As LER/Dort e o adoecimento psíquico relacionado ao trabalho são expressões da exploração sem limites da capacidade humana de produzir.
Maria Maeno
Fonte: Rede Brasil Atual, com CUT-SP
Data original da publicação: 28/02/2022
As lesões por esforço repetitivo e os Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort) estão ausentes das matérias da imprensa em geral. Mas continuam presentes nos diferentes mundos do trabalho. Seja em forma de sequelas, seja por meio de dores vivas que ainda assolam aqueles submetidos a ritmos e cargas extenuantes de trabalho.
Embora sejam descritas desde a Antiguidade, foi nas fábricas que se mecanizavam na Europa ocidental do século 18 que essas dores se massificaram. Conforme ocorria um processo de aceleração do trabalho pelas máquinas, milhares de membros superiores executavam movimentos rápidos e repetitivos. E frequentemente pesados, sem pausas, diariamente e durante longas jornadas, sofrendo o desgaste do uso excessivo de suas estruturas. Coluna e membros inferiores também sofriam pelas longas horas em pé ou sentados. Reflexo do perfil da economia da época, tecelões, costureiras, alfaiates, marceneiros, metalúrgicos passavam a sentir dores associadas àqueles esforços cumulativos e sobrecarga estática.
Paralelamente crescia o número dos que viviam da escrita. Autores estimam que, em 1831 aproximadamente 3% da força de trabalho de Londres faziam contabilidades e balancetes, chegando a 7% em 1900. Embora fizessem menos esforço físico, suas atividades de trabalho exigiam que ficassem durante longas horas do dia e parte da noite concentrados para não errar. Em postura curvada, o que lhes causava dores nos braços e tórax.
Séculos mais tarde, na década de 1980, no Brasil, homens e mulheres que ganhavam a vida em atividades de trabalho dos mais diferentes ramos econômicos, mesmo receosos de perder seus empregos, passaram a engrossar movimentos liderados pelos sindicatos e associações de trabalhadores adoecidos. Clamavam por um trabalho que não adoecesse, pelo reconhecimento das dores como fruto malquisto do trabalho e pelo acesso a direitos trabalhistas e previdenciários.
Apoiavam-se em descobertas, estudos e ações de agentes públicos da saúde e do trabalho, e das universidades. Conseguiram, dessa forma, ultrapassar os limites geográficos das empresas. E corajosamente expuseram seus corpos e mentes desgastados pelo ritmo de trabalho impiedoso que os Serviços de Medicina e Segurança no Trabalho (SESMT) ocultavam.
Foi assim que as LER/Dort foram reconhecidas pelo Ministério da Saúde e da Previdência Social. Inicialmente na década de 1980, com consolidação desse reconhecimento nas décadas de 1990 e 2000. São listadas como agravos relacionados ao trabalho pelo Ministério da Saúde e da Previdência. Constam da Portaria 1339/99 e do Anexo II do Decreto 3049/99, respectivamente. E os serviços de saúde contam com manuais, protocolos e diretrizes para a prevenção, diagnóstico e tratamento.
Também foi assim que a Norma Regulamentadora 17 (NR17) apontou alguns dos aspectos laborais que determinam o trabalho como ele é. Isto é, as normas de produção, o modo operatório, a exigência de tempo, a determinação do conteúdo do tempo, o ritmo de trabalho e o conteúdo das tarefas. Destacou também a influência sobre a saúde dos trabalhadores do sistema de avaliação de desempenho para efeito de remuneração e vantagens de qualquer espécie, as pausas para descanso e o retorno gradativo nos casos de afastamento por 15 dias ou mais.
Esses dispositivos legais subsidiaram discussões de diversas ordens e negociações sindicais nos mais diferentes aspectos.
As estatísticas oficiais, sejam da Previdência sejam da Saúde, nem de longe expressam a gravidade e o sofrimento dos trabalhadores acometidos e suas famílias. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 talvez tenha se aproximado da dimensão das repercussões na saúde e na qualidade de vida dos acometidos.
Estimou que 3.568.095 pessoas referiram ter o diagnóstico de LER/Dort dado por médico, dentre as quais 16% disseram ter limitações intensas para realizar as atividades diárias, dificuldades de ir ao trabalho, realizar afazeres domésticos e de autocuidado. Apenas 41,8% disseram não ter qualquer limitação das atividades diárias, 25,4% realizavam algum tipo de fisioterapia ou atividade corporal para minimizar os efeitos das LER/Dort e 35% usavam medicamentos, incluindo os injetáveis para os problemas de saúde.
Décadas depois, processos trabalhistas e acidentários ainda guardam em seus autos as inúmeras histórias dos trabalhadores e trabalhadoras que se juntam a outras várias semelhantes que ocorrem no mundo real.
Faces da mesma moeda, os transtornos psíquicos percorrem trajetória semelhante. Então, é preciso se restabelecer a energia para combater a narrativa de que os adoecimentos resultam de propensão física ou psíquica, de fraquezas, de falta de persistência ou comprometimento.
Tempos sinistros
Recente, resolução do Conselho Federal de Psicologia provocou reações de protestos pela forma de elaboração sem nenhum diálogo com a sociedade. Marca dos tempos que vivemos e por vários aspectos de seu conteúdo. Destaque-se a redução da complexidade do processo de adoecimento psíquico decorrente do trabalho a avaliações individuais, restringindo a atuação dos psicólogos a modelos biomédicos sem interdisciplinaridade e definindo submissão aos médicos requerentes a quem os pareceres seriam entregues, podendo ou não ser considerados para fins de avaliação de incapacidade ou mesmo nexo do adoecimento com o trabalho.
O que adoece é a organização do trabalho, a exigência de metas inalcançáveis, a pressão crescente sobre os trabalhadores, a intensificação do trabalho, a ausência de pausas e a falta de tempo de recuperação. As LER/Dort e o adoecimento psíquico relacionado ao trabalho são expressões da exploração sem limites da capacidade humana de produzir.
Quaisquer medidas ou atos normativos que ignorem esses aspectos e que falaciosamente se concentrem em saídas individuais, de treinamento de trabalhadores, de aumento de sua resiliência e campanhas de motivação devem ser combatidos vigorosamente por todos aqueles que verdadeiramente querem prevenir os adoecimentos massivos que há séculos castigam trabalhadores de todo o mundo.
Maria Maeno é médica e pesquisadora da Fundacentro . É representante do Coletivo de Saúde do Trabalhador do Instituto Walter Leser da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.