O novo velho continente e suas contradições: Os boias frias da Europa

A celebrada solidariedade europeia tem sido acusada de ser simples retórica diante do aprofundamento das desigualdades no mercado de trabalho neoliberal.

Celso Japiassu 

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 10/05/2021

Há redes internacionais que aliciam e exploram os trabalhadores migrantes. Alguns desses grupos foram desbaratados e chegaram aos tribunais portugueses. Cinco homens, três moldavos e dois romenos, estão sendo julgados em Beja por angariação, maus tratos e exploração de mais de cem trabalhadores moldavos e romenos em Ferreira do Alentejo.

Migrantes sem documentos do Norte da África e do Sul da Ásia são também explorados em condições semelhantes às de escravos em plantações da Espanha, Itália e Grécia.

O fenômeno dos “boias frias”, trabalhadores rurais mantidos sem contrato e sem garantias, em condições indignas e sem direitos, a troco de remuneração miserável, em situação de quase escravidão, está geralmente associado aos países pobres com uma elite de poderosos proprietários. Mas não existe apenas no capitalismo rural dos países periféricos. Na rica Europa, continente reconhecido pela produção agrícola sofisticada e moderna, os boias frias existem e são da mesma forma explorados quase como escravos nestes tempos do neoliberalismo econômico. Eles estão presentes na colheita de aspargos da Suíça e da Alemanha ou na apanha de uvas e frutas vermelhas da França, Espanha, Portugal, praticamente em todos os países da União Europeia.

As desumanas e obscenas condições de trabalho tornaram-se piores nos tempos da pandemia.

A celebrada solidariedade europeia tem sido acusada de ser simples retórica diante do aprofundamento das desigualdades no mercado de trabalho neoliberal. Pouco antes da Páscoa, milhares de romenos, amontoados no saguão do pequeno aeroporto da cidade de Cluj, em plena pandemia, aguardavam os voos para a Alemanha para trabalharem na colheita de aspargos. Nas propriedades em que iriam trabalhar estavam reservados grandes alojamentos onde seriam despejados ao fim do dia, sem qualquer distanciamento ou proteção para evitar a propagação da Covid-19.

Diante do bem sucedido confinamento da população e do fechamento dos negócios, o governo de Portugal aliviou as restrições mas anunciou um cordão sanitário em Odemira, no Alentejo. Foi detectada nos campos da região uma rede de contágio entre os trabalhadores estrangeiros contratados para a colheita de legumes, oxicoco, mirtilo, groselha, cereja, morango, framboesa e amora, que formam o elenco da produção local. Alojados em construções precárias e com o trabalho interrompido pelo surto contagioso, cerca de 13 mil trabalhadores estão também ameaçados pela fome. “Vivemos em dois quartos com três pessoas cada e pagamos 120 euros por cama. Neste momento não estamos a trabalhar por causa da covid-19 e não temos dinheiro para comer”, disseram ao Jornal de Notícias Kamal Sharma e Dinesh Mahato, naturais do Nepal.

A exploração dos trabalhadores

A situação de Odemira foi denunciada pelo próprio primeiro ministro de Portugal. Por sua vez o presidente do concelho de Odemira acrescentou que são milhares de trabalhadores estrangeiros sem condições sanitárias e de habitabilidade. Odemira é apenas um exemplo do que acontece em quase todos os países europeus onde são contratados trabalhadores estrangeiros para as colheitas agrícolas.

Em Odemira foi feita uma vistoria nos locais de alojamento e o governo deu um prazo de 24 horas ao proprietário, arrendatário ou responsável para resolver a situação. Dispor de um local alternativo em que possa garantir condições de salubridade ou então promover o transporte para os locais identificados pelas próprias autoridades. Por seu lado os trabalhadores que testaram negativo para Covid-19 foram transferidos pelo governo para um complexo turístico. O presidente da república disse que é preciso “tirar lições de Odemira” e que “é preciso apurar o que há de ilegal e, eventualmente, de criminoso neste caso”.

Há redes internacionais que aliciam e exploram os trabalhadores migrantes. Alguns desses grupos foram desbaratados e chegaram aos tribunais portugueses. Cinco homens, três moldavos e dois romenos, estão sendo julgados em Beja por angariação, maus tratos e exploração de mais de cem trabalhadores moldavos e romenos em Ferreira do Alentejo.

Migrantes sem documentos do Norte da África e do Sul da Ásia são também explorados em condições semelhantes às de escravos em plantações da Espanha, Itália e Grécia.

Diante do risco de apodrecimento dos aspargos porque já passava da hora da colheita, a Alemanha persuadiu a Romênia a autorizar voos charters para transportar trabalhadores temporários e assim salvar sua produção. Outros voos decolaram em direção ao Reino Unido com a mesma finalidade. Isolados do resto do mundo, com os seus passaportes na posse dos seus empregadores, os trabalhadores são obrigados a jornadas de 10 horas por dia, 7 dias por semana, e a pagar comida e alojamento. A Romênia está acostumada a fornecer mão de obra flexível e barata aos países ricos. E é bom lembrar que o capital ocidental investido na Roménia goza de uma das mais elevadas taxas de retorno da Europa.

Os trabalhadores romenos são um bem econômico para as médias e grandes empresas agrícolas alemãs, italianas, espanholas e do Reino Unido. Elas fazem lucros extraordinários à custa das difíceis condições dos trabalhadores deslocados que não possuem recursos para se defenderem. Numa ironia do capitalismo globalizado, os produtos dessa mão de obra acabam por retornar à Romênia nas gôndolas dos supermercados alemães ou franceses em prejuízo dos produtores locais.

Escravos

 A maior parte desses trabalhadores precários espalhados pela Europa é originária dos países do Leste, que estão em crise desde o colapso dos regimes comunistas no final dos anos 1980. São exemplos a Bulgária, Roménia, Sérvia, Macedónia ou Albânia.

Os governos neoliberais naqueles países substituíram os regimes comunistas mas não conseguiram evitar a miséria das suas populações. Passaram a ser fornecedores de mão de obra miserável e muito barata. Várias empresas transferiram para lá as suas fábricas para usufruírem da redução dos custos salariais. Os trabalhadores que essas fábricas não conseguem absorver são forçados a se submeterem ao regime de trabalho temporário em outros países, vítimas de um tipo de exploração e precariedade que o Brasil conhece bem sob o nome de boias frias. Submetem-se também às exigências das redes de tráfico internacional de pessoas que fazem o recrutamento, o transporte e oferecem a barata mão de obra aos empresários agrícolas.

Na Bulgária os operários da fábrica Pirin-Tex denunciaram as condições de quase escravidão em que trabalham. Essa empresa produz exclusivamente roupas da etiqueta Hugo Boss. É bom lembrar que Hugo Boss, fundador da marca, foi o designer escolhido por Adolf Hitler para criar os uniformes militares das SS nazistas. O trabalho de cada empregado é controlado por um tablet num sistema que acompanha todo o processo. Em média cada operário só consegue concluir 60% da quota que lhe foi atribuída. E sofre redução proporcional do salário que já é muito baixo. É um sistema organizado para controlar e explorar o trabalhador e não para racionalizar o processo de produção.

“Sentia-me como uma máquina. Chegava do trabalho, comia, às vezes dormia apenas quatro horas. Sentia um peso a esmagar-me, como se tivesse um peso nas costas”, contou Galina Georgieva, antiga operária da Pirin-Tex. A direção da Hugo Boss, com sede na Alemanha, diz que não há o que mudar na empresa que fabrica seus produtos na Bulgária porque em outros lugares as condições de trabalho são ainda piores.

A cidade búlgara de Gotse Delchev perdeu população nos últimos anos. Grande parte dos homens e mulheres válidos para o trabalho emigraram para trabalharem como boias frias em outros países europeus contratados pelas máfias de traficantes de pessoas que controlam essa atividade.

Admirável mundo novo. Voltarei ao assunto.

Celso Japiassu é um poeta, articulista, jornalista e publicitário brasileiro.

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