A mudança no panorama das negociações dos reajustes salariais é tão evidente que, nos últimos anos, o centro do debate das campanhas salariais deixou de ser a simples reposição das perdas inflacionárias e passou a ser a magnitude dos aumentos reais, a distribuição de renda e os ganhos de produtividade.
Luís Augusto Ribeiro da Costa
Ana Clara Demarchi Bellan
Rodrigo Linhares
Victor Gnecco Soares Pagani
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 02/07/2013
A greve é um instrumento legítimo da ação sindical dos trabalhadores e tem um importante papel no desenvolvimento da sociedade. Essa afirmação, oposta à visão de mundo que enxerga nas greves o sinal da desordem ou anomia social, tem forte embasamento na história do mundo moderno. Muitas conquistas da civilização, como a regulação da jornada de trabalho, a proibição do trabalho infantil, a igualdade de direito das mulheres, entre outras, resultaram das lutas empreendidas pela classe trabalhadora, nas quais a greve foi uma das principais formas de expressão.
No Brasil, desde a retomada da ação sindical no final da década de 1970, que teve como marco inaugural a greve da Scania, em 1978, os trabalhadores têm logrado trazer para o centro do debate nacional questões importantes para a construção de uma sociedade justa e democrática.
No texto “Ciclo de greves no Brasil, transição política e estabilização: Brasil, 1978-2007”, publicado na revista Lua Nova, n.76, Eduardo Noronha propôs uma periodização das greves no Brasil tendo por base o Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG-Dieese), em que aponta a existência de dois momentos específicos: de 1978 a 1997, chamado pelo autor de o primeiro grande ciclo de greves; e de 1998 a 2007, período de normalização das greves.
O primeiro momento guarda forte relação com a transição democrática brasileira. As greves são, nesse período, uma forte expressão da luta pela democratização da sociedade e reconquista da cidadania, quando são criados novos espaços de diálogo e surgem novas lideranças políticas, partidos e centrais sindicais. Ao mesmo tempo, as greves expressam os anseios mais imediatos dos trabalhadores, como a luta contra o desemprego e por melhores salários.
O ápice do grande ciclo ocorre entre 1985 e 1992, quando o Brasil registrou, segundo o autor, “um dos maiores níveis de paralisações da história dos países ocidentais”, com média de 1.105 greves ao ano. Vários acontecimentos influenciaram e foram influenciados pelo grande ciclo de greves vivido no país, entre os quais a ascensão do primeiro governo civil após a ditadura, as várias tentativas de controle da inflação, todo o processo constituinte e a eleição do primeiro presidente eleito por voto direto desde 1960.
O segundo momento, de “normalidade”, é caracterizado pelo autor pela redução do patamar do número de greves a níveis mais próximos aos padrões internacionais, sendo resultado da estabilização dos preços, do crescimento das taxas de desemprego e da mudança da percepção pública sobre as greves.
Contudo, à luz dos indicadores de greves dos últimos anos, é possível discutir a noção de “normalização”, dando-lhe novos matizes. Propõe-se, então, uma nova periodização: um momento de redução discreta no número de greves (1998-2001); um momento de relativa estabilidade em baixo patamar (2002-2007); e um momento de crescimento dos movimentos grevistas (2008-2012).
As greves de 1998 a 2012
Considerando apenas o número de greves anuais, verifica-se que nos anos 1998-2001 foi registrada uma média de 495 paralisações ao ano; entre 2002-2007, de 313 greves; e entre 2008-2012, 560 paralisações anuais, resultando numa curva suave em U (ver gráfico).
No entanto, se tomados exclusivamente esses dados, sem considerar outros indicadores, a flutuação do número de greves deixa de revelar uma mudança importante ocorrida no período e que teve seu ponto de inflexão entre 2002 e 2003. Desde 1995 – antes mesmo, portanto, do início do período de “normalização” – as greves eram majoritariamente defensivas, ou seja, traziam em sua pauta de reivindicações itens que expressavam a reação dos trabalhadores a perdas de direitos ou garantias conquistadas, tais como o pagamento de salários atrasados, pagamento de 13º salário e protestos contra o desemprego. A partir de 2003, as greves passam a ser majoritariamente propositivas, apresentando reivindicações de aumento da remuneração do trabalho ou de conquista ou ampliação das chamadas cláusulas sociais.
Entre 1998 e 2001, 71% das greves tiveram caráter defensivo, caindo para 50% no período 2002-2007 e correspondendo a 56% no período 2008-2012. As greves com caráter propositivo representavam 42% das paralisações do primeiro período, 64% do segundo e 70% do último.
A “virada” nas greves também é observada nos reajustes salariais. Segundo os levantamentos anuais do Sistema de Acompanhamento de Salários (SAS-Dieese), até 2003 (à exceção de 2000) a quantidade de reajustes acima da inflação – calculada pelo INPC-IBGE – era inferior à soma dos reajustes iguais ou inferiores a esse índice. A partir de 2004, a proporção se inverte, e os reajustes salariais passam a ser, na maioria, superiores ao INPC-IBGE.
A mudança no panorama das negociações dos reajustes salariais é tão evidente que, nos últimos anos, o centro do debate das campanhas salariais deixou de ser a simples reposição das perdas inflacionárias e passou a ser a magnitude dos aumentos reais, a distribuição de renda e os ganhos de produtividade.
O período das greves que se inicia em 2002 é, portanto, diferente do anterior, não apenas pelo menor número de paralisações, mas principalmente pelo caráter das reivindicações que apresentam. Essa mudança ocorre em um momento de retomada do crescimento econômico e de sucessivas reduções da taxa de desemprego metropolitano, que, em 2003, atingira o pico de 20% da PEA, caindo para um patamar próximo a 10% em 2012.
Nesse cenário de melhorias para a classe trabalhadora, as mobilizações voltaram a crescer, acentuando-se especialmente em 2012, quando atingiram o número de 873.
A categoria que mais realizou greves, entre 2008-2012, foi a dos metalúrgicos, com participação de 19% no total, mas foram os professores da rede municipal de ensino que ampliaram sua atuação, tendo promovido, no último período, 9% das greves.
Quanto à motivação, as reivindicações dos grevistas reforçam a tendência de aumento dos movimentos com caráter propositivo ao longo desses anos. O atraso de salários, que entre 1998-2001 era causa de 37% das paralisações, passou a corresponder a apenas 13% no último período; o reajuste salarial, antes motivo de 31% das greves, está presente em 47% delas. Outros itens de pauta que merecem destaque são: alimentação, presente em 24% das greves de 2008-2012, ante os 15% do primeiro período; o Plano de Cargos e Salários (PCS), antes presente em 8% dos movimentos, passando a representar 23% em 2008-2012; e a Participação nos Lucros e Resultados (PLR), antes 8%, atualmente 14%.
Mesmo o repique das greves defensivas de 2012 tem um caráter defensivo bem distinto daquele dos anos 1990, pois muitas delas foram promovidas pelos professores da rede municipal para garantir a aplicação do piso nacional, conquista recente da categoria.
A leve curva em U de 1998 a 2012 parece ter, portanto, mudado a pauta de reivindicações e o caráter das greves no Brasil. Não há como prever o que há de estrutural nessa mudança e o que apenas decorre da conjuntura atual, mas não se pode dizer que, nesses últimos anos, as greves ficaram paradas.
Luís Augusto Ribeiro da Costa é técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Ana Clara Demarchi Bellan é técnica do Dieese.
Rodrigo Linhares é técnico do Dieese.
Victor Gnecco Soares Pagani é técnico do Dieese.