Tanto foi assim que as vinícolas tiveram que assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) no valor de R$ 7 milhões com o MPT. O TAC prevê 21 obrigações que tem o objetivo de disciplinar a contratação de serviços terceirizados e impedir que o problema volte a ocorrer. E no caso Lollapalooza, segundo o MET, os cinco trabalhadores estavam em uma situação de informalidade, não possuindo contrato intermitente de trabalho válido, embora um representante da prestadora de serviços tenha apresentado os contratos, mas disse que eles ainda não estavam lançados no sistema do eSocial. Mesmo com essa consideração, o que importa ressaltar é que o tipo de jornada de trabalho de 12 horas diárias e obrigação de dormir no local de trabalho contraria claramente as leis trabalhistas em vigor e não estavam previstas no contrato apresentado, mesmo que ainda não registrado. 

O que fazer? 

Entendido o paradoxo do trabalho escravo e ESG, o próximo passo seria perguntar se este problema tem alguma solução. Acredito que uma linha interessante de ação seria procurar esclarecer o significado do termo ESG socialmente, de forma que ele possa ser compreendido como os deveres morais que as empresas e organizações assumem nos âmbitos ambiental, social e de governança, e isso em razão de seu compartilhamento com os valores éticos de equidade, integridade, justiça, igualdade, sustentabilidade ambiental, por exemplo, e não por estarem obrigados pelo Estado ou pela sociedade a se comportarem de forma ética.  

Seria importante compreender que esse comprometimento não se trata apenas de um discurso retórico que alguma empresa ou organização poderia empregar para ter mais valor de mercado, mas se trata de um compromisso moral destas organizações, o que significa que é um compromisso assumido voluntariamente. E, em sendo voluntário, esse comprometimento pode ser visto como um capital moral, capital esse que pode ser perdido rapidamente, como a partir de uma percepção que a empresa não está se esforçando adequadamente para erradicar as injustiças ou para reduzir o impacto ambiental, por exemplo. 

Por isso uma estratégia eficiente para as empresas e organizações seria tratar do ESG não puramente como marketing, como uma forma de aumentar o capital econômico da empresa, mas tratá-lo como uma questão propriamente ética, como uma maneira de aumentar o capital moral destas organizações. Talvez assim, possa se ter mais claro que assumir publicamente o compromisso com o respeito aos direitos humanos e o cumprimento das leis trabalhistas é totalmente contraditório com a conivência às situações de trabalho análogo à escravidão. Talvez tratar o ESG como um capital moral possa representar um avanço na gestão, quem sabe oportunizando a conclusão de que o que realmente importa não seria a estratégia de marketing propriamente dita, mas a criação de práticas concretas para respeitar os direitos humanos combatendo o trabalho análogo à escravidão e para cumprir todas as leis trabalhistas, inclusive, se preocupando com a segurança e saúde dos empregados, por exemplo, bem como com a criação de práticas para combater tanto o assédio sexual quanto moral e todo tipo de corrupção que deterioram as estruturas coorporativas. 

 

Denis Coitinho é eticista, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos e pesquisador do CNPq. 

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