A grande massa nordestina ocupada em lavouras tem as menores taxas de produtividade, renda do trabalho, e maior proporção nos plantios de subsistência do país.
Rui Daher
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 30/01/2015
A minha quase dilacerada edição de Casa-Grande e Senzala (Livraria José Olympio Editora, 1983) é comemorativa dos 50 anos da obra do recifense Gilberto Freyre (1900-1987). No mesmo estado estão Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior.
São obras seminais a que se seguiram, entre 1950 e 1970, estudos, ensaios e livros importantes de Celso Furtado (1920-2004) e outros autores. Consenso: a organização econômica, política e social do País privilegiou um patriarcado e fez refém da miséria ou expulsou do campo enorme contingente de trabalhadores rurais.
Segundo o IBGE, em meio século (1960/2010), a participação rural na população brasileira caiu de 55% para 16% e, entre 1986 e 2006, o pessoal ocupado na lavoura reduziu 30%, para 16,5 milhões.
Até certo ponto, essa foi uma tendência lógica causada por alterações na dinâmica capitalista mundial. No Brasil, teve início com as crises dos ciclos monocultores agrícolas e a aceleração industrial, e explodiu, na década de 1980, com a globalização comercial e financeira da economia.
A razão seminal, no entanto, não se esgota na soberba literatura aqui citada. Até hoje brotam sementes de pauperização do trabalho rural em todo o País, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.
Dilma chama Kátia e pede-lhe para em quatro anos “dobrar o tamanho da classe média rural brasileira”. Imagino a ministra puxando da memória sua militância ruralista: “Será promover a ascensão da classe D para a C de 800 mil produtores”, diz em entrevistas às folhas e telas cotidianas.
Desconheço se pesquisou o livro de Marcelo Neri, Superação da Pobreza e a Nova Classe Média no Campo (Editora FGV, 2012). Deixo a exatidão numérica para outra coluna e, enquanto elas vão à luta, nós vamos à lupa.
Expressiva nos últimos 20 anos, a modernização tecnológica da agropecuária serviu aos grandes produtores, deixando os demais no limbo do trabalho mal remunerado e da produção própria precária. Divisão que se originou nas formas de cessão de crédito e planos de ocupação agrícola nas novas fronteiras. Terras e financiamentos dirigidos para médios e grandes produtores.
O nirvana econômico e financeiro não foi imediato. Pelo contrário, trabalharam muito e, até meados dos anos 2000, penaram a gangorra de ciclos apertados. O alívio é recente, pelos aumentos de demanda e preços mundiais das commodities.
Entre um apertozinho aqui e uma empurradinha de dívidas ali, expandiram áreas, mecanizaram o manejo, investiram em tecnologia moderna. Produtividade, enfim.
Isso não foi suficiente para evitar a permanência de cruéis assimetrias.
Claro que nos últimos anos o Estado avançou em alguns pontos, mas há muito a caminhar no setor agrário. Nem tudo, porém, é consensual, respeitado ou posto em prática.
A Constituição de 1988, que instituiu a formalização do trabalho rural e equiparou-o em direitos ao urbano, vive contestada por um patronato que insiste em manter costumes do século 19.
Mesmo ações que amenizaram o fosso até a pobreza extrema são refutadas. Poder de compra do salário mínimo, emprego com carteira assinada, recursos à agricultura familiar, programas assistenciais, soam como agressões à economia dos “bem equilibrados”.
Dobrar a classe média rural significa o governo voltar-se às regiões Norte e Nordeste. Atenção, pois, partidos de oposição e folhas e telas da neutralidade, já de olho em 2018.
Em 2012, estavam no Nordeste 44% da população brasileira ocupada em lavouras (6,1 milhões). Os 800 mil anunciados não darão para o cheiro de um rim de bode mal preparado.
Haverá que se dar magnitude aos aparatos educacionais, técnicos e mercadológicos. Adequar os cultivos às vocações e aos limites edafoclimáticos regionais. “Ser massa”, na fala dos jovens.
Comparativos médios apenas generalizam estrume menos fedido no nariz de campesinos. Sim, nos anos 1990, a renda média do trabalhador rural cresceu apenas 4%, enquanto entre 2001 e 2012 o aumento foi de 51%.
Notinha: nos idos de 1990, governo e sociedade olhavam o rural como quermesse de interior; no “estupendo” período seguinte, considere-se a produção de grãos e o melhor período da cana-de-açúcar.
Sei que algum “Pacheco” comentará que, embora menos, a renda também cresceu no Nordeste. Verdade. Nada, porém, que tivesse sido injetado na veia do pequeno agricultor, mas sim na caridade tópica de seus braços.
Dos 50 municípios brasileiros com maior valor de produção agrícola, em 2012, apenas oito estão no Nordeste.
São Desidério, na Bahia, foi primeiro lugar. Como lá, em outros seis, se cultiva soja, milho e algodão em grandes extensões de terra. O oitavo, Petrolina (PE), é polo de fruticultura irrigada de alto valor agregado.
Ajudam na média, mas a grande massa nordestina ocupada em lavouras tem as menores taxas de produtividade, renda do trabalho, e maior proporção nos plantios de subsistência do País.
Média dá nisso. Heterogeneidade dá no que deveremos seguir.
Rui Daher é colunista de Carta Capital.