Nova realidade laboral já desconecta-se da própria lógica capitalista. A economia de subsistência avança sob a ruína da Era Industrial – e políticas de reparação são insuficientes. Novos sujeitos sociais emergem – e reconhecê-los será crucial.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 17/04/2023
A longa fase de insistência quase contínua na adoção de políticas de liberdade ao capital se mostrou compatível com a flexibilização na contratação e uso da mão de obra pelo patronato. A imposição do rebaixamento no custo do trabalho, embora não tenha elevado o nível de emprego de qualidade, foi responsável por ampla precarização das ocupações existentes.
Mais do que isso, contribuiu para alterar profundamente a composição dos postos de trabalho no país. Se considerar o conjunto das atividades tipicamente capitalistas, por exemplo, constata-se o quanto elas deixaram de ser dominantes no emprego da mão de obra.
A comprovação disso pode ser bem observada na comparação entre as centralidades da relação capital-trabalho e da relação débito-crédito. Atualmente, o número total de beneficiários do programa Bolsa Família federal supera o conjunto de ocupados como empregados assalariados formais do setor privado em 13 das 27 unidades da federação.
No mesmo sentido, percebe-se o avanço da economia popular e de subsistência que opera, em geral, desconectada da lógica capitalista. Nos dias de hoje, por exemplo, cerca de 40% do total dos trabalhadores ocupados têm seus rendimentos vinculados às atividades distantes das tipicamente capitalista e do setor público.
Diante disso, entende-se como natural a defesa de políticas públicas de natureza reparatória, que busquem repor direitos sociais e trabalhistas destituídos. Ainda que justificáveis e necessárias, as propostas reparatórias parecem insuficientes, especialmente se forem consideradas as condições estruturais e objetivas do passado, já não mais existentes.
A reparação no trabalho trata do presente do passado, o que é importante, sobretudo quando o período de tempo não está submetido às alterações estruturais. Do contrário, como parece ocorrer atualmente pelo curso de uma mudança de época, o estratégico se torna considerar muito mais a situação do presente do futuro.
A transição da Era Industrial para a Digital exige repensar o trabalho ao inverso da perspectiva presente no projeto de modernidade ocidental. As políticas de reparação tendem a vislumbrar o horizonte de expectativas associadas à ideia da prevalência de uma mesma época histórica (Era Industrial), enquanto a realidade atual aponta para a mudança de época (Era Digital).
Nesse contexto, o cotidiano laboral se alastra cada vez mais conectado a demandas próprias da inédita concepção do trabalho que emerge da Era Digital. Deixa de fazer sentido, por exemplo, a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo, trabalho dentro e fora da casa, entre outros, uma vez que a digitalização invadiu e contaminou as fronteiras que até então se justificavam durante a Era Industrial.
Em vez da regulação do trabalho exclusiva para quem o realiza fora de casa, em lugares determinados como escritório, canteiro de obra, fábrica, comércio e muito mais, cabe o olhar ampliado no labor efetuado dentro da casa. Para além dos cuidados e de atividades domésticas, as tecnologias de informação e comunicação têm permitido monetizar o trabalho conectado à internet, compreendido por ser virtual, imaterial.
Ainda que não se saiba efetivamente a totalidade desta nova realidade, até porque as pesquisas atualmente existentes não conseguem plenamente captá-las, entende-se como a realidade aceleradamente avança. Por isso, as respostas plenas de reposição do passado se apresentam pouco eficientes.
Assim, as tentativas de promover a volta das políticas de regulação do trabalho próprio da Era Industrial podem reproduzir desigualdades originárias entre os que têm acesso e os que não têm acesso aos direitos sociais e trabalhistas. Uma temática que identificada à concepção do trabalho proveniente do projeto de modernidade Ocidental centrado na relação capital-trabalho.
Da mesma forma, a visão do trabalho humano apresentada por pesquisas associadas às metodologias tradicionais da Era Industrial tende à insuficiência e disfuncionalidade. A desconexão entre dados e informações oficiais disponíveis parece aumentar, uma vez que o resultado dos esforços científicos investigativos e analíticos da realidade indica parcialidade e vieses comprometedores à correta orientação de políticas públicas.
O avanço da relação débito-crédito que se impõe perante às debilidades da tradicional relação capital-trabalho implica reconhecer a emergência de novos sujeitos sociais. Por estarem submetidos aos desafios de sobreviverem diante da insegurança e insuficiência dos rendimentos, resta a constante busca por créditos (endividamento, rendas de ocupações gerais e temporárias, programas sociais, monetização de redes sociais, atividades ilegais, entre outros).
O inverso do trabalho da Era Digital se constitui cada vez mais robusto pela via da digitalização da economia e, principalmente, da sociedade. Esse sim é o centro pelo qual o trabalho precisa ser realmente repensado.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.