O novo velho continente e suas contradições: o mais repulsivo crime contra a dignidade humana

Vítimas de tráfico humano. Fotografia: Martine Perret/ONU

Enquanto nos países pobres as crianças são traficadas para trabalho em plantações, minas ou pedreiras, nos países ricos são vítimas de exploração sexual, tráfico de drogas ou para mendigar nas ruas. Há também os casamentos forçados, a venda de bebês ou remoção de órgãos para serem comercializados internacionalmente.

Celso Japiassu

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 28/06/2021

É o mais repulsivo dos crimes cometidos contra a dignidade humana. Representa um regresso da civilização aos tempos mais sombrios da História, um mergulho profundo na insensatez e do que é capaz a mente criminosa que se organiza para o exercício da violação em benefício do lucro. O tráfico de seres humanos para o trabalho escravo, a prostituição e a retirada de órgãos vitais para serem comercializados cresce no mundo e representa uma chaga na Europa, o continente contemporâneo e culto que tem sido referência da civilização. Em sua lógica absurda, segue com rigor os cânones e as práticas do mercado capitalista.

O tráfico humano é a forma atual de escravização das pessoas, normalmente transnacional e seus alvos são de todos os gêneros e idades. Envolve exploração sexual, incluindo a prostituição, trabalhos forçados, escravidão e a remoção de órgãos vitais. É responsável também, através de suas vítimas, pela atividade controlada e monitorada de “pickpockets”, os batedores de carteiras, furto em lojas e a maior parte da venda de drogas no varejo das ruas.

A internet com suas redes sociais é o mais destacado dos meios de recrutamento de vítimas. E também a exploração dos migrantes que em multidões viajam em condições miseráveis a fugir de guerras, perseguições e da miséria da fome. Em sua vulnerabilidade muitos caem nas mãos das quadrilhas dedicadas à seleção dos que podem ser explorados mediante a armadilha de oferecer ajuda, transporte, documentos ou abrigo. O número de crianças que sofrem esse tipo de crime triplicou nos últimos 15 anos, de acordo com os números expostos pelas Nações Unidas. E continua a aumentar entre adultos devido ao impacto da pandemia que deixa as vítimas mais sujeitas ao assédio dos traficantes. Milhões de pessoas sem trabalho, sem escola e sem apoio social estão em situação de maior risco. Mais de 50 mil casos em 148 países foram detectados no ano passado mas o número pode ser bem maior.

Um flagelo

O Conselho da Europa divulgou um alerta informando que a epidemia de Covid-19 agravou o tráfico de seres humanos no continente europeu, pedindo aos Estados para “reforçarem a prevenção desse flagelo”. Em seu relatório referente ao ano de 2020 afirma que “A pandemia (…) está a ter repercussões preocupantes no tráfico de seres humanos na Europa”. A alemã Helga Gayer, presidente do grupo de peritos que supervisiona a aplicação da Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos diz que os efeitos da pandemia tornaram “as vítimas de tráfico ainda mais vulneráveis”.

O relatório menciona o exemplo da Espanha, onde “as plataformas digitais como o Airbnb são cada vez mais utilizadas para alugar apartamentos destinados à exploração sexual, limitando assim a capacidade da polícia de identificar vítimas de tráfico. Na Alemanha, onde a prostituição é legal e regulamentada por lei, o relatório diz que adecisão de fechar temporariamente os bordéisresultou num “aumento da prostituição escondida” e num “agravamento das condições de exploração”.

Com a transformação digital que ocorre em todo o mundo os traficantes utilizam cada vez mais os recursos oferecidos pela internet. Fazem uso das plataformas digitais para a promoção das suas ofertas e para recrutar e explorar suas vítimas. Oferecem empregos atrativos ou vendem serviços online, principalmente de natureza sexual, a clientes pagantes. As informações pessoais dos usuários de redes sociais são rica fonte para a atração de futuras vítimas. Webcâmeras e lives reduzem a necessidade de contato pessoal. As redes Facebook, Myspace, Skype, WhatsApp e o russo Vkontakte são as mais usadas pelos criminosos, assim como os sites sucessores do interditado Backspace para anúncios classificados.

As estatísticas das Nações Unidas, em sua frieza, dizem que de cada 10 vítimas identificadas cinco eram mulheres adultas e duas eram meninas adolescentes. E um terço eram crianças. Enquanto nos países pobres as crianças são traficadas para trabalho em plantações, minas ou pedreiras, nos países ricos são vítimas de exploração sexual, tráfico de drogas ou para mendigar nas ruas. Há também registro de casos de casamentos forçados, venda de bebês e remoção de órgãos para tráfico internacional.

Mercadorias valiosas

Os traficantes estão no negócio do crime organizado. Eles enxergam as vítimas como simples mercadoria sem qualquer consideração pela sua dignidade. É um lucrativo negócio pois a venda de seres humanos pode chegar a milhões de dólares e favorece o crescimento de grandes organizações criminosas. As crianças são um alvo fácil nas redes sociais pela sua necessidade de aceitação, atenção e amizade.

A Interpol afirma que nos últimos anos o dinheiro arrecadado pelos traficantes de pessoas está quase nos mesmos níveis dos ganhos do tráfico de drogas e de armas.

Escritório da ONU para Drogas e Crimes – UNODC identificou duas estratégias para o recrutamento das vítimas nas redes sociais: a caça, em que o traficante persegue continuamente a sua vítima; e a pesca, quando são publicados anúncios de emprego e os traficantes aguardam a resposta das potenciais vítimas.

Mercado negro

Para fazer um transplante dentro da lei é preciso entrar numa fila de espera e aguardar até que surja a oportunidade de um doador. No Brasil, todos os anos morrem centenas de pessoas à espera de um órgão. No momento, há 46 mil pacientes numa fila que tem crescido 30 por cento a cada ano, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos-ABTO. Na Europa, contam-se 60 mil pessoas à espera de um transplante e uma média de 12 morrem todos os dias enquanto aguardam a sua vez.

Este é o principal motivo para a existência do mercado negro de órgãos humanos. Passo a informação com alguns exemplos dos preços praticados neste mercado sinistro. Segundo o FBI americano, os valores são em média os seguintes: Escalpo – US$ 607; Caveira com dentes – US$ 1.200; Ombros – US$ 500; Intestino delgado – US$ 2.519; Coração – US$ 119 mil; Par de olhos – US$ 1.525; Fígado – US$ 157 mil; Mão e antebraço – US$ 385; Litro de sangue – US$ 337; Pele – US$ 10 por polegada quadrada; Artéria coronária – US$ 1.525; Baço – US$ 508; Estômago – US$ 508; Rim – US$ 262 mil; Vesícula biliar – US$ 1.219.

Há cotação para toda e qualquer parte do corpo humano. Fico só nesses exemplos. Mas a tabela de preços é completa.

Dom José Traquina, Bispo de Santarém e presidente da Pastoral Social, em Portugal, chama a atenção para a existência de pessoas em “sofrimento profundo” e resume:

– “Os traficantes e exploradores de seres humanos são oportunistas da desgraça que se aproveitam das situações de pessoas em fragilidade, pobreza e insegurança para delas se apropriarem e explorarem. Na verdade, nunca tivemos tantos marginalizados, tantas pessoas consideradas inúteis que se tornam interessantes para a escravatura – são milhões”.

Celso Japiassu é um poeta, articulista, jornalista e publicitário brasileiro

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