O descaso de governos e políticos pela ameaça real da pandemia do novo coronavírus – anunciada há décadas – revela o desprezo histórico do Estado político do capital pelo trabalho vivo irremediavelmente desvalorizado na medida em que aumenta de forma exacerbada a composição orgânica do capital
Giovanni Alves
Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 20/05/2020
Com a pandemia da covid-19, a nova crise do capitalismo global adquiriu uma dimensão catastrófica. Venho desenvolvendo nesta minha coluna aqui no Blog da Boitempo, uma série artigos (em duas partes) intitulada justamente “Brasil, a catástrofe”. Tratam-se de reflexões sobre a catástrofe do desenvolvimento do capitalismo brasileiro a partir do golpe de 2016. Utilizei a palavra “catástrofe” para caracterizar nosso tempo histórico. “Catástrofe” significa em grego, katastrophe, “fim súbito, virada de expectativas”: kata-, “para baixo”, mais strophein, “virar”. Esta palavra teve a sua origem no teatro, no antigo drama grego. Katastrophe era o momento em que os acontecimentos se voltavam contra o personagem principal, num movimento ensaiado pelo coro inteiro no teatro. Pois bem, a covid-19 é uma doença infeciosa causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Literalmente, a partir de meados de março de 2020, a economia global deu uma “virada para baixo”. A “catástrofe” do capitalismo global em sua etapa de crise estrutural, tal como a catástrofe brasileira, representou uma mudança de perspectiva e ruptura nas expectativas de desenvolvimento histórico do sistema.
A pandemia e a crise em curso do capitalismo global
Nenhum analista da economia global no começo de 2020 imaginou que ocorreria uma pandemia desta proporção e com impactos diruptivos (e inéditos) na economia capitalista. Mais uma vez, fomos surpreendidos por um fato histórico contingente, embora, como iremos verificar adiante, bastante provável de acordo com vários epidemiologistas. De qualquer modo, foi um “acidente” histórico o novo coronavírus ter surgido e se disseminado quando a economia capitalista global parecia estar caminhando para uma nova recessão. Como observou Karl Marx, em 1871, a história seria muito “mística” se os “acidentes” não desempenhassem papel algum. Na medida em que o capitalismo mundial adquiriu uma dimensão global nas últimas décadas, o sistema mundial do capital tornou-se um sistema da complexidade, onde os “acidentes” tornaram-se parte compositiva do próprio desenvolvimento sistêmico: “Esses acidentes mesmos, caem naturalmente no curso geral do desenvolvimento e são compensados outra vez por novos acidentes” (Carta a Kugelman em 17 de abril de 1871). Portanto, quem considerou Marx um representante do determinismo histórico, deve ter-se surpreendido com o papel atribuído por ele, aos “acidentes” na dialética materialista da história.
A pandemia global do novo coronavírus foi um “acidente” decisivo desfavorável para a economia do capitalismo global. Na verdade, foi um terrível acidente que não apenas acelerou de modo inaudito o crash da economia global como expôs e constituiu – ao mesmo tempo – fragilidades estruturais e novas contradições sistêmicas do capital, respectivamente (por exemplo, o PIB da Alemanha, economia mais forte da União Europeia, deve encolher 6% em 2020 – o que seria a pior retração desde a Segunda Guerra Mundial).
Desde 2018, a economia global indicava uma nova desaceleração que poderia levar o capitalismo desenvolvido a uma recessão global em 2020. Uma série de indicadores do FMI e da OCDE mostravam nuvens negras no horizonte da economia global: Brexit, guerra comercial entre EUA e China e, mais recentemente, a queda do preço do Petróleo em fevereiro de 2020 por conta do conflito na OPEP entre Rússia e Arábia Saudita. Um informe emitido pelo FMI em 12 de janeiro de 2019, há pouco mais de um ano, observou que a expansão da economia global tinha enfraquecido: “O crescimento global para 2018 é estimado em 3,7%, como na previsão do World Economic Outlook (WEO) de outubro de 2018, apesar do desempenho mais fraco em algumas economias, principalmente na Europa e na Ásia. A economia global deverá crescer 3,5% em 2019 e 3,6% em 2020, 0,2 e 0,1 ponto percentual abaixo das projeções de outubro passado”. Logo depois, em 15 de outubro de 2019, um artigo no blog do FMI, alertou: “A economia mundial: desaceleração sincronizada, perspectivas precárias”. Acreditou-se numa desaceleração coordenada da economia global, um soft landing administrável capaz de evitar o crash ocorrido em 2008, quando o núcleo orgânico do capitalismo global foi atingido pela crise financeira. Entretanto, o alto nível de endividamento das famílias e empresas; os baixos índices de investimento produtivo nas economias da OCDE, inferiores àqueles que haviam antes da recessão global de 2008 (indicando a persistência da baixa lucratividade) e a queda persistente da produtividade do trabalho, demonstravam que o desenvolvimento das economia do capitalismo global não tinha conseguido sequer recuperar-se efetivamente da última grande recessão em 2008. Mesmo a China, a locomotiva do crescimento mundial, indicava queda nas suas taxas de crescimento (o crescimento tinha caído para 6,2% no segundo trimestre de 2019 – o menor já registrado – atingido pelo forte aumento nas tarifas dos EUA sobre produtos chineses em maio de 2019).
Ao mesmo tempo, os indicadores sociais para a década de 2010 nos países capitalistas centrais, e principalmente para os países capitalistas em desenvolvimento (como o Brasil a partir de 2015), expuseram um balanço dramático para o mundo social do trabalho: crescimento da concentração de renda, aumento da desigualdade social e da precariedade salarial (com a disseminação da “uberização” do trabalho). Por exemplo, apesar da expansão da economia e da redução do desemprego nos EUA, o que efetivamente cresceu no mercado de trabalho na década de 2010, foram os bad jobs, empregos de baixa qualidade no que se refere a salários e benefícios. Enquanto em 2019 o Presidente Donald Trump comemorava o desempenho da economia e a redução do desemprego, aumentava a insatisfação social por conta da nova precariedade salarial.
Por outro lado, encerramos a década de 2010 com denúncias crescentes expondo o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas. Tornava-se indiscutível que a humanidade está diante de uma crise ecológica de amplas proporções. O foco da luta do movimento ecológico dizia respeito à emissão de gases de efeito estufa, a devastação florestal, a poluição ambiental e as mudanças climáticas. Esta era a pauta do alerta global conduzido pelos rebeldes do movimento Extinção, tendo Greta Thumberg como símbolo da luta contra o catástrofe ecológica. Ao mesmo tempo, as tensões geopolíticas na década de 2010 entre EUA e Rússia nos fazia lembrar da ameaça nuclear. A corrida armamentista nuclear voltou na década de 2010, tornando-se cada vez mais perigosa.
Portanto, a problemática da conjuntura de crise do capitalismo global no final da década de 2010 dizia respeito, de imediato, às dificuldades de crescimento das economias à beira da nova recessão global; a disseminação da nova precariedade salarial e a precarização social do trabalho; e o colapso ambiental com o aquecimento global e as mudanças climáticas nas próximas décadas.
Mas de repente – e não mais que “de repente” – surgiu na China e disseminou-se para mundo, a epidemia do novo coronavírus. A partir de meados de março de 2020, o vírus foi devastando, pouco a pouco, a Itália, a Espanha, o Reino Unido e depois, os EUA com alto número de mortos. A expansão da pandemia foi desigual mas persistente, prosseguindo, pelo menos até agora, sua circulação pelo mercado mundial, acompanhando as cadeias de valor interconectadas no sistema global do capital. Na verdade, o lockdown e o confinamento das pessoas paralisou a circulação de mercadorias com impactos diruptivos no comércio e na produção do capital. Em pouco tempo, as economias capitalistas do mundo desenvolvido demonstraram a lei do valor e o altíssimo nível de socialização do trabalho. Numa carta a Kugelman de 11 de julho de 1868, Marx observou:
“Qualquer criança sabe que uma nação morreria se parasse de trabalhar não direi por um ano mas por algumas semanas. Sabe igualmente que as massas de produtos correspondentes a diferentes massas de necessidades requerem massas diferentes e quantitativamente determinadas do trabalho social total.”
Na medida em que a força de trabalho deixou de circular, impôs-se como uma força da natureza social, a lei do valor: “Leis da natureza não podem de modo nenhum ser suprimidas. Aquilo que em situações historicamente diversas se pode alterar é apenas a forma pela qual essas leis se impõem”.
A paralisia da economia de mercado representou o aumento explosivo do desemprego e da queda da renda das pessoas (em poucos dias, nos EUA mais de 20 milhões de norte-americanos solicitaram o seguro-desemprego). O espectro da fome apavora não apenas os países “pobres” do mundo capitalista, mas os países do capitalismo mais desenvolvido (como os EUA) numa proporção similar à Grande Depressão de 1930. Na medida em que se paralisou o fluxo de produção e realização do valor, as sociedades capitalistas entraram num estado de choque social.
O novo coronavírus tem uma função heurística: explicitar, de modo contundente, as profundas fragilidades das sociedades capitalistas mais desenvolvidos na proteção social. Países como os EUA, o Reino Unido, a Espanha e a Itália, entre mutos outros (inclusive o Brasil) pagam o preço pelas políticas de austeridade neoliberal que nas últimas décadas debilitaram os sistema públicos de saúde. De imediato, veio à luz a debilidade dos serviços de saúde pública no mundo desenvolvido – e em desenvolvimento – com um altíssimo número de mortos, principalmente os mais pobres e idosos (embora não se restringisse apenas a isso). É importante salientar que a pandemia do novo coronavírus tem um claro recorte de classe social, atingindo as camadas exploradas e desprotegidas das sociedades capitalistas. Por exemplo nos EUA, com mais de 30 mil mortos, a covid-19 está atingindo comunidades negras e pobres, o proletariado pobre que vive à margem do atendimento dos sistemas de saúde.
Crônica de uma tragédia anunciada
Afirmamos acima que a pandemia da covid-19 emergiu “de repente”. Mas, a rigor, não é verdade, pois há décadas epidemiologistas colocavam a possibilidade de uma epidemia dessas proporções. Portanto, já se tratava de uma ameaça real desprezada pelos governos e políticos – e inclusive, uma ameaça real ausente das análises de conjuntura de intelectuais renomados da política e economia de esquerda. Mas entre epidemiologistas e infectologistas de renome, o risco do surgimento de uma pandemia dessas na década de 2010 era quase a crônica de uma morte anunciada.
Por exemplo, no livro Pandemias: a humanidade em risco”, do infectologista Stepan Cunha Ujvari, publicado em 2011, ele afirmou: “A possibilidade de uma nova epidemia por algum vírus semelhante ao de 2003 [SARS, Síndrome Respiratória Aguda Severa] é considerável e virá, provavelmente, dos morcegos” (p.22). Mesmo uma personalidade do mundo dos negócios como Bill Gates chegou a prever, na década de 2010, a ocorrência de uma epidemia global. Ele afirmou em 2015 que “não estamos preparados para uma próxima pandemia”. Antes dele, Michael Osterholm, especialista em doenças infecciosas, tinha alertado há uma década e meia, que o mundo enfrentaria uma pandemia. Osterholm, da Universidade de Minnesota, escreveu na revista Foreign Affairs em 2005, que “este é um ponto crítico em nossa história. O tempo está se esgotando para nos prepararmos para a próxima pandemia. Precisamos agir agora com determinação e propósito” – alerta que ele depois reiterou em seu livro de 2017 intitulado Deadliest Enemy: Our War Against Killer Germs [O inimigo mais mortífero: nossa guerra contra os germes assassinos].
Robert G. Webster, autor de Flu Hunter: Unlocking the Secrets of a Virus [Caçador de gripe: desvendando os segredos de um vírus], de 2018, virologista de renome mundial, especialista internacional em influenza e um dos primeiros cientistas a reconhecer a ligação entre a gripe humana e a gripe aviária, se interrogou se outra pandemia fatal e perturbadora seria possível. “A resposta é sim: não é apenas possível, é apenas uma questão de tempo”, escreveu em 2018. “Milhões de pessoas podem morrer antes que uma pandemia seja controlada ou modificada”, acrescentou. “A natureza acabará novamente desafiando a humanidade com um equivalente ao vírus influenza de 1918. Precisamos estar preparados.”
Mesmo a comunidade de inteligência dos EUA, especialistas em saúde pública e funcionários do próprio governo Trump, alertaram no decorrer da década de 2010, que o país estava em risco de uma pandemia. Alguns dos avisos mencionaram especificamente a possibilidade de uma pandemia de coronavírus. Por exemplo, no documento da comunidade de inteligência estadunidense intitulado “Avaliação Mundial de Ameaças” (de janeiro de 2019), observou-se (em negrito): “Avaliamos que os Estados Unidos e o mundo permanecerão vulneráveis à próxima pandemia de gripe ou surto em larga escala de uma doença contagiosa que poderia levar a taxas massivas de mortes e invalidez, afetam gravemente a economia mundial, sobrecarregam recursos internacionais e aumentam os pedidos de apoio aos Estados Unidos.” Confirmando a previsão de cientistas, o relatório crava que haverá “surtos mais frequentes de doenças infecciosas”, por várias razões relacionadas a urbanização, globalização e mudanças climáticas, e afirma que as melhorias na segurança da saúde pela comunidade internacional “podem ser inadequadas”. Mesmo em 2018, o documento de “Avaliação Mundial de Ameaças” tinha alertado que uma “nova cepa de um micróbio virulento que é facilmente transmissível entre humanos continua sendo uma grande ameaça” – listando especificamente um coronavírus, o da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), como um com “potencial pandêmico.”
Marc Lipsitch, professor de epidemiologia, da Universidade de Harvard, observou num estudo de 2015, que o alto risco de um coronavírus, circulando entre morcegos na China, semelhante ao coronavírus da SARS (identificado em 2003), emergiria em seres humanos. E quando o novo coronavírus, o SARS-CoV-2, foi identificado na China no início de janeiro de 2020, especialistas em saúde nos EUA alertaram rapidamente que poderia ser um grande problema em todo o mundo.
Outro aviso de pandemia ocorreu em 2018 pela extinta equipe do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, responsável pelas pandemias (Trump extinguiu em 2018 o órgão). De acordo com o The Washington Post, a Dra. Luciana Borio, então diretora de preparação médica e de defesa da biodefesa do conselho, disse em 2018: “A ameaça da gripe pandêmica é a principal preocupação de segurança da saúde. Estamos prontos para responder? Temo que a resposta seja não”. Em 2018, John Bolton, então consultor de Segurança Nacional de Trump, dissolveu a equipe durante uma reorganização do NSC implementada logo após os comentários de Borio. Bolton tuitou no sábado que é “falso” que sua “racionalização” prejudique a “defesa biológica” do país.
Portanto, pelos relatos acima, a pandemia global do novo coronavírus não foi “um raio num céu azul”. Pelos exaustivos relatos acima, o governo de extrema-direita de Donald Trump foi informado pelos órgãos da inteligência norte-americana e especialistas em infectologista e saúde pública alertaram que o risco de uma pandemia global era uma ameaça real. Por que Trump se negou a reconhecer a ameaça real da pandemia? Eis a questão.
Necropolítica e crise estrutural do capital
Pelos vínculos orgânicos da extrema-direita com a necropolítica, o relato acima não deve surpreender. A lógica da produção destrutiva do capital, que em sua etapa de crise estrutural se manifesta como necropolítica, adquiriu com os governos de extrema-direita, a sua expressão máxima (o caso do governo Bolsonaro é o exemplo supremo do compromisso da oligarquia financeira, espinha dorsal do bloco no poder do capital em sua etapa de crise estrutural, com a necropolitica). Em 22 de abril de 2020, o relator especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos, Philip Alston afirmou: “Esta é uma crise que afeta desproporcionalmente as pessoas pobres, com maior probabilidade de ter problemas de saúde, morando em moradias lotadas, carecendo de recursos para ficar em casa por longos períodos e trabalhando em empregos mal remunerados que os forçam a escolher entre arriscar a saúde de seus filhos ou a perda de renda ”. E salientou: “Em uma falha moral de proporções épicas, a maioria dos Estados está fazendo muito pouco para proteger os mais vulneráveis a essa pandemia. Os governos fecharam países inteiros sem fazer esforços mínimos para garantir que as pessoas possam sobreviver. Muitos na pobreza vivem dia a dia, sem poupança ou excesso de alimentos. E, é claro, os sem-teto não podem simplesmente ficar em casa.” [o grifo é nosso]
Portanto, o que a covid-19 fez foi revelar a natureza necrófila do Estado neoliberal que opera a lógica da dessubstancialização do capital e a desvalorização generalizada do trabalho vivo na era da Quarta Revolução Industrial. É o que Andrés Piqueras revelou num livro publicado em 2018 intitulado (El viejo topo, 2018). Deste modo, a necropolitica tornou-se a política do capital diante da sua crise estrutural, exacerbada pela profunda crise do capitalismo global (como remos ver adiante, trata-se de uma dupla crise histórica: crise do capitalismo global e crise estrutural do capital). Ela é mera expressão da lógica da “produção destrutiva” do capital, como temos salientado a partir das reflexões de István Mészáros. A apropriação da pandemia global para matar pobres e idosos “sem valor”, de forma massiva, é o ato mais cruel e perverso do capitalismo global em sua etapa de crise estrutural.
Portanto, a produção destrutiva do capital e a necropolítica operam no momento de crise do capitalismo global, um novo darwinismo social, exterminando – literalmente os ditos improdutivos ou “pessoas sem valor” (na perspectiva do capital). Deste modo, assistimos em escala global, um retorno ao darwinismo social, onde apenas os mais aptos sobrevivem, enquanto os fracos, os pobres e os marginalizados morrem. Nesse caso, os mais aptos são aqueles com o status social mais alto, os mais altos na hierarquia social e reconhecidos como tais. Aqueles que já têm melhor saúde por melhor acesso a recursos, bem-estar material e social sobrevivem. No Reino Unido, o jornalista Toby Young, que já havia defendido o que ele chamava de “eugenia progressiva”, disse num artigo de 02 de abril de 2020 para o The Critics Magazine que “gastar 350 bilhões de libras para prolongar a vida de algumas centenas de milhares de pessoas idosas é um uso irresponsável do dinheiro dos contribuintes” (um detalhe: Toby é filho de Michael Young, político britânico que em 1958 criou o termo “meritocracia” no livro The Rise of Meritocracy).
Na verdade, não foi a covid-19 que desvalorizou as pessoas, mas ele expôs aquilo que está contido na lógica do capital que conforma as sociedade capitalistas no século XXI: a desvalorização generalizada do trabalho vivo na era da Quarta Revolução Industrial. O descaso de governos e políticos pela ameaça real da pandemia do novo coronavírus – anunciada há décadas – revela o desprezo histórico do Estado político do capital pelo trabalho vivo irremediavelmente desvalorizado na medida em que aumenta de forma exacerbada a composição orgânica do capital. A probabilidade de novas pandemias virais no século XXI – por conta das novas condições de desenvolvimento do capital – deve tornar recorrente o massacre de pobres e idosos pobres.
Por uma crítica radical da crise civilizatória
Finalmente, perguntemos: como explicar que analistas esquerda da cena mundial desconheciam tais riscos supremos da pandemia e seus efeitos na economia global no decorrer da década de 2010? Por que análises da crise ecológica feita por marxistas – desde a década de 1990 – ressalvaram mais a crise ecológica como destruição ambiental sem incluir a ameaça epidemiológica? Está nosso aparto teórico-categorial adequado para apreender a natureza inédita da crise histórica global que vivemos no século XXI? Talvez observar apenas o movimento da economia, mundo do trabalho e política não tenha sido suficiente para operar a crítica radical do capital como tarefa necessária e urgente do pensamento crítico.
Minha próxima coluna aqui no Blog da Boitempo se dedicará a abordar essa questão, propondo uma abordagem da crise histórica do capitalismo global numa perspectiva crítica e dialética, capaz de apreendê-la, não apenas como crise do modo de produção capitalista (ou das formações sociais capitalistas) ou crise da economia global, mas como crise do capital como modo de controle do metabolismo social. Tratam-se de categorias diferenciadas que se tornam necessárias para apreender a radicalidade do fardo do nosso tempo histórico (como diria István Mészáros).
A hipótese que procurarei expor na próxima coluna é a de que vivemos hoje a explicitação radical da dupla crise histórica da civilização do capital que exige de nós, um aparato teórico-categorial capaz de distinguir, num primeiro momento, modo de produção e modo de controle do metabolismo social, ou como Mészáros indicou, distinguir capital e capitalismo; e depois, num segundo momento, apreender a crise ecológica numa dimensão mais ampla, permitindo entendê-la como um dos elementos cruciais da presente crise estrutural do sociometabolismo do capital – ao lado, por exemplo, de outros aspectos da crise das “mediações de segunda ordem do capital” (família, trabalho, sociabilidade, cultura, moralidade e escassez social). Na verdade, a crise ecológica diz respeito às dimensões da (1) ecologia natural propriamente dita, tal como tem sido comumente tratada; e também da (2) ecologia social (e humana) – que tem vínculos orgânicos com a crise de socialidade; e por fim, à (3) ecologia viral, a dimensão epidemiológica que diz respeito à organização das relações Homem e Natureza (os vírus ou a ecologia viral, são produtos sócio-historicos do modo de intercâmbio do homem (ecologia social) com a natureza (ecologia natural).
A pandemia do novo coronavírus é a explicitação não apenas da crise ecológica, mas da crise estrutural do sociometabolismo do capital; ou a crise estrutural das mediações de segunda ordem entre o homem e a natureza (ou entre o homem e outros homens e o homem e consigo mesmo), compondo, ao lado da crise estrutural do capitalismo global (como modo de produção), a crise civilizatória do século XXI. Portanto, não se trata de mais uma entre outras crises do capitalismo industrial desde o começo do século XIX; mas sim, de uma crise radical da civilização do capital pois faz emergir de modo diruptivo, a crise do modo de produção e a crise do capital como modo de controle do metabolismo social, colocando em perspectiva não apenas a superexploração do trabalho e a barbárie social, mas a própria extinção da humanidade tal como a conhecemos.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org.