Javier Pellegrina
Fonte: Estrategia.la
Tradução: DMT
Data original da publicação: 26/11/2018
O governo da província argentina de Jujuy – o mesmo que mantém presa já há quase três anos a líder social e deputada parlamentar Milagro Salas – deu luz verde às empresas de tabaco e outros grupos empresariais para contratar menores de idade.
Ao longo de 2018, o governo da coalizão governista Cambiemos concedeu 45 autorizações oficiais para o trabalho de meninas e meninos entre 10 e 17 anos, medida que alarmou o país e provocou cruzamentos políticos e sociais.
O que essa exploração infantil implica em um contexto crítico? Quando o capital avança e o estado se torna indistinto, a filosofia da maximização de lucros não encontra um freio, mesmo quando se trata do projeto futuro de uma sociedade.
Os dados da primeira Pesquisa de Atividades de Meninas, Meninos e Adolescentes (EANNA), feita pelo Ministério do Trabalho, apontam para a Argentina como um país que historicamente tem mantido baixas taxas em relação a esse problema e destaca a redução na taxa de trabalho infantil. Esse processo foi evidenciado em nível regional durante os anos de 2000 e 2016, coincidindo com os períodos em que a região foi governada por projetos políticos que promoveram processos redistributivos e inclusivos de amplas massas da população. Mas o que ocorre hoje quando o Estado se encontra embaçado?
O estudo coleta informações entre 2016 e 2017, revelando que 9,4% das crianças argentinas realizam alguma atividade produtiva e, que, ao falar de populações rurais, o número é o dobro: 20% de meninas e meninos entre 5 e 15 anos que vivem em áreas rurais do país realiza alguma atividade produtiva.
70% do trabalho infantil no mundo está concentrado no setor agrícola, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Expresso em números, há mais de um milhão de menores de 18 anos na Argentina que participam de atividades econômicas, produtivas ou domésticas intensivas, interrompendo sua formação e desenvolvimento.
Se o problema for tomado em nível nacional, segundo a UNICEF, na América Latina e no Caribe cerca de 17,4 milhões (16%) das crianças entre 5 e 17 anos trabalha e, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 77% realiza trabalhos perigosos. Este valor equivale a cinco vezes a população total do Uruguai. Se o total de crianças trabalhadoras constituir a população de um país, seria o oitavo país mais populoso da América Latina, de um total de 33.
Ainda que em comparação com a taxa regional os números argentinos não pareçam alarmantes, até que ponto esse número deve representar um pedido de atenção em nível governamental? Neste contexto, a atitude permissiva do governo da província de Jujuy em relação à questão é um fato digno de nota. Será o começo do aumento dessa taxa para o país e para a região?
Retrocessos
A pobreza está entre as principais causas que dão origem a esse problema social e humanitário; a falta de acesso a uma educação de qualidade completa um círculo vicioso de origem e reprodução desse problema. O padrão cultural, como a naturalização do trabalho infantil – no caso argentino, endossado pela Lei – complica a situação em contextos nos quais os governos são mais benevolentes com os interesses comerciais.
Marcelo Nasiff, deputado originário de Jujuy, justificou o uso de meninos e meninas para “tarefas leves” como “manusear tabaco” na Assembléia Legislativa de Jujuy, onde outros deputados da oposição pediram explicações.
“No campo, os meninos ajudam seus pais nessas economias frágeis e muito bem vêm alguns pesos com o trabalho que só os meninos podem fazer”, justificou. Ele esclareceu que as crianças “não farão coisas que não podem fazer”, dividindo assim as tarefas que seriam permitidas para o trabalho infantil daquelas que não o são.
Segundo Nasiff, o trabalho e as ferramentas de trabalho “não matam ninguém. É bom que todos nós aprendamos, pois há alguns que sequer viram uma pá quando eram crianças; então quando a vêem como adultos, infartam”.
De acordo com os dados divulgados pela EANNA, na região norte, onde está localizada a província de Jujuy, o percentual de crianças trabalhadoras sobe para 13%, três pontos acima dos números nacionais. Nessa região, as principais atividades produtivas, vinculadas ao trabalho agrícola, configuram realidades sociais excludentes, condenando famílias inteiras ao trabalho forçado, em condições precárias e com baixos salários.
As previsões não são boas se considerarmos, como sugerido em um relatório da OIT, as ligações entre os contextos de crise financeira e os números de crescimento do trabalho infantil. Os processos inflacionários, a contração da economia e as perdas de empregos formais, colocam na mesa familiar o problema da urgência econômica, o que nos obriga a buscar alternativas.
Em agosto de 2018, o Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica (UCA) alertou que a porcentagem de pobreza atinge 33% da população e que uma em cada 10 pessoas está em situação de indigência.
Em um mundo globalizado, onde o sistema econômico precisa maximizar seus lucros para ser distribuído entre poucos, a exploração do trabalho de meninos e meninas é um dos seus destinos preferidos.
Quais medidas o governo argentino tomou a esse respeito? Em 2015, uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça dissolveu o Registro Nacional de Trabalhadores Agrários (Renatea), que tentava avançar no controle do trabalho infantil no campo e na consolidação de alternativas, como espaços de acolhimento de crianças e programas de alfabetização e capacitação para os trabalhadores e trabalhadoras.
No mesmo sentido, neste ano foi fechada a Secretaria de Agricultura Familiar, que era destinada a acompanhar os pequenos produtores. Estes agora se encontram desamparados diante dos monopólios da produção de alimentos e da concentração de propriedade em cada um dos elos da cadeia de produção.
A definição que rege as leis relativas ao trabalho infantil é expressa de maneira diferente em cada país, obedecendo a realidades particulares que “forçam” a considerar situações como o trabalho dentro da família ou o autoconsumo.
A legislação argentina acompanha a definição da OIT de proibições contra o trabalho infantil, considerando que ela interfere no desenvolvimento da criança, mas inclui tarefas aceitáveis que são incluídas como exceções à norma geral. Assim, na Lei 26.390, artigo 189 bis, o trabalho é permitido para crianças de 14 anos ou mais nos negócios da família, sob certas condições.
A lei não ajuda neste contexto de disputa, onde em condições brutais de desigualdade e quando não há Estado presente, os atores que lutam são os poderes econômicos (empresas), na busca de maximizar lucros, contra famílias imersas em contextos trabalhistas cada vez mais adversos.
A crise exacerba a voracidade do capital para reduzir custos e coloca as famílias em contextos de vulnerabilidade. A permissividade legal endossa isso.
Ao analisar um pouco mais os dados de crianças trabalhadoras na Argentina, vemos que 57,5% na área urbana o fazem devido à necessidade de ajudar a família por conta própria, enquanto nas áreas rurais o número chega a 50,1%. 5,7% das meninas e meninos que trabalham, entre a população urbana, não frequentam a escola, enquanto nas áreas rurais a porcentagem sobe para 10,1%.
Em pleno século XXI sabemos que o trabalho infantil ameaça a integridade física e psicológica, o processo de educação e o acesso à saúde de milhões de crianças. Em um contexto de crescente neoliberalismo, essas desigualdades ameaçam se aprofundar, fazendo com que as crianças fiquem presas a condições de vida cada vez mais degradantes.
Javier Pellegrina é advogado, redator-analista argentino do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, estrategia.la).