Para o mundo mudar mesmo, é necessária a transformação econômica que desmantele o capitalismo rentista sustentado pelo receituário neoliberal.
Marcio Pochmann
Fonte: RBA
Data original da publicação: 12/05/2020
O mundo não mudará naturalmente após ter passado pela primeira parada econômica gerada pelo enfrentamento da pandemia da covid-19. Como se sabe, uma sucessão de doenças infecciosas associadas a mutações zoonóticas (HIV/Aids, sars, gripes aviária e suína, mers, cov) ganhou expressão com a chegada da crise climática acelerada pela globalização neoliberal desde a década de 1980.
Nesses tempos de predomínio do neoliberalismo, o Estado perdeu capacidade de interferir positivamente no bem estar social do conjunto da população à medida que as finanças públicas ficaram comprometidas por conta da redução de impostos para rico e grande empresa, da perda do vigor econômico e do sistema de dívidas a financiar o rentismo. A solução de contrair gastos públicos não financeiros gerou mais problemas do que soluções.
Inversamente ao fortalecimento dos já ricos e poderosos, avançaram a desigualdade, a pobreza e o desemprego com o recorrente enfraquecimento da camada de proteção social e trabalhista da sociedade. Da mesma forma, a desregulação e o saque aos bens comuns e naturais permitiram a extração sem limites da riqueza finita, comprometendo tanto a sustentabilidade ambiental como fortalecendo a política comandada por plutocracia do dinheiro a qualquer custo e a curtíssimo prazo.
A retomada econômica não deve significar a simples volta ao normal anterior à pandemia da covid-19. Dois elementos de decisões governamentais são cruciais à agenda de retomada da economia no após pandemia do coronavírus. A primeira associada à transição ecológica, chave do problema gerado pela crise sanitária que afetou o mundo.
O decrescimento econômico adotado como palavra de ordem não atende a complexidade da insustentabilidade ambiental e à heterogeneidade das nações. O Brasil, por exemplo, encontra-se em situação do decrescimento econômico desde 2015, enquanto os problemas ambientais não param de crescer.
Pela perspectiva da transição ecológica, é fundamental, por exemplo, a instauração do modelo de taxação aos setores emissores de gases de efeito estufa e de estímulos aos segmentos econômicos sustentáveis ambientalmente. A forma circular de produção e consumo também se apresenta essencial ao adequamento do modo de vida moderno e não agressivo ao ambiente.
O segundo elemento da agenda de retomada econômica encontra-se assentada no papel do Estado, seja na formação e gestão do fundo público, seja na sua redistribuição para a população. No que diz respeito ao financiamento do setor público, o principal é a sua reconfiguração em novas bases.
De um lado, a adoção da prática da emissão monetária e da compra de títulos públicos do tesouro pelo banco central combinada com a quarentena na conta de capital e o estabelecimento de condicionalidades produtivas ao funcionamento do sistema financeiro. De outro, a recuperação do caráter progressivo da tributação que o neoliberalismo desmontou, uma vez que até a década de 1980, por exemplo, lucros e dividendos pagavam impostos, assim como a alíquota máxima do imposto de renda aproximava-se de 50, não de 27%, como atualmente.
Ao mesmo tempo a incorporação plena de setores tradicionais que quase não pagam impostos (proprietários de terra, bens de luxo e outros). Também inclusão dos setores novos como as plataformas digitais, atividades do grupo Gafa (Google, Apple, Facebook e Amazon) e outros, cujo impacto positivo na arrecadação tributária poderia ser equivalente a 10%.
Por fim, o papel redistributivo do Estado a partir da constituição do fundo público. Para isso, o abandono das práticas restritivas ao gasto, como a Emenda Constitucional 95 e outras.
Mas para mudar mesmo, é necessária a implementação de estratégia de transformação econômica que desmantele o capitalismo rentista sustentado pelo receituário neoliberal. Para tanto, constituição de outro sistema de distribuição de renda que alcance a todos os segmentos sociais, superando a etapa excludente da sociedade dos cadastros, dependente do modo seletivo que é burocrático, injusto e caótico da procura ativa de vítimas vulneráveis.
A universalidade desejada do novo sistema redistributivo que proteja da pobreza e da insegurança de renda requer a retomada produtiva e sustentável ambientalmente da economia. Para tanto requer também a transformação do Estado atual com o governo do receituário neoliberal.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.