Se a globalização tem corroído e reordenado os poderes dos e nos Estados-nação, não resolveu a contento o problema do exercício dos direitos de cidadania do adventício, ligados aos privilégios nacionais.
José Antonio Segatto
Fonte: Instituto Humanitas, com O Estado de São Paulo
Data original da publicação: 04/08/2016
Nos anos 80 do século 20 foi desencadeado um complexo e diversificado processo transformador que culminou com o ingresso do capitalismo numa nova fase, a globalização, expressa em mudanças como a reestruturação produtiva, afinanceirização da economia, a revolução técnico-científica, as políticas socioeconômicas neoliberais, a internacionalização extensiva e impetuosa de todas as relações, a debilitação da soberania e da autonomia deliberativa dos Estados nacionais, etc.
O processo de globalização implicou alterações múltiplas e substanciais:
1) o movimento do capital ganhou velocidade excepcional e sua capacidade de reprodução foi potencializada;
2) o mercado financeiro foi tornado global e virtual e o fluxo de moedas e capitais alcançou agilidade exponencial;
3) a circulação de mercadorias e capitais, o deslocamento de pessoas e grupos, em todas as direções e regiões, criaram condições para a desterritorialização econômica e o desenraizamento cultural e identitário, desalinhando ou dissipando fronteiras, reais ou imaginárias;
4) as relações de trabalho, a sociabilidade e a representação, os meios de informação e comunicação viram-se drasticamente alterados e transtornados;
5) a redefinição das atribuições e soberania dos Estados nacionais levou à corrosão da autoridade e da jurisdição, à efemeridade das instituições e esferas de representação e deliberação, fragilizando a sociedade civil e política (Parlamento e Judiciário, partidos e sindicatos, etc.) – o alcance e o significado da democracia foram obstados ou mesmo constrangidos.
Nessas circunstâncias, houve o deslocamento abrangente da indústria e dos serviços para a periferia do capitalismo, transferindo-se empregos e capital, com diminutos custos tributários, poucas exigências de reposição ambiental e alta rentabilidade.
No sentido inverso, os contínuos fluxos migratórios da Ásia, África e América Latina para a Europa e os Estados Unidos, permitiram a constituição de um exército de trabalhadores disponíveis, constituído de mão de obra barata. Concomitantemente, a introdução de novas tecnologias (informática, robótica, etc.) e métodos de gestão promoveu a reestruturação da produção e da circulação de mercadorias, eliminando, em larga escala, antigos postos de trabalho – aextinção de profissões tradicionais gerou uma população de trabalhadores excluídos por não se adequarem às exigências do mercado de trabalho, altamente competitivo. Podem-se juntar a esses fatos as sucessivas crises econômicas, como a de 2008, causada em grande medida pela financeirização da economia e pelas políticas de austeridade para combatê-la.
Em congruência com a globalização, desencadeou-se uma forte ofensiva contra o Estado de bem-estar social e a favor da desregulamentação das relações sociais e da supressão de quaisquer obstáculos à liberdade das mercadorias (inclusive a mão de obra) e à sua livre circulação. Movido pela lógica da economia política neoliberal, o processo de globalização, implementado nas últimas três ou quatro décadas, cobra agora seu preço. Mesmo nos países protagonistas na sua indução, parcela considerável da sociedade foi acometida por suas vicissitudes: crises econômicas, decréscimo da estatura e abrangência do Estado, subtração de direitos, aviltamento das condições de existência e aumento das desigualdades, contenção das políticas públicas, deslocamento de empregos e precarização das relações de trabalho, mercantilização brutal das relações sociais e humanas, esgarçamento de identidades coletivas, perturbação de sociabilidades, disseminação da insegurança e da instabilidade.
Ademais, se a globalização tem corroído e reordenado os poderes dos e nos Estados-nação, promovendo e intensificando o movimento de mercadorias e capitais, indivíduos e mão de obra em todos os países e continentes, não resolveu a contento o problema do exercício dos direitos de cidadania do adventício, que continuam sendo privilégio dos nacionais – ao mesmo tempo que criou um mercado mundial de produtos, capitais e mão de obra, não criou o cidadão do mundo.
Tomados em conjunto, esses fatores têm suscitado mal-estar e ressentimentos incomuns, particularmente nos países daEuropa e nos Estados Unidos. Têm também despertado patriotismos, promovido o reavivamento de ideologias políticas e religiosas fundamentalistas e conservadoras, intolerantes e anti-humanistas, potencializando extremos: direita tradicionalista – Frente Nacional (França), Ukip (Inglaterra), Pegida e AfD (Alemanha), Liga do Norte (Itália), etc.; e esquerda negativa – Podemos (Espanha), Movimento Cinco Estrelas (Itália) e outras organizações.
Emblemáticos desse fenômeno são o plebiscito, recém-realizado, que determinou a saída da Grã-Bretanha da União Europeia (Brexit) e a ascensão do candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump.
Não por acaso, as plataformas de ambos são quase análogas: defesa da soberania e resgate de valores e identidade nacional, fortalecimento das fronteiras contra a imigração, pregação do chauvinismo e da xenofobia, proteção da moeda, repatriamento de empresas, capitais e empregos perdidos, prerrogativa de direitos para os nativos. Trump promete que, com sua eleição, “o povo americano vai declarar novamente a independência dos Estados Unidos”.
Tais movimentos e organizações têm procurado reativar velhas concepções e práticas fundadas na recessão política e no déficit democrático, que, embora de triste memória, ainda vagam erráticas e continuam assombrando – com a barbárie e o apocalipse – os que prezam a liberdade e a igualdade, a fraternidade e a justiça. Isto posto, cremos que não é demasiado lembrar a advertência feita pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht numa de suas peças, no pós-guerra, ao se referir ao nazi-fascismo: “Ainda está fecundo e procriando o ventre de onde isso veio engatinhando”.
José Antonio Segatto é professor titular de Sociologia da UNESP.