Depois de ser escolhido como exemplo pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), quando reduziu 81% a exploração do trabalho infantil de 2005 a 2013, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país se vê às voltas com o fantasma dessa prática a rondar os lares.
Para Valdete Severo, presidenta da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), o golpe de Estado de 2016 trouxe retrocessos para a fiscalização do mundo do trabalho. “O desmantelamento do Ministério do Trabalho e da estrutura que viabilizava a fiscalização, a prevenção e o combate ao trabalho infantil ou em condições análogas à de escravo torna mais fácil a exploração de crianças e de escravizados”, argumenta.
Em sua Convenção 182 a OIT define o trabalho infantil como uma das piores formas de trabalho forçado. Por isso, criou o Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec), implementado em 1992, do qual o Brasil é signatário, explica Valdete. Já na Convenção 138, os países signatários devem se comprometer pela “abolição efetiva do trabalho de crianças” e pela “elevação progressiva da idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho”.
Cortes inviabilizam o trabalho decente
A doutora em Direito do Trabalho acrescenta ainda que os cortes orçamentários promovidos por Michel Temer, a reforma trabalhista e a eleição de Jair Bolsonaro com seu projeto ultraconservador de desmonte do Estado e das políticas públicas fazem a situação piorar ainda mais.
O orçamento do Ministério do Trabalho para o combate ao trabalho infantil passou de R$ 1,2 milhão para pouco mais de R$ 300 mil, de 2010 a 2018. O corte de recursos para a Secretaria de Inspeção do Ministério do Trabalho chegou a 70%, em 2017. O número de auditores fiscais também diminuiu nos últimos anos, tendo passado de 3.059 para 2.303, no período de 2010 a 2018, conforme dados do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).
“Com o aguçamento da crise, o crescimento desemprego e a falta de projetos do governo federal, cresce a olhos vistos o número de crianças e adolescentes sendo obrigados a trabalhar para ajudar no orçamento doméstico”, afirma Ana Paula Brito, dirigente do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro e ativista pelos direitos humanos, de gênero e da juventude.
Valdete ressalta também que o crescimento do desemprego expõe as crianças às piores formas de trabalho. “O Brasil já ultrapassa o número de 13 milhões de pessoas desempregadas e 27,9 milhões de pessoas subutilizadas, eufemismo para caracterizar o conjunto de pessoas que estão desocupadas, trabalham menos de 40 horas semanais ou estão disponíveis para trabalhar, mas não conseguem procurar emprego por motivos diversos”.
De acordo com ela, “apenas no primeiro trimestre de 2019, mais de 1,2 milhão de pessoas entraram para a população desocupada, na comparação com o último trimestre de 2018. Se considerarmos esses números, é certo que há incentivo a qualquer forma precarizada de trabalho, notadamente do trabalho infantil”.
Precarização
A juíza e professora universitária assinala levantamento feito pela Rede Peteca – organização de combate ao trabalho infantil-, pelo qual vislumbrou-se que “as investigações abertas pelo MPT em São Paulo passaram de 217 em 2012 para 79 em 2018 (até setembro). As ações realizadas pelo Ministério do Trabalho em SP também tiveram queda no período de 2010 a 2017, de 477 ações fiscais passaram para 363. Nos anos de 2012 a 2016 a quantidade de fiscalizações era superior, próximas a 700”.
Dados do IBGE, mostram que a partir de 2015 o número de crianças trabalhando voltou a crescer depois de cair de 2005 a 2014, Atualmente mais de 2,5 milhões de pessoas de 5 a 17 anos trabalham, na maioria das vezes de forma degradante.
“Com a piora dos índices no mercado de trabalho, a tendência é de que as famílias utilizem todos seus membros para aumentar a renda”, reforma Luiza Bezerra, secretária da Juventude Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Por isso, acrescenta Luiza, “as manifestações dos estudantes contra os cortes na educação são essenciais para o combate ao trabalho infantil também” porque “a permanência da criança e do jovem na escola impede a sua exploração no trabalho e lhe dá oportunidades reais de atingir novos patamares de vida no futuro”.
“Os governos Lula e Dilma empreenderam grandes esforças para erradicar o trabalho infantil do cenário brasileiro”, diz Ana Paula, mas “com os retrocessos promovidos pela elite golpista, desde 2016, o Brasil anda para trás e o que mais se vê nas ruas e semáforos são crianças trabalhando sem nenhuma condição de segurança”.
Mais escolas, menos exploração
Já para Lidiane Gomes, secretária de Igualdade Racial da CTB-SP e diretora de escola da rede pública estadual, o sucateamento das escolas e o esvaziamento da educação “incentivam as famílias a integrarem suas crianças no mercado de trabalho, perpetuando a ideia do patriarcado brasileiro de que se deve trabalhar desde muito cedo para a criança ‘criar juízo’”, mas ressalta, “essa realidade só serve para as filhas e filhos dos pobres”.
Ao historiar o tema, a juíza do Trabalho, Valdete explica que “faz muito pouco tempo que proibimos o trabalho infantil e iniciamos um combate efetivo a essa prática”.
E esse combater foi empreendido com mais rigor há poucos anos e as políticas vêm sendo abandonadas pelos governos depois do golpe de 2016.
“Basta lembrar que um relatório oficial divulgado em 1901 apontava que um grande número de crianças de 5 a 11 anos trabalhava durante o dia e a noite nas indústrias”, ressalta Valdete. “Um relatório de 1912, do Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo, lista 3.707 menores de 16 anos (grande parte deles com menos de 12 anos), num total de 10.204 operários empregados em 29 fábricas de tecidos do estado. Em 1922, crianças que trabalhavam na Votorantim e que se opuseram à jornada de 9 horas, foram trancafiadas no interior da fábrica e espancadas por policiais chamados para ‘conter’ a greve”.
Vânia Marques Pinto, secretária de Políticas Sociais da CTB, reforça ainda que “o Estado está condenando essas a crianças a não ter futuro”. Para ela, “fora da escola e exploradas no trabalho, essas crianças tendem a não se qualificar e procurar melhorias, principalmente nestes tempos de alto desenvolvimento tecnológico”.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de 70% de todas as crianças trabalhadoras estão na agricultura – pecuária, silvicultura, pesca ou aquicultura no mundo que apresenta mais de 160 milhões de crianças e jovens trabalhando inadequadamente.
O Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente, da Fundação Abrinq, levantou a existência de pelo menos 18 projetos de lei em tramitação em 2016, propondo redução da idade mínima para trabalhar com carteira assinada. “Com a aprovação da reforma trabalhista e o aprofundamento da crise, o trabalho precarizado absorve a mão de obra infantil”, assinala Ana Paula.
Devido à precariedade do mundo do trabalho no projeto neoliberal, Valdete denuncia que “a chamada ‘costura doméstica’, realizada em ambientes clandestinos, tem sido uma das atividades que mais propicia a ocorrência de trabalho infantil. É parte da chamada ‘terceirização externa’, que ao permitir e estimular a exploração de força de trabalho fora do ambiente da fábrica, viabiliza essa triste realidade”.
Mais políticas públicas
Para a presidenta da AJD, “não há dúvida de que precarizar implica incentivar a exploração da força de trabalho de crianças”. Ela argumenta também que “se o trabalho infantil e o trabalho escravo podem, ainda, soar distantes e irreais para os juízes do trabalho, a terceirização, quarteirização e precarização das relações de emprego é o nosso dia a dia, nossa realidade a cada processo, a cada audiência. Nenhum magistrado trabalhista brasileiro poderá negar a presença, existência e os danos causados por estas formas de trabalho”.
A solução apresentada por Luiza para um combate mais efetivo ao trabalho infantil e a disponibilidade de maiores oportunidades para a juventude pressupõe “maiores investimentos em educação em todos os níveis”. Porque é assim que os mais jovens podem vislumbrar futuro digno.
Trata-se de desfazer a “falsa dicotomia”, acentua Valdete, pela qual a “reprodução da lógica perversa, pela qual a miséria é solucionada com o trabalho precoce”. Para ela, “a opção para a criança não pode ser trabalhar ou ser marginalizado e para a família não pode ser dar estudo e morrer de fome ou obrigar ao trabalho e ver complementada a renda familiar”.
Fonte: Vermelho
Texto: Marcos Aurélio Ruy
Data original da publicação: 11/06/2019