O emprego que virou suco

Fotografia: Reprodução/Alchetron

Como se deu a tragédia da história do trabalho no Brasil, da modernização capitalista pelo projeto urbano à desproletarização e desmonte dos direitos sociais

Marcio Pochmann

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 18/10/2021

Deraldo chegou em São Paulo vindo do Nordeste. É um poeta popular, que vende suas poesias e folhetos pelas ruas da metrópole. Sobrevive disto. Num destes dias, foi confundido com um operário que matou seu patrão durante a festa em que recebeu o título de operário padrão. O filme O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade, relata a história da resistência do poeta contra a opressão social e os ataques a suas tradições originárias. O filme lembra muito a trajetória do trabalho no Brasil.

Há cem anos, a resposta política dos tenentistas ao excedente da força de trabalho rural às necessidades do capitalismo nascente (1888-1930) foi além do projeto original de proletarização urbana. A inédita modernização capitalista materializada entre as décadas de 1930 e 1980 trouxe consigo a elevação do horizonte de expectativas coletivas ao Brasil real, viabilizado que foi pelo acesso à identidade da carteira de trabalho e categoria profissional validada pelo pertencimento à estrutura sindical e à cidadania regulada por direitos sociais e trabalhistas.

Em apenas 50 anos, a sociedade do trabalho salarial regulado almejada pelo projeto urbano e industrial saltou de apenas um a cada dez ocupados para quase seis em cada grupo de dez empregados. A vitalidade do crescimento econômico impulsionou o emprego urbano, consolidando a integração nacional e o mercado interno de consumo inimaginável até então.

Mas, para isso, o Estado liberal vigente no começo do século passado, fundado na promoção da violência contra as massas sobrantes da sociedade, metamorfoseou-se na organização do setor público potencializador do progresso econômico material e das oportunidades de inclusão social pelo emprego nos diversos setores econômicos. O denominado emprego sólido, sustentado pelo mínimo dos direitos sociais e trabalhistas (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT), floresceu na década de 1930 para refluir na chegada do receituário neoliberal nos anos 1990.

A longeva perspectiva de pôr fim à Era Vargas finalmente ganhou corpo nos governos dos Fernandos (Collor, 1990-1992 e Cardoso, 1995-2002), apoiando-se no vetor da desproletarização dos ocupados. O projeto do empreendedorismo, em que cada ocupado se assume a condição de pessoa jurídica, descolado dos direitos sociais e trabalhistas, andou rapidamente pelo estímulo governamental à terceirização, ao micro empreendedor individual, entre outras formas que foram convertendo o antigo emprego sólido em crescentemente líquido.

As políticas de desregulação da legislação social e trabalhista e de flexibilização do mercado de trabalho se mostraram substanciais para o avanço do processo de desproletarização da classe trabalhadora. Concomitantemente, deu-se o curso da desmodernização capitalista no Brasil, cujo emprego líquido expressa o desmanche da sociedade do trabalho salarial regulado, sem mais acesso à identidade da carteira do trabalho e da categoria profissional.

Do mesmo modo, o emprego líquido esvaziou o horizonte de pertencimento à cidadania regulada pelo acesso aos direitos sociais e trabalhistas e esvaziou ainda mais o acesso à estrutura sindical e justiça laboral. Para um país que tinha um trabalhador sindicalizado a cada três no final dos anos 1980, impacta saber que atualmente somente um a cada dez trabalhadores se encontra filiado ao sindicalismo do país.

As consequências da passagem do emprego sólido para o emprego líquido são muitas e de diversas dimensões. A começar pelas formas de lutas que transitam da ação hierárquica das categorias profissionais, movidas por mobilizações coletivas e greves.

No sentido que passa a dominar o emprego e salário líquidos, a organização laboral se apresenta, em geral, não hierarquizada, patrocinada por espontaneísmo e horizontalismo. Na maioria das vezes, a explosão de revoltas e rebeldias, quando não de motins, expõe o conteúdo de multidões com interesses diversos mobilizados por redes sociais e centralidade de representação de interesses coletivos.

A fragilização da legitimidade se alastra no interior das próprias instituições de representação de interesses do mundo do trabalho. A ruína do emprego sólido rebaixa o horizonte de expectativas, fazendo com que a correria das massas sobrantes por ocupação do tempo com a generalização do emprego líquido predomine.

Simultaneamente, o reconhecimento de todo o esforço de pouco vale, gerando quase nada que não seja o compromisso pela sobrevivência. Sem horizontes de expectativas elevadas e renovadas, as multidões de sobrantes do capitalismo declinante no país correm o sério risco passado de serem desconsideradas da agenda de liquidificação nacional.

Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti. 

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