Há nos filmes de terror uma metáfora do inferno em que vivem as maiorias, do sadismo das elites globais e convites à insubordinação. As analogias vêm de longe: Marx via o capital como vampiro. E Rousseau previa: um dia o povo “comerá os ricos”.
Mark Steven
Fonte: Outras Palavras, com Red Pepper
Tradução: Vitor Costa
Data original da publicação: 30/11/2021
Conhecer o capitalismo é experimentar o horror. Isso continua sendo verdade agora, nas primeiras décadas do século XXI, quando a acumulação ainda depende da violência grudada à expropriação e à exploração, como foi na época de Karl Marx, após o fechamento das terras comuns, a consolidação do sistema fabril e expansão imperialista em novos territórios.
O capitalismo pode ser descrito, resumidamente, como uma generalizada exploração pelo salário combinada com direitos de propriedade alienáveis e produção para o lucro no mercado, todos voltados para a acumulação por meio do ganho privado. Mas essa é uma descrição muito simplista. Modificando a velha ideia de que o dinheiro “vem ao mundo com uma mancha de sangue congênita em uma bochecha”, para Marx e os marxistas “o capital goteja da cabeça aos pés, de todos os poros, com sangue e sujeira”. Todos nós sabemos que Marx amava imagens bastante góticas de vampiros e lobisomens, de espectros e coveiros, mas também devemos enfatizar que, em seu relato, o capitalismo é um tipo particular de história de terror: um conto nojento de sangue, feridas e carnificina. Para Marx, o capital tem gosto pelas vísceras humanas – e vai mastigando seu caminho através da cartilagem do corpo e é isso, como ele queria nos mostrar, o que o capital faz em uma escala verdadeiramente apocalíptica.
“Capital”, disse-nos Marx, “é trabalho morto que, como o vampiro, só vive sugando trabalho vivo, e vive mais a medida em que mais trabalho suga. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou dele”. No capitalismo, a produção consome trabalho vivo para criar mercadorias com valor agregado, que são vendidas por um valor maior do que o embolsado pelos trabalhadores, realizando assim sua mais-valia na forma monetária de lucro, que pode finalmente ser reinvestido para projetar mais e maiores processos de produção.
Mas esse tipo de exploração não é apenas uma questão de trabalhadores que não possuem nada além de seu trabalho. A competição de mercado incentiva a redução do tempo de trabalho ao mínimo, ao mesmo tempo em que coloca a força de trabalho como única fonte de valor. Com essa determinação estrutural, que estimula a pressurização destrutiva do trabalho humano pela aceleração e intensificação dos processos de produção, vem a trituração de ossos, a ruptura de músculos e a liquefação de cérebros. Basta pensar nas deformações, lesões e fatalidades causadas pelas condições de trabalho desgastantes em todos os níveis da indústria capitalista, desde traumas neurológicos até ataques cardíacos, ossos quebrados, membros amputados e mortes em massa. Fora dessas instâncias, cada minuto e cada hora gasta em trabalho assalariado é outro minuto e outra hora em que nossos corpos são ligados a uma vasta máquina que só vive drenando nossa força vital. O capital é de fato uma espécie de vampirismo predatório.
Ou, em uma formulação muito mais grotesca, “o capital dado em troca de força de trabalho é convertido em bens necessários, pelo qual os músculos, nervos, ossos e cérebros dos trabalhadores são reproduzidos e novos trabalhadores são gerados”. O capital, nessa visão, é um moedor de carne que transforma vidas humanas em mercadorias vendáveis.
Descrições como essa alcançam a essência da nossa vida sob o capitalismo. Elas nos lembram como corpos e cérebros são mutilados em mercadorias e como as mercadorias são, na verdade, a substância mutilada de nossos semelhantes. Praticamente tudo com o que interagimos, desde a comida que comemos até as roupas que vestimos, para não mencionar nossa miríade de tecnologias, só passou a existir por meio de esmagamento de ossos, dilaceração de membros e exploração física, social e espiritualmente ruinosa, geralmente ocorrendo a certa distância do ponto de consumo. O consumo necessário para repor a força de trabalho de uma pessoa, ou até mesmo para sobreviver, requer a ingestão de nossos semelhantes.
“Podemos dizer que a mais-valia repousa em uma base natural”, lembra Marx àqueles para quem isso parece algo bem diferente de horror, “mas isso é permitido apenas no sentido mais geral de que não há obstáculo natural impedindo absolutamente um homem de libertar a si mesmo do requisito de trabalho para sua própria existência e sobrecarregando outro com isso, não mais, por exemplo, do que obstáculos naturais invencíveis impedem um homem de comer a carne de outro”.
Horror incessante
O fato de o capital ser sinônimo de horror é muito comum no pensamento socialista e comunista. Em 1916, aproximadamente um ano antes da revolução russa, Lênin refletia sobre o indizível banho de sangue que, quase certamente, resultaria de uma insurreição armada. Sua justificativa para a provável carnificina a colocou como uma necessidade revolucionária, cujo status excepcional a distinguiria da violência inerente ao modo de produção vigente. “A sociedade capitalista”, sustentou ele, “é e sempre foi um horror sem fim”.
A história nos ensina que Lênin e os bolcheviques não conseguiram se livrar do cadáver morto-vivo de seu adversário, que continuou a persegui-los após 1917, e assim o diagnóstico de Lênin permaneceu dolorosamente verdadeiro. Theodor Adorno, mais tarde, relembrou a cultura que Lênin uma vez procurou aniquilar: “Se alguém estivesse elaborando uma ontologia de acordo com o estado básico dos fatos, dos fatos cuja repetição torna seu estado invariante, tal ontologia seria puro horror”. Embora o capitalismo continuasse a crescer e sofrer mutações, para expandir seu alcance e acelerar seus processos internos, sempre o faria em coerência com o diagnóstico do horror incessante.
Hoje, enquanto vivemos uma pandemia global que torna o horror corporal uma realidade inescapável, vale lembrar que o pesadelo virulento da covid-19 deve sua existência não apenas ao animal associado aos vampiros, o morcego, mas também às maquinações do capital nas formas de desmatamento industrial, pobreza urbana concentrada, sistemas de saúde pública deteriorados e um sistema de comércio mundial no qual Wuhan é um centro global de produção de commodities.
Coma os ricos
Se uma compreensão crítica do capitalismo nos coloca diante do horror, pode esse terror, como um gênero narrativo popular, ajudar a nos orientar politicamente dentro do capitalismo?
Pense no cinema de terror B mais detestável e violento, o tipo de horror cujas várias iterações, visual e narrativamente, privilegiam o momento abjeto em que corpos humanos são destruídos em uma explosão de sangue e vísceras, geralmente com uma estrondosa partitura de sintetizador. Esse tipo de produção começou a se tornar mais popular na década de 1960 pelos filmes gore de Herschell Gordon Lewis e, em seguida, foi consolidado e popularizado na década de 1970 pelos filmes de zumbis de George A. Romero.
Muitos filmes de terror desse tipo parecem mostrar um mundo em que os trabalhadores pobres são obrigados a enfrentar a elite industrial e financeira. Suas narrativas exploram e explodem uma ordem social estruturada em torno do antagonismo entre duas classes inconciliáveis, uma das quais labora enquanto a outra acumula o valor dessa obra. O puro deleite com o aquilo parece ser apenas violência por si só é uma forma de narrar os sofrimentos diários dos sobrecarregados, desempregados e privados de direitos. A carnificina também é uma forma de imaginar a vingança mais sádica possível, uma barbárie insurgente que reage punitivamente gerações e gerações de guerra de classes unilateral, dos “de cima” sobre “os de baixo”. Sua violência é a insurreição em miniatura: menos o retorno dos reprimidos e mais uma vingança violenta dos oprimidos.
A primeira onda de popularidade desse tipo de produção cinematográfica ocorreu em um momento em que a economia norte-americana, que vinha crescendo desde a Segunda Guerra Mundial, entrava em uma grande crise. Esta crise, causada pelo declínio das taxas de lucro da manufatura industrial e agravada pela crise global do petróleo (e uma série de guerras prolongadas com os estados socialistas), tem grande importância nos filmes de terror do período. Isso é o que vemos, por exemplo, em filmes como O Massacre da Serra Elétrica, de 1974. Aqui, a execução hipotecária de um matadouro e a escassez de gasolina se combinam para gerar as condições para cenas de canibalismo, pontuadas de várias maneiras por quadros que lembram a guerra em curso no Vietnã. Essa ideia foi reforçada pelo remake mais recente do filme, que melhora a narrativa com um enredo sobre se alistar para combater vietcongues.
O diretor, Tobe Hooper, sempre insistiu que seu filme é uma resposta direta à agitação social em seu contexto histórico. “Estávamos sem gasolina no país na época”, disse ele recentemente, “e as coisas ferviam desde então. É tudo verdade, o conteúdo do filme, de fato. As pessoas perderam o emprego, ficaram sem combustível nos postos de gasolina”. Então, o que temos é um filme de terror que é, em sua essência, a história de trabalhadores de matadouro desempregados aplicando as habilidades de seu ofício à carnificina de humanos. Aqui o antagonismo de classe dentro do capitalismo é coerente com o famoso aforismo de Jean-Jacques Rousseau: “Quando o povo não tiver mais nada para comer, comerá os ricos”.
A sociedade não existe
O que podemos chamar de inconsciente político do filme de terror se tornou um alicerce do gênero, modificando-se em resposta às transformações do capitalismo. Contra as pautas econômicas e políticas de Reagan e Thatcher, com sua elevação do indivíduo econômico acima de qualquer aspecto social, a estética emergente do horror corporal forneceu uma sátira sangrenta dos ideais neoliberais de uma sociedade em rede e seus empreendedores individualizados. É isso que talvez aconteça da forma mais horrível em Hellraiser – Renascido do Inferno de Clive Barker, lançado em 1987, um filme no qual (para citar a lei de ferro das relações thatcheristas) “não existe sociedade. Existem homens e mulheres individuais e existem famílias”.
O fato de este filme não conter nenhuma referência à história, e quase não vislumbrar uma sociedade externa, é por si só revelador de um contexto social. 1987 foi o ano em que Thatcher foi eleita para seu terceiro mandato como primeira-ministra. Seu legado político – o sadismo econômico que conhecemos como “austeridade” – dependia do próprio ethos que definia o novo espírito do capitalismo, forjando “consentimento por meio do incentivo a uma classe média que apreciava as alegrias da casa própria, da propriedade privada, do individualismo e da liberação de oportunidades empresariais”. Isso é o que encontramos em um filme cujos personagens, evidentemente ricos, subscrevem a ideologia de Thatcher, quer saibam disso ou não — e é por meio dessa assinatura que os homens e mulheres individuais (e suas famílias) são todos enviados para o inferno e de volta para cá.
Hellraiser é, de várias formas, um filme que aplica uma sobretaxa demoníaca e dilacerante à herança de propriedade. E é aqui que está sua ideia radical: desde que um dos passos principais em direção ao comunismo seja, de acordo com Marx e Engels, a “abolição de todos os direitos de herança” por meio de tributação pesada e progressiva, é isso o que vemos escrito em uma linguagem de sangue, puxado por esfolamentos e correntes.
Este tipo de horror ultraviolento também passou por uma espécie de renascimento no século XXI, principalmente com filmes como O Albergue e Jogos Mortais, que arrecadaram muito. Mas esses novos filmes de terror, menos exuberantes e mais melancólicos que seus predecessores, não são apenas sensíveis às contradições que nos deram a recessão global, mas também refletem a vida nessa nova economia. Grande parte do horror popular no século XXI está respondendo a um momento histórico em que a flexibilidade e precarização do trabalho são alegorizadas por figuras de revirar o estômago como a centopeia humana. “Você não tem nada a perder, exceto suas correntes”, diz o velho ditado comunista. Pode ser. Mas nas ondas de terror mais recentes, um filme sugere que a única maneira de se livrar das algemas é serrar os próprios tornozelos.
Contra esse derrotismo, talvez façamos bem em lembrar que a gramática visual do terror cinematográfico foi realizada pela primeira vez na obra de Sergei Eisenstein, o principal praticante e ideólogo do cinema comunista, para quem a montagem foi descrita na linguagem da violência: “Uma garganta é agarrada, olhos esbugalhados, uma faca é brandida, a vítima fecha os olhos, sangue é respingado na parede, a vítima cai no chão, uma mão limpa a faca – cada fragmento é escolhido para provocar associações”.
O objetivo do horror para um cineasta do calibre de Eisenstein era levar o espectador a um estado de piedade e terror, ganhando simpatia para os explorados e intensificando a agressão contra os exploradores. Esta é uma tendência que vemos renovada em grande parte do cinema de terror mais popular da atualidade, nos filmes de Jordan Peele, Ari Aster e Ben Wheatley, bem como em franquias como Uma Noite de Crime e Rua do Medo, onde o terror mais uma vez se torna a forma visual do antagonismo social. Para repetir as palavras de um guerrilheiro urbano do filme mais horrível de Jean-Luc Godard, uma obra do cinema comunista diretamente ligada à Eisenstein: “o horror da burguesia só pode ser superado por mais horror”.
Mark Steven É professor sênior da Exeter University e autor de “Splatter Capital” .
Excelente texto.