O mito do cabide de emprego

Em tempos de ajuste fiscal, alguns políticos e uma parcela da população costumam defender cortes dos cargos de confiança, tecnicamente denominados de funções de Direção e Assessoramento Superior (DAS), como uma solução mágica para resolver eventuais problemas nas contas públicas. Boa parte da sociedade confunde esses cargos com os chamados “cabides de emprego”, criados especificamente para abrigar aliados políticos de parlamentares e governantes estaduais e federais.

Mas a realidade é diferente. Estudos do Ipea mostram que os DAS são cada vez mais ocupados por servidores de carreira e não, necessariamente, por pessoas que nunca tiveram uma função pública. Nos últimos 15 anos, formou‑se uma legião de servidores comissionados com ótimo nível de formação, o que tem gerado um processo de ampliação da profissionalização da gestão. Além disso, de acordo com esses estudos, o número de comissionados diretamente ligados a partidos políticos é relativamente baixo, o que vai de encontro à tese de que um DAS é, invariavelmente, uma pessoa alinhada ao poder central.

Nota técnica apresentada por Félix Garcia Lopez, técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas sobre o Estado (Diest), revela que o nível de influência do Poder Executivo na indicação ou remanejamento de servidores comissionados concentra‑se, quase que em sua totalidade, nos dois níveis mais altos, os chamados DAS de nível V e VI. Apesar disso, levando‑se em consideração o universo total de cargos de confiança, essas funções mais estratégicas representaram pouco menos de 6% do número de DAS registrados na administração pública federal no final de 2014.

Félix Lopez acha difícil que o Poder Executivo, com capacidade tão diminuta para nomear ou exonerar mais de 90% das funções públicas, tenha condições concretas de aparelhar a máquina pública brasileira apenas com aliados ou apadrinhados políticos. “As disputas políticas para influir na definição dos nomeados não se limitam aos dois níveis superiores, mas é irreal considerar que se estendam ao universo dos 23 mil cargos”, observa o técnico na nota Evolução e perfil dos nomeados para cargos DAS na administração pública federal. “O Presidente da República e lideranças políticas e partidárias influem nos cargos mais importantes e não exercem influência sobre a imensa maioria das demais posições”, atesta Félix Lopez.

Neste aspecto, a própria legislação coíbe esse tipo de interferência do poder central. O decreto-lei 5.497 obriga que os cargos sejam preenchidos com no mínimo 75% de servidores públicos e com pelo menos 50% de concursados dentro dos DAS de nível IV. Ou seja, existe cota mínima para distribuição destes cargos a servidores públicos de carreira para 94% dos cargos de confiança. A própria legislação, conforme o estudo, complica qualquer tentativa de aparelhamento político por meio dos cargos de confiança.

Os dados do Ipea mostram, por exemplo, que, dos 3,6 mil DAS de nível IV, 60% são servidores públicos de carreira. Mesmo nos dois níveis mais altos, o percentual de funcionários públicos federais concursados que exercem funções comissionadas é superior a 40%. Os servidores de carreira preenchiam, em dezembro de 2014, 57% das funções comissionadas de nível V e 42% das vagas DAS nível VI dentro da administração pública federal.

Crescimento

Uma crítica recorrente da sociedade refere‑se ao inchaço da máquina pública e à constante contratação de pessoas em cargos de comissão. De fato, de acordo com os estudos do Ipea, nos últimos 15 anos houve um aumento do número de comissionados dentro da estrutura do governo federal. Entretanto, esse fenômeno acompanhou uma tendência de crescimento de todo o corpo funcional dentro da chamada “burocracia civil” e também pode ser explicado pela criação de agências reguladoras e autarquias nos últimos 15 anos.

Em números gerais, o volume de DAS em 1999 era de 16,6 mil e chegou a 23 mil em dezembro de 2014. Destes 23 mil, apenas 30% não têm qualquer tipo de vínculo com o serviço público, conforme o estudo do Ipea. Os dados ainda mostram que metade desses 23 mil servidores com cargos comissionados é formada por servidores de carreira das próprias administrações públicas federais. Ou seja, quase 12 mil funcionários públicos.

Os outros 20% são servidores remanejados das carreiras públicas estaduais, de outros órgãos federais (por exemplo, um servidor do Ministério da Fazenda que é requisitado para trabalhar no Ministério da Educação), ou estão nas chamadas carreiras cujo exercício é descentralizado. Estes servidores estão vinculados diretamente ao Ministério do Planejamento e são remanejados para outras carreiras. “Estamos vivendo uma profissionalização cada vez maior do DAS. Esse não é mais um terreno politiqueiro”, assegura Lopez.

Acomodação x estímulo

O advogado Eduardo Ramos é servidor concursado há 30 anos, mas exerce função comissionada no Senado Federal. Apesar de ser concursado, ele acredita que o nível de profissionalização não está ligado ao fato de o DAS ter ou não passado por concurso público. “As carreiras são cada vez mais dinâmicas e não acho, necessariamente, que um concursado é melhor que um nomeado sem vínculo com o serviço público. Isso varia muito. Às vezes, um funcionário de carreira pode se acomodar e exercer trabalhos questionáveis”, opina o advogado.

O analista Antônio Souza, que trabalha no Ministério da Fazenda, pensa o contrário. Ele também é concursado, mas já exerce funções comissionadas há aproximadamente 10 anos. “Acho que as funções comissionadas funcionam como uma espécie de plano de carreira que serve como estímulo para que a gente possa procurar trabalhar mais e melhor. Além disso, também afasta a ideia de que todo comissionado precisa ter vínculo político com o governo”, observa o analista.

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Os estudos do Ipea mostram outro dado interessante nesse sentido. Ao analisarem o percentual de servidores públicos de carreira (tanto aqueles que fizeram carreira no próprio órgão como aqueles remanejados de outras repartições públicas), as pesquisas revelam que, mesmo nos níveis mais altos, a proporção de funcionários públicos que exercem funções comissionadas no Brasil é superior a 55%. Dois exemplos: dentro dos DAS nível VI existe um contingente de 57% de servidores concursados; já nos DAS de nível I, o volume de funcionários públicos chega a 73%.

Servidores de carreira

Para o diretor de Assuntos Legislativos da Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), João Paulo Ribeiro, o ideal era que todos os DAS fossem ocupados por funcionários de carreira. Inclusive para os cargos mais altos, como ministros de Estado. “Defendemos o ingresso de todo e qualquer trabalhador no serviço público e que o processo de ascensão ocorra mediante seleção interna. Não se pode indicar pessoas a toda hora e que não tenham o menor compromisso com o serviço público”, pondera. “É bom que existam mais servidores de carreira ocupando funções comissionadas. Mas ainda estamos longe do ideal”, acredita.

Em uma análise da série histórica, os dados apontam que o percentual de funcionários comissionados que não são servidores de carreira caiu nos últimos 15 anos mesmo nas carreiras mais altas. Em 1999, do universo de comissionados DAS VI, por exemplo, 53% não tinham qualquer vínculo com a carreira pública. Hoje esse contingente chega a 43%. “A Presidência da República não acompanha e influi em todas as áreas de governo; exerce controle fino apenas sobre uma fração das decisões tomadas em diferentes ministérios”, defende Lopes na coletânea Cargos de confiança no presidencialismo de coalizão brasileiro.

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Dentro da atual estrutura governamental, o Ministério da Fazenda é o que detém o maior volume de servidores públicos que exercem cargos comissionados. De seus 2,5 mil cargos DAS, 90% são ocupados por funcionários de carreira. Proporcionalmente, o Ministério das Relações Exteriores é o que detém o maior número percentual de carreiristas ocupando cargos em DAS: 90,5%.

Além deles, destacam‑se outros ministérios considerados de caráter mais técnico e que, por isso, têm um percentual alto de servidores de carreira em funções gratificadas, como os da Educação, Saúde, Previdência Social e Ciência e Tecnologia. Do outro lado, o extinto Ministério da Pesca e Aquicultura é o que tinha, no final do ano passado, a menor proporção de carreiristas ocupando cargos de DAS: apenas 6%. O Ministério dos Esportes também tem um percentual baixo de servidores de carreira em cargos de DAS: 12,9%.

Qualificação

Pelos estudos do Ipea, isso acontece basicamente em ministérios que não ocupam posição central na elaboração de políticas públicas. Além disso, segundo os autores do estudo, isso se dá tradicionalmente em ministérios relativamente novos, como o de Pesca e Aquicultura, criado em 2003 ainda como uma Secretaria Especial e extinto este ano em função da reforma ministerial feita pela presidenta Dilma Rousseff. “A escolha por nomear servidores de fora da carreira é uma decisão que combina a preferência das lideranças políticas e a disponibilidade da oferta de quadros qualificados no interior de cada ministério”, pontua Lopez.

“É inapropriada a afirmação de ter havido crescimento das nomeações por ‘fisiologismo’ ou do uso dos cargos como ‘moeda de troca’ no nível federal, embora saibamos que aspectos políticos têm a sua relevância para compreender o processo da formação de parte da burocracia pública”, acrescenta o pesquisador. Para ele, valorizar esse aspecto na formação dos quadros profissionais do funcionalismo público federal seria negligenciar o processo de profissionalização constante do próprio servidor público.

Apesar de não ter sido alvo do estudo, outra confirmação deste processo de profissionalização do funcionário comissionado está ligada ao fato de que ele também tem um nível de qualificação melhor. “Esta é uma análise empírica, baseada principalmente no fato de que o nível de instrução do brasileiro também aumentou nos últimos anos e que o serviço público requer uma mão de obra igualmente qualificada”, destaca Lopez.

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Outro dado que corrobora a tese de que os cargos em DAS não são necessariamente cabides de emprego à disposição de partidos refere‑se ao percentual de comissionados filiados a algum partido político. Pelos dados do estudo, do universo de 23 mil servidores comissionados, apenas 13,1% são filiados a algum partido. Somente para efeito comparativo, esse dado é parecido com o percentual de eleitores que têm alguma filiação partidária. Conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dos 142 milhões de pessoas que já têm título de eleitor (incluindo‑se os maiores de 16 anos e menores de 18), 15,3 milhões têm ligação com algum partido. Ou seja, quase 11% dos eleitores são filiados a alguma legenda.

Partidos políticos

Por nível de DAS, esse percentual varia, mas, mesmo nos níveis mais altos, a proporção de nomeados que são vinculados a partidos políticos é de, no máximo, 33,2%, como no caso dos comissionados DAS VI. Nos cargos comissionados de nível V, o percentual de pessoas vinculadas a partidos é de 16,8%. Nos níveis II e III, o percentual de filiação dos DAS chega a ser até mais baixo em comparação com o universo geral do eleitorado brasileiro. Apenas 10,2% dos servidores comissionados de nível III e 10,5% dos DAS nível II são ligados a partidos. Os pesquisadores devem buscar maiores dados sobre os partidos e a vinculação de cada DAS em novas pesquisas sobre o tema. Nos próximos estudos, o Ipea deve tabular quais as legendas das quais cada DAS faz parte.

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“A filiação ao partido político é um aspecto virtuoso de uma democracia que funciona por meio das agremiações, pois é um importante indicador de ingresso do cidadão no debate de ideias da arena pública e partidária. Categorizar filiados como um tipo indesejável no serviço público é diminuir uma virtude cívica relevante nas sociedades democráticas”, pondera Lopez. “Acho que, no geral, existe uma ideia muito equivocada sobre o servidor público e o cargo comissionado em si. Falta um pouco de informação e, nesse sentido, é necessário se desmistificar que todo comissionado só está lá por indicação política”.

O técnico acredita que um controle maior nas nomeações de cargos públicos seria uma medida eficiente para se evitar a vinculação direta entre corrupção e desvios de conduta de comissionados. “Corrupção e nomeações de confiança naturalmente se associam porque a prática corrupta é, em um dos lados, gestada por nomeados que ocupam posições de poder no aparato estatal. O controle sobre as nomeações é, nesse sentido, aspecto fundamental na relação com a corrupção, seja para coibi‑la, seja para praticá‑la”, aponta. “Embora motivos econômicos perpassem as lutas de poder por todos os setores da Esplanada, sua intensidade varia e, no caso das estatais, assume uma relevância que acaba por se tornar epicentro dos mais amplos registros de corrupção organizada. Tal percepção pode ser razoável, mas certamente é exagerada”, conclui.

Fonte: Desafios do Desenvolvimento/Ipea
Texto: Wilson Santos
Data original da publicação: 20/01/2016

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