Abalou o Festival de Cannes de 2019 e é mais uma joia da filmografia do autor de ‘Eu, Daniel Blake’, desta vez sobre a uberização da vida da nossa sociedade doente.
Léa Maria Aarão Reis
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 29/02/2020
Depois de meses de expectativa, finalmente Você não estava aqui, (Sorry we missed you, de 2018) chega aos cinemas de algumas cidades do país. Demorou, mas está aqui, esse recente filme do inglês Ken Loach, um dos grandes diretores da sua geração, que aos 84 anos continua trabalhando em plena forma e com forte e fértil atividade. Seu filme anterior, Eu, Daniel Blake, esteve em cartaz durante meses e foi grande sucesso de público. Na bagagem do cineasta repleta de prêmios, brilham duas palmas de ouro em Cannes. A do belo Ventos da Liberdade, em 2006 e, dez anos depois, a do filme em que o velho e doente aposentado Blake sofre com o descaso da assistência social pública britânica, um serviço antes exemplar e hoje em processo de desmonte pelas políticas neoliberais atuais.
Agora, ganhamos mais essa joia cinematográfica da filmografia do diretor, o oitavo trabalho com roteiro de seu grande amigo, o advogado e premiado roteirista Paul Laverty, e motivo de grande comoção em Cannes, ano passado, quando foi exibido.
Apesar do título desestimulante que se refere ao recibo assinado pelo entregador de aplicativo e colocado na porta do cliente quando este se encontra ausente, Você não estava aqui inicia uma temporada que, entre cinéfilos e plateias gerais, vem a ser a do novo filme de Loach; uma construção do espetáculo ignóbil de injustiça social.
O novo filme de Loach pode ser visto como uma suite de Eu,Daniel Blake. Em ambos, Daniel e Ricky (o motorista de aplicativo) acabam surtando com a pressão desumana e cotidiana sobre a sua existência, a mesma que vivem indivíduos das classes desfavorecidas – os idosos, que insistem em não morrer e não são mais de utilidade ao sistema, e os trabalhadores que viram desaparecer o chão das fábricas e perderam empregos e direitos trabalhistas.
Sorry, we missed you porém, menos intimista, amplia a narrativa do filme anterior relatando o desastre e o drama, não apenas da família, mas de toda a sociedade/zumbi que perambula perdida num mundo de crachás, celulares, dispositivos e aplicativos, lutando exaustivamente pelo dinheiro de uma mísera sobrevivência.
“A classe média fala sobre equilíbrio entre vida profissional e pessoal. A classe trabalhadora está presa é à necessidade,” lamenta Loach.
Para pesquisar o assunto que alveja o trabalho massacrante de entregadores de encomendas por aplicativos – a uberização do trabalho como é conhecido no Brasil – Laverty perambulou pelos estacionamentos de Newcastle, a cidade onde o filme foi girado, conversando com motoristas de entregas a domicílio e fazendo viagens em sua companhia, como relata Loach em brilhante entrevista ao jornal britânico The Guardian e publicada em Carta Maior em outubro do ano passado.
O ator principal, Kris Hitchen, numa interpretação tocante, é o trabalhador desempregado iniciando-se na vida de uberizado. Ele próprio trabalhou nos últimos vinte anos como encanador autônomo e muitos dos demais atores são motoristas de entrega na vida real. Fazem jornadas de 14 horas por dia quase sem folgas. Não têm tempo de parar nem para dormir o suficiente nem para ir ao banheiro. São monitorados com rigor e caso adoeçam e não compareçam ao trabalho, pagam multa.
Na sua entrevista inicial, Ricky ouve a cínica observação do gerente do depósito onde as encomendas são guardadas, a máxima da economia uberizada. ”Você não vai trabalhar para nós. Você vai trabalhar conosco. Aqui, você não ganhará salário. Você terá honorários.”
A atriz Debbie Honeywood faz a mulher de Ricky, a delicada e dedicada cuidadora de idosos, outra performance comovente. O casal de filhos da família, Seb e Liza Jane, são encarnados por Rhys Stone e Katie Proctor dois atores adolescentes afiados e integrados. O quarteto é irrepreensível.
Uma das chaves do filme, quando Ricky comenta com sua doce mulher, ”parece que está tudo fora de ordem e quanto mais trabalhamos mais nos afundamos num buraco”, nos fez relembrar a intervenção de uma personagem mãe de dois filhos entrevistada no documentário de curta metragem Vidas entregues, de Renato Prata Biar e seus colegas da Escola de Cinema Darcy Ribeiro sobre os ciclistas entregadores de comida. Ela resume o motivo de ter ingressado no time de ciclistas contestando: ”Empreendedora não; eu me considero desesperada.”
A última imagem do admirável filme de Ken Loach, um remanescente de uma das gerações – talvez da última – que ainda viveram a era do significado de essência humana, é a do desespero de Ricky. Como nas telas de Munch, O Grito.
Léa Maria Aarão Reis é jornalista e crítica de cinema.