No longa de Uchôa e Dumans, destino do peão que se imaginava sem história – até escrever sobre si – é bifurcação entre prisão e a morte, únicos destinos.
Matheus Pichonelli
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 15/04/2018
A pior coisa do mundo para carregar é cimento. Cada quilo parece uma tonelada. Ou tem algo pior do que telha? Lenha é horrível. Tijolo e abóbora também. E porco vivo? Não tem nada pior que porco vivo. O sal queima a pele toda. Bom de carregar é ração pra peixe. Você vê aquele sacão gigante, vai pegar e é levinho. Ração de peixe é bom de carregar. Mas deixa o corpo fedendo. Batata é bom. Café, semente. Milho. Coxão de espuma.
Sentado na poltrona do cinema, fica difícil acompanhar sem um pico de culpa acomodada a conversa entre Cristiano, operário de uma velha fábrica de alumínio interpretado por Aristides de Sousa, e o caminhoneiro que o contrata para levar uma carga até Ipatinga. Eles se conheceram na cidade de Paraíso.
A ironia é um dos muitos elementos alegóricos de Arábia, filme de Affonso Uchôa e João Dumans que venceu o Festival de Brasília de 2017 e estreou na quinta-feira 5 em Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Niterói, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. A começar pela data da estreia, no mesmo dia em que o ex-presidente Lula, ele também um ex-operário, teve a prisão decretada pelo juiz Sergio Moro.
No filme de Uchôa e Dumans, o destino do peão que se imaginava sem história – até começar a escrever sobre ela e sobre si – é uma bifurcação entre a prisão e a morte, os dois únicos destinos certos. No caminho entre uma e outra está o cansaço e a exploração.
Arábia fecha uma espécie de trilogia do cinema contemporâneo nacional sobre a nova classe operária. Dialoga com Corpo Elétrico, sobre trabalhadores de uma confecção no Bom Retiro, e com o filme Pela Janela, retrato da melancolia de quem dedicou parte da vida a uma fábrica e descobre, depois dos 60, não ser nada além da força de trabalho sem gosto ou vontade.
O interior de Minas, para o operário de Arábia, é como o sertão dos cangaceiros-poetas de Guimarães Rosa: do tamanho do mundo. Como em Grande Sertão: Veredas, é o peão quem conduz a história em primeira pessoa, recurso apresentado pelos diretores através da leitura de um caderno encontrado por um jovem morador do bairro vizinho após o autor-protagonista sofrer um acidente de trabalho.
Mas o Riobaldo desta história não tem arma nem anda em bando. Naquele espaço atualizado, o líder da travessia é uma figura pulverizada, dispersa, quase sem rosto. É líquido, para usar uma expressão cara à contemporaneidade.
Durante boa parte do filme estranhamos a quebra da história em duas partes desiguais. No início, a câmera acompanha a rotina de André, jovem que a certa altura parece saído de O Filme da Minha Vida, de Selton Mello. Ele tem o cabelo comprido, despenteado, é responsável pela casa e pelo irmão mais novo, que está doente. É acompanhado em uma longa sequência de bicicleta em um dia frio; depois em silêncio, fumando. Mas a história não é sobre ele. Ou é também.
Quando se depara com o caderno do vizinho que se acidenta, ele descobre também que aquele operário de pouca conversa tem voz. Tem história, e a partir da reconstituição da própria história realiza um exercício de elaboração.
O ponto de origem é o abandono; o pano de fundo, um país em estado de desamparo, sem acordos formais mínimos que sintetizem qualquer segurança jurídica, trabalhista, social, religiosa – e consequentemente emocional. No lapso desse interior de abandono físico, o Brasil se manifesta na rasteira; não há proteção, Justiça ou boa-fé entre a classe trabalhadora e os donos da terra, da fábrica, do chão.
De bico em bico, o personagem tenta amarrar numa história o que parece ser uma fuga constante. Como quando cobra o patrão provisório o pagamento pelo serviço de colheita da laranja e ganha algumas caixas como trocado para ir embora sem reclamar.
Nas brechas daquele território dominado a solidariedade entre os homens aflora nos espaços mais exíguos: o presídio, o banco do passageiro, a cama, um ônibus abandonado, a varanda, o quarto da república onde os amigos bebem e cantam Raul Seixas no violão. Ninguém ali é besta pra tirar onda de herói, nem o líder sindical apontado pela cidade como arruaceiro.
A fé, ali, é também objeto de luxo. “Não acredito em Deus, só creio”, diz o irmão doente em uma das primeiras cenas. Como assim? “É mais fácil existir capeta do que Deus. Aqui só tem matação. Tiro. Morte. Não tem milagre.”
Em outra cena, é Cristiano, o dono do caderno, quem ouve de um companheiro de cela: “Será que Deus ainda lembra de mim?”
Cristiano, o operário, é quase um fantasma da própria cena; circula por aquele espaço não só como quem foge, mas como quem ocupa e se ocupa. Aquele é o país também de quem o construiu.
A interrupção de um filho, a certa altura, serve como subversão de outro clássico da literatura dedicada aos personagens anônimos que ainda hoje vemos pelas ruas, carregando placas do tipo “faço carreto” e de quem quase nunca reconhecemos a voz. Embora flerte com o território roseano, é em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que o roteiro de Arábia parece se embrincar.
No poema, não há melhor resposta para a morte do que o espetáculo da vida, a fábrica que ela mesma, de teimosa, se fabrica. Mas a explosão, no filme, não tem outro sentido se não a desconstrução que detona a consciência e interrompe o sono alienante.
No Brasil de 2018, o operário em desconstrução já não vem para detonar estruturas e contemplar a explosão. A explosão está abortada. O seu agente está ocupado demais em não morrer na contramão atrapalhando o tráfego.
Confira o trailer: