Como o auge dos robôs afetará o capitalismo? Joseph Stiglitz e Karl Marx nos proporcionam algumas ideias.
Branko Milanovic
Fonte: Carta Maior, com Bitácora
Data original da publicação: 06/05/2015
É sempre inspirador falar com Joe Stiglitz…
Numa conversa que tivemos em Paris, após sua participação na Conferência INET (The Institute for New Economic Thinking), ele observou que a elasticidade do intercâmbio entre capital e trabalho maior que 1, uma suposição habitual do livro de Piketty “O Capital No Século XXI”, combinada com um progresso tecnológico que não caia do céu, mas que se desenvolva em resposta aos preços dos fatores de produção, levaria a um processo explosivo que só poderia terminar com o capital se fazendo dono de toda a renda líquida de um país. Como?
Suponhamos que temos um tipo de juros R (de um 5%, por exemplo, como Piketty costuma supor), e um salário W. Suponhamos que, com essa proporção dos preços dos fatores, investir em processos mais intensivos se torna rentável (em processos, isso é, que reduzem o custo por unidade do produto). Assim, os capitalistas substituirão trabalho com capital e as proporções C/T e C/produto crescerão. Posto o intercâmbio de T por C é maior que 1, R só terá uma ligeira queda, enquanto os salários W crescerão ligeiramente. Ainda que os preços dos fatores, sendo rígidos, não variem muito, teriam que seguir se movendo até o ponto de fazer ainda mais atrativos os processos de intensificação do capital. Desse modo se daria um novo ciclo de forte investimento em capital, o qual, de novo, faria crescer as proporções C/T e C/produto, com mínimos efeitos nos preços.
Isso continuaria ciclo após ciclo, até que o produto inteiro possa ser produzido praticamente usando somente capital e, por acaso, uma ínfima quantidade de trabalho. Tanto R quanto W seguiriam quase como no começo, mas em vez de, ponhamos como exemplo, 100 máquinas e 100 trabalhadores, o que teríamos ao final seriam 100 robôs e um trabalhador. Quase todo o produto pertencerá aos proprietários do capital. O alfa de Piketty está próximo a 1.
A partir daí, em minha interpretação, o que Stiglitz sustenta é que a elasticidade do intercâmbio superior a 1 combinada com progresso tecnológico endógeno conduz finalmente a um equilíbrio explosivo. Esta é uma interpretação minha, e é bem possível que Stiglitz não esteja de acordo, ou que eu tenha perdido algum fator em meio a esse raciocínio.
A verdade é que, após falar com Joe, de volta ao hotel, pensei em outra coisa. Não seria isso, num certo sentido quase o contrário, e noutro sentido muito similar àquele processo apontado por Marx como o crescimento da “composição orgânica do capital”, que haveria de levar à eutanásia do capitalista (usando uma expressão de Keynes a partir duma perspectiva marxista)? Em Marx, parte-se da ideia de que mais processos de intensificação de capital são sempre mais produtivos. De forma que os capitalistas tendem a acumular mais e mais capital e a substituir o trabalho (de modo muito similar ao que acabamos de ver no exemplo de Stiglitz). Isso, numa perspectiva marxista, significa que cada vez há menos trabalhadores e que esses, obviamente, produzem cada vez menos mais valia (absoluta): e essa mais valia minguada, em comparação com uma crescente massa de capital, significa que a taxa de benefício cai.
O resultado é idêntico, se aplicamos o processo visualizado por Marx na forma clássica e supomos que a elasticidade do intercâmbio é menor que 1. Então, simplesmente, R tende a cair em cada ciclo sucessivo de investimento intensivo em capital, até que se aproxime do zero. Como escreveu Marx, cada capitalista individual tem interesse em investir em processos mais intensivos em capital, a fim de vender mais barato que os outros capitalistas, mas quando todos fazem o mesmo, a taxa de benefício cai para todos. De modo que o que fazem, no fim das contas, é “tirar do negócio”, ou mais exatamente, se moverem até uma taxa zero de benefício.
Quais são as semelhanças e as diferenças entre os dois resultados? Nos dois casos, o trabalho será substituído pelo capital numa proporção extrema, de forma que, em ambos, o grosso da produção será realizada por robôs. O emprego será insignificante. Em Marx, o equilíbrio final se daria com um R próximo a zero e um W (a hipótese de Marx) em nível de subsistência – evidentemente, com um enorme “exército de desempregados” como resultado. No caso de Stiglitz, os capitalistas terminariam com um R igual, e embolsando todo o produto líquido. No equilíbrio de Stiglitz, o único trabalhador subsistente terá um salário maior, mas ninguém mais terá emprego.
A renda líquida, no cenário de Marx, será baixa, porque só o trabalho produz “novo valor”, e se são poucos os trabalhadores que tem emprego, o “novo valor” será baixo (independente de quão alta seja a taxa de mais valia que os capitalistas consigam extrair). Para visualizar a ideia proposta por Marx, imaginemos milhares de robôs trabalhando numa grande fábrica e somente um trabalhador controlando todos eles, considerando apenas um ano de vida útil para todos os robôs: isso significa que será preciso trocar os robôs frequentemente, e traria enormes custos anuais em desvalorização das máquinas e reinvestimento nelas. A composição do PIB seria muito mais interessante. Se o PIB total é 100, poderíamos ter um consumo igual a 5, um investimento líquido igual a 5 e uma desvalorização igual a 90. Viveríamos num país com um PIB per capita de 500 mil dólares, mas 450 mil dólares seriam de desvalorização.
Para ver como isso funciona, imaginemos que se alguém tem uma renda de 1.100 dólares anuais e a utiliza para comprar um computador portátil que custa 1.000 dólares e cuja vida útil, como todo mundo sabe, é de um ano. Cada ano ele terá que gastar a maior parte de sua renda para substituir esse computador, e a renda líquida disponível continua pequena. Para tornar as coisas ainda piores, suponhamos que, com cada ano que passa, na medida em que esse alguém compita com outros que têm outros computadores portáteis, necessitará incrementar esse gasto em 5%, e sua renda líquida vai baixando, ainda que a pessoa viva em meio a uma montanha de computadores portáteis.
No cenário pensado por Stiglitz, em certos sentidos, tem uma aparência muito similar: teríamos as mesmas fábricas imensas, infestadas por milhares de robôs, mas seu produto marginal seria elevado e todo produto líquido seria apropriado pelos capitalistas.
Para o trabalho, em ambos os casos, não restará quase nada, pelo simples motivo de que praticamente ninguém tem emprego. Uma utopia bastante negativa, seja como for. Mas não totalmente: no caso de Stiglitz, poderíamos carregar os capitalistas com impostos e usar esses recursos para ter potenciais trabalhadores felizes, desfrutando de muito ócio, vendo televisão e brincando com jogos divertidos, em seus computadores portáteis. No cenário descrito por Marx, a renda líquida seria baixa, ainda que nos levasse a viver num mundo repleto de complicadas máquinas. Logo, não haveria muito o que redistribuir. Qual deles vocês preferem?
Branko Milanovic é um economista sérvio-estadunidense. Especialista em estudos da relação entre desenvolvimento e desigualdades, professor do Graduate Center da City University of New York (CUNY) e investigador titular no Luxembourg Income Study (LIS). Anteriormente, foi economista chefe do Departamento de Investigação do Banco Mundial.