Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara
Fonte: El País Brasil
Data original da publicação: 28/11/2018
Pelourinhos, açoites, grilhões: até o século XIX, esses objetos estavam intimamente associados à figura do trabalhador escravo. Chegado o século XXI, os flagelos físicos não mais figuram como parâmetros para identificar a escravidão. O indivíduo escravizado tem sua autonomia restringida não por obstáculos corpóreos, mas por condições de trabalho que, de tão aviltantes, suprimem sua dignidade enquanto pessoa.
O escravo contemporâneo habita os meios rural e urbano e pode ser reconhecido quando constatada a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho ou a servidões por dívida. São formas mais sutis de exploração, que, entretanto, violentam a própria condição humana dos trabalhadores ao suprimirem os mais básicos direitos, como alimentação, higiene e o exercício de um trabalho digno.
Embora seja um problema antigo, foi a partir do ano de 1995 que a escravidão moderna passou a ser encarada com mais atenção e rigor. No âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, cujo escopo é investigar denúncias de trabalho escravo, resgatar trabalhadores, compelir os empregadores a pagarem verbas trabalhistas e lavrar relatórios que servirão de prova em ações judiciais.
Com a denúncia do Brasil ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos no chamado Caso José Pereira, o Estado brasileiro reconheceu formal e politicamente a permanência de trabalho escravo em seu território. Em 2003, foi promulgada a Lei nº 10.803, que aperfeiçoou a redação do art. 149 do Código Penal. O Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo foi editado no mesmo ano e lapidado em 2008, quando do lançamento do 2º Plano. As atividades do Grupo Móvel foram intensificadas e, entre 1998 e 2016, cerca de 50.000 trabalhadores foram flagrados laborando como escravos modernos. Semelhante cenário revela que o combate à escravidão contemporânea tornou-se uma política de Estado, e não de Governo.
Ocorre que, no início de novembro de 2018, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciou a extinção do Ministério do Trabalho. Dias depois, noticiou que o órgão manteria status de Ministério, porém seria fundido com alguma outra pasta. Tais declarações causam grande preocupação e põem em dúvida o futuro das ações de combate ao trabalho escravo. Com a pulverização das atribuições do Ministério do Trabalho advindas da prenunciada fusão de pastas, corre-se o risco de perda de protagonismo das atividades atualmente desenvolvidas pelo órgão, sobretudo com a possível desidratação orçamentária das ações do Grupo Móvel.
Não se pode perder de vista que, com os avanços engendrados a partir de 2003, o Brasil passou a ser referência mundial no trato da escravidão contemporânea. Apesar do tratamento progressista da matéria no âmbito legislativo, ainda há vários aperfeiçoamentos a serem concretizados no viés material, os quais não prescindem da atuação de funcionários públicos independentes de qualquer mudança de governo e imunes a qualquer influência externa, como preconiza o art. 6º da Convenção nº 81 da Organização Internacional do Trabalho.
O combate ao trabalho escravo moderno exige a adoção de medidas positivas pelo Estado, contemplando a implementação de ações preventivas e de repressão à escravidão contemporânea. Para alcançar tais objetivos, é fundamental manter a periodicidade das fiscalizações, a fim de permitir a coleta de provas in loco e o posterior processamento dos responsáveis.
Deve-se ter em mente que o enfrentamento da escravidão contemporânea não possui caráter demagógico ou ideológico, mas é um imperativo decorrente, inclusive, da recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Ministério Público Federal tem empreendido esforços para aumentar o número de condenações penais de exploradores de trabalho escravo, por acreditar que o direito penal é também uma importante ferramenta de proteção de direitos humanos. Para atingir tal intento e manter o Brasil na condição de protagonista do combate à escravidão moderna, é preciso fomentar a atuação do Ministério do Trabalho e do já consagrado Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara é Procuradora da República e membro do Grupo de Apoio ao Combate à Escravidão Contemporânea e ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público Federal.