O liberalismo enquanto forma de vida

O liberalismo não pode ser entendido e analisado apenas pelo viés da economia pois, desde o seu início, o sistema liberal foi pensado e organizado para moldar e controlar todas as esferas da vida

Marcelo Hailer

Fonte: Fórum
Data original da publicação: 24/04/2018

Algumas linhas de pensamento ligadas à sociologia, antropologia, filosofia e política têm atentado para o fato de que o liberalismo não pode ser entendido e analisado apenas pelo viés da economia pois, desde o seu início, o sistema liberal foi pensado e organizado para moldar e controlar todas as esferas da vida, isso desde o seu nascimento: em 1492, com a descoberta da América ou o chamado Novo Mundo.

Pensar no surgimento do liberalismo e do seu sistema econômico a partir da colonização da América e, posteriormente, da África, é a linha central do pensamento Descolonial (Quijano, Lugones, Grosfoguel, Anzaldua e Lander) pois, é neste tempo histórico, que o regime feudalista começa a sair de cena para dar lugar ao capitalismo colonial. É neste momento, também, que surgem as primeiras teorias sobre raças e identidades. A Europa, enquanto centro do mundo – no sentido econômico e epistemológico – e a América – enquanto espaço geográfico a ser explorado e ausente de saberes.

Além de servir como plataforma para a formatação do que viria a ser o capitalismo tal como o conhecemos, a colonização da América e de parte da África foi um grande laboratório para todo o tipo de política e credo racistas que imperam até hoje. À construção do convencimento aos reinados imperiais se fazia necessário uma ideia que justificasse os genocídios perpetrados nos dois continentes em questão, para tanto, formatou-se a ideia de se tratar de corpos desalmados e consequentemente, subdesenvolvidos na mentalidade. Ou seja, a colonização foi cristianizada como uma benção a estes povos “perdidos”.

A partir da constituição hierárquica da ideia de raças é que surgem as identidades “negro”, “mulato”, “índio”, “chicana” (Lugones, 2008). Todas estas identidades serão utilizadas para construir a imagem do “homem branco europeu” e das raças “inferiores” e “superiores”. Ou seja, é impossível pensar um liberalismo sem a premissa do racismo, pois, as raças serão úteis a esta doutrina para justificar – como o faz até hoje – o lugar de cada um no capitalismo, seja em qual etapa for deste sistema.

O sistema de raça será fundamental para a consolidação do liberalismo enquanto regime de vida a partir da segunda metade do século XVII.

Construindo uma forma de vida

Com a publicação de “A Riqueza das Nações” (Adam Smith, 1776), surge não apenas a ideia de um “livre mercado” que, aliás, à época foi considerado um escândalo pelos capitalistas de então, mas também todo um receituário de condutas de que o novo sistema deveria adotar, entre eles o abandono do regime escravista. Mas não se engane, Smith vai discorrer inúmeras páginas para justificar a sua proposta, mas não pelo viés humanista, mas unicamente econômico. Para o fundador do liberalismo, para que a expansão comercial avançasse de maneira plena era necessário abandonar o trabalho escravo e investir no trabalhador.

Mas, quando Adam Smith publica “A Riqueza das Nações”, o mundo ocidental já estava completamente racializado, logo, com a consequente abolição do trabalho escravo, estes encontrariam um “mercado” que ainda os trataria – trata até hoje – de maneira hierárquica – a disparidade salarial entre brancos e negros está aí para comprovar que ainda carregamos profundas marcas do sistema escravagista/colonial.

A partir do século XVIII, mas, com maior intensidade no XIX, surge aquilo que Foucault (2004) vai chamar de “governamentalidade”, ou seja, o governo das mentes. Nesta segunda etapa do liberalismo, ao contrário do que lemos por aí, o Estado será uma ferramenta eficiente e necessária para educar os corpos e suas respectivas vidas. Nesta etapa, o liberalismo (ou neoliberalismo) passa a editar normas de vida, quem resume muito bem este momento são os filósofos Dardot e Laval (2017), ao colocar que:

“O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida […] essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa”.

Atenção para a última linha da citação acima: o liberalismo constrói mentalidades que se pensam enquanto empresas. Aqui surge uma disputa de forma de vida que o campo socialista perde desde a queda da União Soviética (URSS) – que desde o seu início trabalhava para a construção do novo homem, assim como tantos outros revolucionários pregavam como forma de combater o modelo liberal: uma nova forma razão de ser juntamente com um novo sistema, que não mais funcionasse a partir da exploração de classe, raça e gênero, raiz do sistema capitalista.

Dentro desta linha de raciocínio a expressão que se tornou muito popular a partir da eleição de 2016 no campo da esquerda – “o pobre de direita” para justificar a eleição do alto número de governos liberais nos municípios – se mostra equivocada. Até porque, ao falarmos “pobre de direita” estamos assumindo que perdemos a disputa pela subjetividade e sonhos das pessoas por uma sociedade mais justa e não classista. Assumimos também que o projeto socialista foi derrotado por inteiro e que hoje fazemos uma luta por um “liberalismo mais humanitário”, coisa que não existe.

Quando pensamos em um regime fora do liberalismo o horizonte é um tanto desesperador mas, como tudo, trata-se de um processo histórico. Aqui e ali, no Ocidente, surgem propostas e governos que avançam, mas todos ainda dentro dos limites liberal. O fato é que por um bom tempo as formas de vida e governança serão ditadas pelo liberalismo – com algumas fissuras no caminho é certo -, porém, com aquela pitada de utopia e otimismo de que um dia iremos superar tal regime, que organiza os corpos a partir das classes, nações, raças, gênero e orientação sexual.

Referências:

A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal, Pierre Dardot e Christian Laval (Boitempo, 2017).

A Riqueza das Nações, Adam Smith. (Martins Fontes, 2016).

Colonialidad y Género, Maria Lugones (2008)

A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais, Anibal Quijano (CLACSO, 2005).

Marcelo Hailer é jornalista (USJ), mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutorando em Ciências Socais (PUC-SP). Professor convidado do Cogeae/PUC e pesquisador do Núcleo Inanna de Pesquisas sobre Sexualidades, Feminismos, Gêneros e Diferenças (NIP-PUC-SP). É autor do livro “A construção da heternormatividade em personagens gays na televenovela” (Novas Edições Acadêmicas) e um dos autores de “O rosa, o azul e as mil cores do arco-íris: Gêneros, corpos e sexualidades na formação docente” (AnnaBlume).

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