Relatório da OIT desfaz fantasia de Bolsonaro&Guedes e aponta fracasso da privatização: de 30 países que a adotaram, 18 já voltaram atrás. Entre os resultados, idosos na miséria e endividamento dos Estados.
Paulo Kliass
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 20/03/2019
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é um importante organismo multilateral que faz parte do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse ano ela comemora um século de existência, pois foi fundada ainda no âmbito do Tratado de Versalhes, na sequência do novo arranjo entre as nações, que foi estabelecido após o fim da Primeira Guerra Mundial. Assim, a OIT surgiu em 1919 e tem sua sede localizada em Genebra na Suíça. A instituição tem por objetivo central promover a justiça social em escala global, sendo a única dentre as organizações da ONU que mantém uma estrutura tripartite de representação em suas instâncias de deliberação. Isso significa que ali estão presentes representantes dos governos, dos trabalhadores dos empregadores.
Dentre as atribuições da OIT está o acompanhamento da situação dos trabalhadores e demais segmentos sociais em situação de risco ou de perda de qualidade de vida. Com isso, ela elabora relatórios e diagnósticos para sensibilizar os governos e a população mundial global a respeito de temas sensíveis. Esse é o caso da previdência e da seguridade social. Pois no início do ano, foi divulgado um importante relatório a respeito do assunto. O documento “A reversão da privatização da previdência: reconstruindo os sistemas públicos de aposentadoria nos países da Europa Central e da América Latina (2000-2018)” pretende apresentar um panorama da evolução dos regimes de previdência em diversos países, espalhados por diferentes continentes.
Países fogem da capitalização
Assim aprende-se que, durante a época de ouro do neoliberalismo em escala global, três dezenas de países abandonaram os sistemas públicos de previdência social e optaram pela implantação dos regimes privados de capitalização. O estudo revela que, entre 1981 e 2014, essas trinta nações que caminharam para a privatização de seus sistemas de pensões e aposentadorias estavam espalhadas da seguinte maneira: a) 14 na América Latina; b) 14 na região da antiga União Soviética e leste europeu; e, c) 2 na África.
Porém, o mesmo relatório demonstra que exatamente 18 deles, ou seja, 60% do total resolveram retornar ao modelo de previdência social pública entre os anos 2000 e 2018. Esse movimento denota de forma contundente a falência do sistema sugerido pelos manuais da ortodoxia financista, que sempre exerceram uma pressão enorme para que os governos incorporassem essa alternativa privatista como modelo de oferta de previdência para o conjunto de suas populações. O documento não deixa margem de dúvida a respeito do equívoco que foi tal opção:
(…) “Tendo em vista a reversão da privatização pela maioria dos países e a acumulação de evidências sobre os impactos sociais e econômicos negativos da privatização, pode-se afirmar que o experimento da privatização fracassou.” (…) [GN]
Um dos problemas mais graves que se oberva na transição para a via liberal financista do regime de previdência é que seus efeitos nefastos só serão sentidos no longo prazo, após algumas décadas de vigência do novo sistema. Esse fato é bastante compreensível, uma vez que, no período inicial, os bancos e demais instituições financeiras basicamente só arrecadam as receitas. No entanto, à medida que uma geração entra na inatividade e começa a buscar os benefícios previdenciários supostamente previstos no contrato estabelecido, eis que a realidade do engodo se manifesta. Esse é o processo vivenciado pelo Chile atualmente, quando a geração dos que iniciaram no novo regime financeirizado da década de 1980 foi buscar seus benefícios. O país que Paulo Guedes chama de Suíça da América Latina está com uma geração de idosos muito pobres e na miséria.
Cadê o dinheiro? O gato comeu!
E essa não é uma peculiaridade chilena. Por todo o mundo dá-se algo semelhante. Ocorre que aí o estrago está feito e os participantes não têm mais para onde correr. As instituições do financismo são sempre as primeiras a se precaverem de crises econômico-financeiras e não têm a menor preocupação em satisfazer os interesses da população. São centenas de milhões de indivíduos que contribuíram ao longo dos anos, de forma sistemática e a cada mês, para acumular valores que se transformariam em uma renda mensal vitalícia. Esse era o sonho combinado. Mas o recurso sumiu. E agora, vai reclamar com quem? Dirija-se, por favor, ao guichê ali no final do corredor.
O quadro descrito é impressionante. As consequências para os países que migraram para a capitalização falam em uma redução expressiva das taxas de cobertura. A grande maioria sofreu uma redução dos índices das camadas populacionais que poderiam usufruir dos benefícios previdenciários após as mudanças. Em alguns países a taxa de cobertura estagnou, mas não foi observado nenhum aumento na ampliação de potenciais beneficiados depois da migração para os modelos de capitalização.
Além disso, os números demonstram que os valores dos benefícios caíram depois da mudança. Ao contrário das promessas presentes o tempo todo no discurso do finacismo oficial, a opção pelas contas individuais reduziu os valores das aposentadorias e pensões. Uma vez que o novo modelo trata a previdência como mais uma mercadoria a ser oferecida aos consumidores nas prateleiras do supermercado do universo financeiro, não existe a quem recorrer. A seguridade social deixa de ser um direito de cidadania e um serviço público com garantia do Estado. Seus componentes se transformam em apenas mais um item de um contrato privado, como o seguro do carro, o seguro da casa, o seguro de vida ou o seguro de viagem.
O estudo da OIT revela também que essa migração para o mundo da capitalização reforçou as tendências já existentes de desigualdade de gênero, em prejuízo das condições oferecidas às mulheres. Além disso, como era de se esperar, a privatização promoveu uma elevação expressiva dos custos administrativos e de gestão dos fundos. Essa conta, por óbvio, impacta também negativamente nos benefícios líquidos a serem oferecidos aos participantes.
Por outro lado, o saldo final dessa aventura irresponsável acabou sobrando também para as contas dos respectivos tesouros públicos. Em todos os países analisados houve um impacto negativo nas contas dos orçamentos governamentais, uma vez que os custos de transição de um regime para o outro foram cobertos pelo Estado. E agora, mais recentemente, com a nova migração para o seio da administração pública, haverá ainda mais encargos fiscais. A conclusão a que o relatório da OIT chega é que os únicos beneficiados por esses movimentos todos ao longo de três décadas foram os bancos e as demais instituições do sistema financeiro. Eles conseguiram aumentar suas receitas e engrossaram seu patrimônio às custas dos trabalhadores, dos aposentados e do conjunto da população que custearam esse verdadeiro vai-e-vem dos regimes previdenciários.
Esperamos todos que o exemplo oferecido por esses países nos sirva como exemplo no debate atual da Reforma da Previdência. Ao contrário do que essa milionária campanha de publicidade oficial do governo do capitão tenta nos enganar, essa PEC 06/19 não tem absolutamente nada de “nova”. Muito pelo contrário, ela tem todo o cheiro do mofo e da contaminação proporcionados pelas tentações oferecidas pelo canto de sereia do financismo. Ela é velha e maldosa. Felizmente, a manifestação da OIT nos serve como alerta. Chama a atenção para o perigo de querermos reinventar a roda, ainda mais em um modelo que se apresenta até como meio quadrado.
Mais uma vez a banca nos seduz com as falsas promessas de um mundo melhor, caso adotemos a via do individualismo e do egoísmo nas soluções que devem ser sociais e coletivas. Guedes & Bolsonaro nos prometem o paraíso. Mas, na verdade, tentam nos atrair para a beira do precipício, com o risco de uma queda livre rumo ao desastre do passado.
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.