O futuro do trabalho

Antonio David Cattani

Dentre os múltiplos estragos provocados na vida econômica e social pelo pensamento conservador e elitista, encontra-se a desvalorização ideológica da atividade laboral. Desde os primórdios do capitalismo, seus ideólogos esconderam ou minimizaram a importância do trabalho na constituição das identidades sociais, ignorando como ele marca mental e materialmente a vida diária das pessoas. Esse ocultamento perdurou ao longo do século 20. Teorizar e valorizar dimensões abstratas tais como “a economia”, “o mercado”, “o empreendedorismo” foi uma maneira astuta de desconsiderar a importância do esforço e da dedicação dos indispensáveis trabalhadores e de, ao mesmo tempo, apresentar a produção material e os serviços como obra exclusiva dos detentores do capital.

No início dos anos 1980, a invisibilidade do trabalho na teoria neoliberal foi reforçada por elaborações ideológicas que esvaziavam ainda mais qualquer referência aos aspectos problemáticos associados ao trabalho humano. As ditas sociedades pós-industriais estariam gerando mais riqueza com menos mão de obra, o emprego assalariado estaria sendo substituído por formas heterogêneas mais “livres” (trabalho autônomo por conta própria, freelancer, trabalho intermitente e a tempo parcial). Estas interpretações foram endossadas por renomados pesquisadores (por exemplo, Clauss Offe, André Gorz e Dominique Meda), e legitimaram os seguintes axiomas: a) o trabalho não é importante, ele é apenas um meio de obter recursos monetários para o consumo e para usar o tempo livre; b) não é o trabalho que define o laço social mas outras relações e valores (família, redes sociais, identidades culturais); c) o trabalho não tem nada a ver com o pertencimento a classes sociais específicas, os indivíduos buscam seus interesses de forma independente, movidos apenas pelo egoísmo e o narcisismo. O pretenso fim da centralidade do trabalho e a inexistência dos produtores diretos serviram de justificativa para dar “adeus ao proletariado”, “adeus aos sindicatos” e “adeus aos direitos coletivos”.

Na contracorrente desta mistificação, a teoria crítica sempre enfatizou que o ser humano é, em grande parte, o que ele trabalha. Esta frase, embora gramaticalmente incorreta, traduz o caráter ambivalente do trabalho: atividade alienada, degradada e quando submetida à autoridade do capital, forma de subserviência e exploração, de embotamento da inteligência e de dilapidação física e mental do trabalhador. As dimensões negativas convivem com outras possibilidades: o trabalho é, também, ato de criação prazerosa de objetos e tarefas úteis à sociedade, é forma de anular a vacuidade existencial, de superar os limites impostos pela natureza e pela história. O trabalho não é contemplação conformista; é materialização da vontade podendo proporcionar a autodeterminação do indivíduo e a geração de recursos que dão acesso aos bens materiais e às realizações mais elevadas do gênero humano.

Na primeira década do século 21 continua-se observando a disputa entre essas interpretações antagônicas. De um lado, os ardentes ou resignados adeptos da economia de mercado, para os quais o trabalho e os produtores diretos pouco importam. O que conta é o consumo abúlico e insaciável, orientado por um ethos individualista que busca o gozo sem limite e sem responsabilidades (Dufour, 2007). De outro, a consciência crítica que resgata o caráter libertário do trabalho nas suas dimensões mais importantes: como elemento de consciência e pertença da classe que está em confronto com os detentores do poder discricionário e, também, como fator de emancipação e realização individual e coletiva. Para os primeiros, o trabalho continua sem valor, os trabalhadores inexistentes ou sem significado político ou social. Para os outros, permanece válida a centralidade do trabalho como fator identitário e potencial revolucionário.

A pertinência de um ou de outro desses referenciais antagônicos pode ser testada com relação à espinhosa questão do futuro do trabalho. A análise em termos prospectivos deve considerar as questões essenciais, começando pela mais importante: a ampliação ou não do tempo do não-trabalho. Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, apesar do extraordinário crescimento de automação e da robotização, o trabalho humano continua sendo indispensável e bilhões de pessoas permanecem trabalhando todos os dias para assegurar produtos e serviços necessários para a sobrevivência da vida em sociedade. Além disso, o assalariamento é ainda a principal fonte de remuneração, possibilitando a aquisição de bens e serviços e movendo, assim, a esfera econômica. Nada prenuncia alterações nos próximos anos, o que nos leva a jogar com as palavras e afirmar que o trabalho tem futuro…

Tudo indica que nas próximas décadas os problemas que condicionaram o passado e o presente do trabalho continuarão relevantes e, caso não forem solucionados, prenunciam a predominância das dimensões penosas da labuta diária. Numa curta lista podemos mencionar aspectos que caracterizam a maioria dos processos de trabalho sob o capitalismo: a existência de tarefas repetitivas, monótonas, fragmentadas e destituídas de sentido; a permanência da alienação dos produtores diretos que desconhecem a integralidade do que estão fazendo e para que serve o produto do seu esforço. A precarização que tinha sido quase eliminada nos países capitalistas mais avançados reaparece com força, criando gerações de trabalhadores vulneráveis sem possibilidades de aglutinar suas forças e interesses no quadro das instituições sindicais. A isso se soma a crescente intensificação do trabalho (Dal Rosso, 2008). Já está cabalmente demonstrado que é possível diminuir a carga de trabalho, bloquear a intensificação do trabalho sem comprometer a sobrevivência da humanidade. Mas, a lógica irracional da acumulação sem limites leva para o caminho oposto, ampliando o princípio de fungibilidade física e intelectual do trabalho vivo.

Estas e outras questões serão analisadas no seminário O futuro do trabalho, promovido pelo PPG-Sociologia da UFRGS e a ser realizado em Brasília, dia 2 de maio de 2013.

Continua no próximo artigo.

Referências

DAL ROSSO, S. Mais trabalho! São Paulo: Boitempo, 2008.

DUFOUR, D.-R. O divino mercado: A revolução cultural liberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007.

Antonio David Cattani é professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFRGS). Pesquisador 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Atualmente, é Pesquisador Visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra). Doutor pela Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne (1980). Pós-doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, 1993-1994). Professor visitante na Université Laval (Québec – Canadá). Coordenador de convênios de cooperação internacional (Université de Montréal, Canadá) e Centre National des Arts et Métiers (França).

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