Desarmar a armadilha das dívidas nos lares das famílias de baixa renda do nosso país deverá ser um dos principais compromissos do novo governo eleito.
Paula Marina Sarno e Carmem Feijó
Fonte: GGN
Data original da publicação: 01/12/2022
O endividamento das famílias tem sido uma característica marcante na nossa economia desde 2005. Tal processo, no entanto, foi assumindo ao longo dos ciclos de crescimento motivações e características bem diferentes com consequências também bem distintas sobre a vida das famílias.
Numa primeira fase, destacou-se o papel do crédito em estimular o novo consumo das famílias e o crescimento da economia, já ressaltado por diversos autores. Esta fase coincide também com o ciclo expansivo da economia, e, portanto, o acesso ao crédito às famílias pode ter representado um aumento no padrão de vida.
O quadro mais recente é, porém, bastante diferente. Desde a recessão de 2015/16, o contexto é de estagnação econômica, reforçada pela desmobilização de políticas públicas, em especial na área da saúde, e, posteriormente, os efeitos da pandemia, e, ainda, a partir de 2021, inflação e elevação da taxa de juros.
Nesse segundo momento, ao contrário do que poderia se imaginar, o crédito livre direcionado à pessoa física pelas instituições financeiras em relação ao PIB não apresenta queda, ao contrário assumiu uma trajetória consistente de crescimento a partir do final de 2018, crescendo de 13,6%, em dezembro de 2018, para 18,2%, em setembro de 2022, maior valor da série iniciada em março de 2007. Ou seja, num contexto de estagnação econômica, a expansão do crédito às famílias só poderia ter como consequência a expansão do endividamento e o comprometimento da renda das famílias com as dívidas. Ao contrário da primeira década dos anos 2000, o acesso ao crédito ocorre num contexto de queda da renda das famílias.
Os auxílios emergências e o endividamento dos mais vulneráveis
O fim do Auxílio Emergencial acarretou, de um lado, uma redução da renda disponível para as famílias mais vulneráveis e, de outro, a ampliação da participação dos créditos de pior qualidade (de alto custo e de curto prazo), como os créditos rotativos. Assim, este é o fator que contribuiu decisivamente para esse quadro de elevação do nível geral de comprometimento da renda das famílias com o pagamento das dívidas (juros e amortizações).
Nesse sentido cabe observar o uso mais recente do cartão de crédito na modalidade do crédito rotativo pela população de baixa renda. No período de 2017 a 2020, última informação disponibilizada pelo Banco Central do Brasil (BCB), o número de cartões de crédito ativos cresceu cerca de 60%, e alcançou um total de 134 milhões de cartões. Os dados ainda de 2018 oferecidos a partir da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE já apontavam que 40% da população de maiores de 14 anos haviam declarado possuir ao menos um cartão de crédito. Comparando os dados da POF dos anos de 2009 e 2018, é possível verificar que tal processo teve forte adesão da camada de população mais vulnerável em termos de renda, trabalho e escolaridade. Verificou-se o crescimento da participação entre os detentores de cartão de crédito da população sem escolaridade e com ensino fundamental incompleto, de empregados do setor informal e dos que se encontram sem ocupação[1].
Esse avanço no processo de inclusão financeira, na realidade, não implica o acesso da população a produtos e instrumentos financeiros em condições de custo e qualidade compatíveis com suas necessidades.
Com efeito, ao analisarmos o período da pandemia, é possível concluir que o cartão de crédito na modalidade do cartão de crédito rotativo vem sendo largamente utilizado para financiar, na verdade, gastos correntes de sobrevivência (contas de luz, água, aluguel, comida etc.) por parte da população de mais baixa renda.
O crédito vinculado ao cartão de crédito chamado de “rotativo” refere-se ao caso em que o usuário não paga o total da fatura na data do vencimento e costuma ser veiculado a uma demanda mais emergencial. Essa modalidade se destaca, juntamente com o cheque especial, como o crédito mais caro do mercado e com maior nível de inadimplência.
O uso do cartão de crédito rotativo pela parcela da população mais vulnerável pode ser constatado ao verificarmos as variações nas concessões da modalidade de cartão de crédito rotativo à medida em que ocorre à liberação, redução e suspensão respectivamente das transferências de recursos por conta do Auxílio Emergencial que se direcionaram para os beneficiários do Programa Bolsa Família, os Inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) e os trabalhadores informais.
De fato, na primeira fase, em que os recursos transferidos foram mais significativos e de maior abrangência – beneficiou 67,9 milhões de pessoas (cinco parcelas de R$600 e R$1.200 (para mulheres chefes de família sem cônjuge)) – foi possível verificar queda em termos reais dos valores relativos às concessões mensais de cartão de crédito rotativo, notadamente no período entre abril e julho de 2020. Nos meses de maio e julho de 2020, essas concessões reduziram em termos reais 19% e 16%, quedas inéditas se observarmos a série desde 2019. Já nas fases de redução do valor do Auxílio Emergencial e, posteriormente, de suspensão desses recursos ocorreu o inverso. O Programa se encerra em outubro de 2021 quando os valores das transferências já estavam reduzidos à metade do valor inicial e a abrangência já era bem menor – 39,2 milhões de pessoas beneficiadas. E, por conseguinte, ao longo do segundo semestre de 2021 já se observa uma trajetória clara de crescimento real dos valores concedidos nesta modalidade a taxas cada vez maiores.
O que se vê então é que, num contexto de profunda deterioração da situação do mercado de trabalho e das condições sociais do país, o aumento significativo do acesso ao cartão de crédito à população de mais baixa renda acabou por acarretar uma elevação do uso na forma de cartão de crédito rotativo para o financiamento do gasto de sobrevivência. E ainda mais preocupante: esta é a modalidade que apresenta a taxa de juros mais alta do mercado.
Outra modalidade importante para as famílias é o crédito consignado. O consignado cobra taxas de juros, em geral, mais baixas em comparação a outras modalidades e tem por definição baixa inadimplência. Ainda que possua baixa inadimplência, o crédito consignado não deixa de ter repercussões preocupantes na vida financeira das famílias no quadro de estagnação econômica. Num contexto de queda da renda familiar e precariedade do emprego podem justamente elevar o comprometimento da renda do servidor ou aposentado até o limite da margem de consignação, reduzindo significativamente os recursos que a família dispõe para sua sobrevivência durante um longo período, dado os prazos extensos desses empréstimos. Além disso, ao fazê-lo, expõe as famílias a recorrerem aos créditos mais caros, e, assim a possível situação de inadimplência no futuro, principalmente considerando um cenário de queda de renda média real.
Nesse contexto, a concessão de empréstimo consignado aos beneficiários de programas federais de transferência de renda até 31/12 autorizada recentemente pelo Governo Federal por meio Medida Provisória no 1.106, de junho de 2022, pode parecer às famílias o caminho para um alívio inicial. No entanto, a medida já está acarretando um comprometimento crucial e imediato do valor do seu tão necessário benefício, que se estenderá no tempo e comprometerá certamente e de maneira profunda às condições de vida dessa parcela da população. É provável que essas famílias tenham que muito rapidamente recorrer a linhas de crédito mais caras, e, provavelmente, ao cartão de crédito rotativo.
Em resumo, no quadro atual de empobrecimento das famílias e ampliação das desigualdades sociais, desarmar a armadilha das dívidas nos lares das famílias de baixa renda do nosso país deverá ser um dos principais compromissos do novo governo eleito.
Paula Marina Sarno é Pós-doutoranda da UFF e pesquisadora do FINDE.
Carmem Feijó é Professora da UFF e coordenadora do FINDE.