A produtividade vem crescendo mais que o emprego já há algumas décadas, e embora as novas tecnologias também criem novas ocupações, o consenso indica que o saldo final é bastante negativo.
Eduardo Camin
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 20/04/2018
Em meio a um entardecer ensolarado nas margens do lago Leman, surge à distância o monolítico edifício gris da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, cidade suíça descrita por Jorge Luis Borges como “a mais propícia à felicidade”, onde acontecia um simpósio sobre o futuro do trabalho. A automatização dos serviços é um desafio para governos e governantes. Luzes de alerta surgem em todos os cantos do planeta, pelo problema crescente da desigualdade social.
O lema deste “diálogo global” convocado pela OIT incluiu um propósito, repetido mais de uma vez pelo diretor geral do organismo, Guy Ryder. A ideia é a de que os governos e os líderes sociais podem (e devem) atuar sobre o que já está acontecendo, em vez de esperar passivamente até as cifras de desemprego alcancem uma alta porcentagem, como fruto dos postos de trabalho perdidos por causa da tecnologia. Por isso, o apelo foi a fala sobre o “futuro do trabalho que queremos”.
Entre as ideias colocadas na mesa, estava a de incluir um imposto que torne a automatização dos serviços mais cara que a contratação de pessoas, de reduzir a jornada de trabalho e até de praticar o que se chamou de “acupuntura regulatória” – que seria a revisão constante das normativas – para evitar que as novas formas de trabalho levem a uma maior informalidade e, finalmente, a um agravamento da desigualdade social.
O trabalho do futuro é um tema central, o qual a OIT (integrada por governos, empregadores e sindicalistas) tem como prioridade na agenda até o ano do seu centenário, em 2019, que será especialmente voltado à meta de elaborar um informe com recomendações a respeito. A instituição, nascida após o fim da Primeira Guerra Mundial, se enfrenta hoje com um cenário global diverso, fortemente marcado pela robotização crescente, a desigualdade nos níveis de bem-estar entre países e entre pessoas, a precariedade de muitos empregos, a crise climática e o envelhecimento populacional, que traz efeitos positivos, mas também acende luzes de alerta, devido às maiores necessidades fiscais e o eventual prolongamento da vida ativa no trabalho.
“A inteligência artificial vem enterrando a suposição de que o trabalho cognitivo era exclusivo para humanos”, afirmou o economista britânico Robert Skidelsky, que diferenciou assim o fenômeno atual de outras épocas, nas que também se pensou que o progresso das máquinas afetaria o emprego. “Agora, nos dizem que 47% das tarefas poderiam ser automatizadas”, disse ele, citando um informe de 2013, publicado por investigadores da Universidade de Oxford, que projetou um horizonte de duas décadas e analisou mais de 700 tipos de serviço. Biógrafo de John Maynard Keynes, Skidelsky recordou que em 1930 havia a preocupação de que, com o passar dos anos, a jornada de trabalho pudesse chegar 15 horas semanais, devido à queda na carga de trabalho. Se aproxima a data em que poderíamos afirmar que aquela previsão já não parece tão distante. O acadêmico acredita que uma redução da jornada de trabalho poderia ser um caminho para conseguir a inclusão de mais pessoas ou evitar a sua saída do mercado de trabalho.
Na verdade, a implementação de sistemas de inteligência artificial que substituam os seres humanos em diversas tarefas reduzirá, como é lógico, a demanda de mão de obra para essas tarefas. Mas este amanhecer da era das máquinas nos desafia, e nos condiciona. Se fôssemos capazes de criar uma inteligência artificial equiparável à humana, se desencadearia uma mudança radical para a humanidade. Do outro lado deste ponto de inflexão, conhecido como singularidade, nos esperaria um futuro dominado por máquinas ultra inteligentes. Caberia a pergunta: qual é a evidencia desta hipótese? Qual seria o nosso papel como espécie nesta nova era?
Devemos recordar que sempre o ser humano, desde que passou a desenvolver as ciências, se viu como a espécie que se encontra no topo da evolução biológica, ao menos em termos de inteligência. Entretanto, segundo alguns cientistas, se aproxima o momento em que poderemos ser superados por uma inteligência artificial fruto da nossa própria tecnologia. É possível que o resultado de esta explosão de inteligência seja uma inteligência não humana de uma capacidade imprevisível.
Recordemos o matemático britânico Irving John Good, que em 1965 escreveu: “definamos uma máquina ultra inteligente como aquela que pode superar a capacidade intelectual de todo ser humano, em qualquer atividade. Como o desenho das máquinas é uma dessas atividades, uma máquina ultra inteligente seria capaz de desenhar máquinas ainda melhores, faria uma explosão de inteligência e o intelecto do homem se tornaria incapaz de equipará-lo. Em consequência, a primeira máquina ultra inteligente será o último invento que o homem vai descobrir (…) na verdade, uma primeira constatação que podemos fazer é a de que os avanços tecnológicos desta ultra inteligência seriam de tal calibre que suas consequências humanas e sociais fogem do alcance de nossa capacidade de previsão”.
O sentido que se dá ao trabalho não só estrutura a vida pessoal como também outorga a possibilidade de se auto definir com um rol na sociedade. Hoje, parece haver uma crescente consciência disso. “As pesquisas mostram que a maioria dos jovens quer um trabalho que se acomode às suas ideias”, comentou Clementine Moyart, integrante do Foro Europeu da Juventude, que disse ter passado, aos seus 30 anos, por seis diferentes experiências de trabalho, uma realidade em sintonia com os tempos atuais: o abandono do conceito de trajetórias lineares, para dar lugar a uma maior mobilidade.
Devemos frear a velocidade das mudanças para atenuar o impacto pessoal e social? Para Skidelsky, deveria haver uma estratégia para relativizar o processo e dar tempo às pessoas, para que possam se adaptar. Ele é o impulsor da ideia do imposto à robotização e da criação de um fundo para capacitar trabalhadores. Por sua parte, o diretor da OIT, Guy Ryder, sustenta que “não é muito realista a ideia do imposto, mas creio que devemos pensar em uma forma para que a tecnologia possa ser introduzida no mundo do trabalho sem causar danos”.
Mas quantos empregos poderiam ser perdidos por essa intromissão? É uma situação sobre a qual ainda não há estimativas. A produtividade vem crescendo mais que o emprego já há algumas décadas, e embora as novas tecnologias também criem novas ocupações, o consenso indica que o saldo final é bastante negativo. Um informe recente da OIT projeta que 2018 terminará produzindo entre 2,7 e 3 milhões de novos desempregados, que se somarão aos 201 milhões atuais, devido a que o número de pessoas buscando emprego crescerá mais que a quantidade de vagas disponíveis. O informe também aponta que as ocupações vulneráveis representam 42% do total.
Segundo o debate que houve na OIT, além dos desafios já de velha data como o da desigualdade, agora há também o que representam as “economias de plataforma” ou colaborativas, como o caso do Uber. Existe ou não uma relação de trabalho? E em tal caso, como deveria ser regulada? O tema admitiu diferentes opiniões. “Nos dizem que alguém que trabalha num carro como condutor é autônomo, quando na verdade está empregado”, afirmou Philip Jennings, secretário-geral da União Global de Sindicatos de Serviços, entidade com sede na Suíça.
Neste novo cenário, existem ao menos dois fenômenos sociais nos quais se centram as expectativas de geração de empregos: a crise climática, que despertou o interesse pelo cuidado do meio ambiente, e o envelhecimento populacional, que levaria a gerar empregos vinculados ao cuidado dos anciãos. Entretanto, houve duas observações a respeito deste segundo ponto: a advertência de que trabalhar com pessoas idosas é algo que requer uma vocação bem definida, o que coloca em dúvida se haverá uma demanda significativa desses trabalhadores, já que as famílias necessitarão de maior renda para pagar por esses serviços. O segundo ponto foi o de avaliar se seria o caso de estudar como financiar um eventual direito dos anciãos a receber essa assistência.
Essa e outras questões dependerão das estratégias dos Estados e dos organismos transnacionais. Mas, para muitos, está claro que nem a normativa dos países nem os convênios da OIT mudam algo na vida real, e sim que isso acontece somente se existem controles e um compromisso político e social.
Confiança, representatividade e solidariedade são conceitos destacados por alguns oradores, com um olhar que foi além da questão legal. Um deles foi o ex-diretor do Instituto de Investigações para o Desenvolvimento Social das Nações Unidas, Thandika Mkandawire, que advertiu que criar instituições não é suficiente. E sentenciou: “Nem deveríamos nos preocupar pelos robôs se tivéssemos uma sociedade baseada na solidariedade”. A Comissão elaborará um informe independente sobre a forma em que se poderá forjar um futuro do trabalho que ofereça oportunidades de emprego decente e trabalho sustentável para todos. Este informe será submetido à consideração da reunião do centenário da Conferência Internacional do Trabalho, em 2019.
A OIT ficou, uma vez mais, encurralada pelo labirinto das injustiças sociais atuais e os desafios do futuro com respeito à robotização e à inteligência artificial. Mas diante desses desafios a única exigência implícita é a busca de soluções para um problema.
Em 2014, o sueco Nick Bostrom, diretor do Instituto para o Futuro da Humanidade da Universidade de Oxford, advertia o seguinte: “diante da perspectiva de uma explosão da inteligência, os humanos parecemos crianças que brincam com uma bomba. Tal é a desproporção entre o poder do nosso brinquedo e a imaturidade da nossa conduta. A superinteligência é um desafio para o qual não estamos preparados e ainda não estaremos durante muito tempo. Não temos a menor ideia de quando isso vai produzir uma explosão, mas se aproximamos o ouvido do brinquedo podemos escutar um leve tic-tac, tic-tac…”. Uma ideia sobre a qual deveríamos refletir.
Eduardo Camin é jornalista uruguaio, ex-diretor do semanário Siete Sobre Siete. Membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU. Colaborador do Centro Latino-Americano de Análise Estratégico (CLAE).