O “desafio de governar” e a Economia Solidária

Reconstruir democracia exigirá outra governança; e novos arranjos produtivos podem desatar nó górdio entre mercado e seguridade.

Renato Dagnino

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 28/07/2022

Minha intenção aqui é mostrar como a Economia Solidária é uma alternativa adequada para enfrentar o desafio de gerir a economia e Estado capitalistas, orientando-os para fins socializantes.

Para tanto, inicio seguindo a pista do excelente artigo de José Luís Fiori – “A utopia, a história e o desafio de governar” – publicado no Outras Palavras, onde ele escreve que, ao retornar ao governo, a esquerda estará de novo diante desse recorrente desafio. E concluo argumentando que essa utopia em construção – a Economia Solidária –, que muitos na esquerda ainda consideram mais um revisionismo fora de lugar, é capaz de exorcizar esse anátema.

Solidarizando-se com a utopia do socialismo, Fiori começa lembrando com maestria como na Europa do início do século passado os partidos de esquerda não conseguiram gerir – reformando – a economia capitalista. As políticas sociais que queriam implementar através do Estado exigiam recursos que só poderiam ser arrecadados se, ao mesmo tempo, fizessem com que ela funcionasse bem, o que implicava a contradição que ele aponta acima.

Quando no governo, esses partidos dependiam desse bom funcionamento do capitalismo para ir cumprindo suas metas sociais e rumando para lançar as bases do que viria a ser um processo de transição ao socialismo. A contradição intrínseca à sua gestão terminou por inviabilizar até mesmo as reformas socialdemocratas que eles propunham.

Fiori vai mais atrás na história, mostrando a dificuldade recorrente que enfrentaram as tentativas de materializar um ideal de equidade e justiça social e, ao mesmo tempo, gerir um sistema socioeconômico baseado na propriedade privada dos meios de produção através de um Estado burguês essencialmente comprometido com sua manutenção.

Os resultados de maior destaque foram, no centro, o Estado de bem-estar da socialdemocracia e, na periferia, o modelo chileno de transição ao socialismo baseado num Estado economicamente poderoso e num planejamento capitalista socialmente orientado. Ambos, por não conseguirem resolver aquela contradição, tiveram sua vigência ameaçada pelo neoliberalismo.

Fiori aponta também como, para eludir essa contradição (ou para “iludir as massas”, como diria um “revolucionário”), originaram-se os movimentos revisionistas das propostas da esquerda. Afastando-me um pouco do fio de sua exposição e com o objetivo de adicionar elementos para fortalecer meu argumento acerca da importância de ampliar o espaço da proposta da Economia Solidária na agenda da esquerda, introduzo uma nota sobre o revisionismo.

E o faço, coerentemente com esse propósito, classificando-os em dois tipos focados em movimentos contrários: na transição do capitalismo para o socialismo ou no relaxamento dos controles das economias de planejamento centralizado (socialistas) na direção do que se denomina socialismo com (ou de) mercado. Ambos têm como fundamento a ideia de que fatos portadores de futuro, como transformações no contexto geopolítico, tecnocientífico, nacional, etc. deviam ser entendidos como janelas de oportunidade que prenunciavam correlações de força favoráveis para as mudanças que propunham.

Embora o que mais interesse no momento em que nos encontramos no mundo e também no Brasil sejam os revisionismos do primeiro tipo, ou seja aqueles focados na superação dos antagonismos sociais, das irracionalidades econômicas e das ameaças ambientais do capitalismo, a muito maior quantidade daqueles que focam o movimento contrário faz com que sejam estes os que merecem alguma análise.

Destacam-se entre as contribuições críticas aos excessos do centralismo burocrático dos “socialismos reais” as de Oscar Lange e Alec Nove que, desde os anos cinquenta e setenta, respectivamente, propõem alternativas que apontam para modelos de socialismo com mercado. Sua aplicação no Leste Europeu desde a década de 1960, na China desde o final da década de 1970, no Vietnã e Laos na década de 1980, em Cuba, Angola e Namíbia desde a década de 1990, embora tratem de “caminhos de volta” (dado que partem do socialismo real), podem iluminar caminhos de ida para “além do capital”.

Cresce na esquerda a ideia de que o socialismo com mercado que combine o que a direita julga incompatível – planejamento e mercado – é uma alternativa ao neoliberalismo. Baseada num modo de produção híbrido como o que vem sendo lá ensaiado, com arranjos econômico-produtivos de propriedade predominantemente estatal ou coletiva, ela vem sendo cada vez mais visualizada pela esquerda do Sul global como uma alternativa capaz de “sulear” sua trajetória.

Separando-me agora da narrativa do Fiori, mas mantendo seu viés de crítica, venho para o Brasil. Aqui, o revisionismo, impulsionado pelo rebaixamento das agendas políticas da esquerda provocado pelo neoliberalismo e seus governos, se tem caracterizado por abordagens e sínteses cada vez menos kaleckianas, cepalinas e furtadianas. Em consequência, as políticas dos nossos governos de esquerda foram keynesianas, no campo econômico-fiscal-compensatório, e schumpeterianas, no campo econômico-tecnológico-produtivo. O que, embora não empane os bons resultados alcançados, deve ser considerado como uma das causas da embaraçosa permanência daquela contradição que ele corretamente analisa.

Encerro esta primeira parte centrada na releitura de Fiori concordando que a esquerda, se sair vitoriosa da eleição de outubro, terá que lidar com essa contradição numa situação mais difícil e complexa do que a que enfrentou a esquerda europeia. E, também, daquela que vinte anos atrás aqui se configurou e possibilitou aos nossos governos de esquerda administrar com algum sucesso aquela contradição.

A segunda parte trata da proposta da Economia Solidária. Ela é mais curta, uma vez que apenas remete quem me leu até aqui para textos que se encontram disponíveis na web; alguns deles publicados aqui mesmo no Outras Palavras, que considero um dos canais de veiculação mais importantes desses temas.

Considerada pela parte majoritária e até há pouco hegemônica da esquerda como um revisionismo que para alguns chega às raias de um colaboracionismo com o capital, ela passa a ter para mim ainda maior força, oportunidade e propriedade com o artigo do Fiori. Sua leitura, que resultou no resumo que apresentei, me fez ver uma vantagem que eu ainda não havia me dado conta e que sintetizo assim: a Economia Solidária é um caminho para desatar, dado que a correlação de forças não permite cortar, o nó górdio produzido pela contradição que ele assinala. É o seu bom funcionamento, e não o da economia capitalista das empresas e do “seu” Estado, o que irá permitir, de modo sinergicamente acoplado, a consecução das medidas socializantes que o programa da esquerda deseja e a sua governabilidade demanda.

Como ocorreu com outras propostas revisionistas, a da Economia Solidária reivindica sua pertinência tendo por base mudanças no contexto do capitalismo global e nacional que favorecem sua emergência e evidenciam suas vantagens em relação a outros cursos de ação baseados em arranjos econômico-produtivos não baseados na propriedade coletiva dos meios de produção, como as tratadas em “Por que os candidatos de esquerda às eleições de 2022 devem prestar atenção à Economia Solidária?”.

Explorando as estratégias econômico-produtivas e sociais que deveriam orientar o apoio à Economia Solidária, ressalto a importância, em “Para construir outra indústria nacional”, que a reindustrialização solidária seja implementada pelo próximo governo em simultâneo à reindustrialização empresarial.

Ainda com esse objetivo, mas referindo-me a algo mais concreto adiciono, em “As Diretrizes para o programa de reconstrução do Brasil Lula 2023-2026 e a Economia Solidária: um comentário”, mais algumas ideias a respeito de como colocar a Economia Solidária no centro de uma nova estratégia de reconstrução do País.

Em “Política Cognitiva Solidária e o Brasil em reconstrução” e em “Por outra Política de Ciência, Tecnologia e Inovação”, abordo a condição cognitiva (ou tecnocientífica) de viabilização da proposta da Economia Solidária. Em “A hora e vez da Tecnociência Solidária”, com o mesmo objetivo, trato do que tenho chamado de sua plataforma cognitiva de lançamento, a Tecnociência Solidária.

Finalmente, no caderno de campo de uma pesquisa-ação que desenvolvo junto ao Núcleo de Apoio às Políticas Públicas de Economia Solidária com a colega Luciana Ferreira da Silva da Unifesp, em “A Economia Solidária no Brasil: comentários sobre a discussão em curso” indicamos outros aspectos que fortalecem o potencial da Economia Solidária para que a contradição que aqui se aborda não impacte negativamente a ação do próximo governo.

Ou seja, à medida que a Economia Solidária for adquirindo a eficácia e a efetividade que o apoio ao seu fortalecimento e a compra pública for desencadeando, e a eficiência (e competitividade frente à empresa) proporcionada pela adequação sociotécnica da tecnociência capitalista que conduz à tecnociência solidária, essa contradição irá sendo resolvida. Dessa forma, o próximo governo poderá contar com ela para assegurar o crescimento econômico e, num circulo virtuoso de desenvolvimento, avançar na direção de seu compromisso com a classe trabalhadora.

Renato Dagnino é professor Titular na Universidade Estadual de Campinas (professor visitante em várias universidades latino-americanas) nas áreas de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e de Política Científica e Tecnológica. 

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