O capitalismo acomoda seus peões em face da crise sistêmica e trabalhista

O sistema capitalista é caótico e dentro de si mesmo carrega uma crise após a outra, que por sua vez só aparece a olhos vistos no momento em que a grande burguesia começa a enfrentar dificuldades de lucratividade.

Eduardo Camín

Fonte: Clae
Tradução: DMT
Data original da publicação: 15/07/2020

Apesar das medidas extraordinárias tomadas em todo o mundo, muitas vezes de uma forma sem precedentes, a crise de Covid-19 repercutiu desfavoravelmente nos mercados de trabalho e obrigará os formuladores de políticas a enfrentar desafios políticos de longo alcance.

Relatório recente do Observatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que os resultados a serem alcançados no mercado de trabalho no restante de 2020 e nos anos sucessivos dependerão das decisões tomadas, bem como da evolução da pandemia no futuro, o que poderá impactar o mundo do trabalho a longo prazo.

Nem todos os países enfrentarão a mesma situação. A gravidade das dificuldades a serem remediadas e os instrumentos e recursos que eles podem usar a esse respeito variam substancialmente. No entanto, a maioria dos países terá de enfrentar uma série de desafios fundamentais, tais como harmonizar as intervenções políticas nos níveis sanitário, econômico e social, a fim de alcançar resultados sustentáveis satisfatórios para os mercados de trabalho.

Desde o início da pandemia, foi necessário priorizar medidas para conter e erradicar a propagação do vírus e, embora isso tenha resultado em significativos custos econômicos e sociais, constitui uma condição prévia necessária para promover uma recuperação sustentável.

Por outro lado, os encarregados de formulação de políticas estão cada vez mais sendo solicitados a estabelecer claramente um cronograma para a reabertura dos locais de trabalho, protocolos de saúde a serem seguidos para esse fim, e a determinar se continuará a ser fornecido apoio para empresas e trabalhadores que não conseguem retomar a sua atividade normal.

A adoção desses tipos de decisões é complexa, dados os custos para os setores público e privado de prolongar as restrições, a preocupação associada a intervenções prematuras que poderiam levar a uma segunda fase da pandemia e o aumento da pressão cada vez maior da opinião pública. Por outro lado, a aplicação e manutenção de intervenções políticas na escala necessária, visto que os recursos são cada vez mais insuficientes.

O reconhecimento geral da obrigação de tomar “todas as medidas necessárias” para manter a atividade econômica, o emprego, a atividade empresarial e a receita durante a pandemia levou os governos a estabelecer metas fiscais e monetárias com antecedência.

Muitos países terão que enfrentar um alto nível de dívida externa e aplicar políticas monetárias muito restritivas, mesmo que a pandemia diminua nos próximos meses.

Mas os efeitos adversos sobre os mercados de trabalho e a complexa conjuntura econômica global esperada no longo prazo ressaltam a necessidade de continuar a buscar políticas que promovam a recuperação, embora sob condições fiscais e monetárias sem precedentes.

Uma consolidação fiscal precoce, como a que se seguiu à crise financeira de 2008-2009, poderia acarretar o risco de desestabilização dos mercados de trabalho, já minada pela COVID-19.

A pandemia expôs e exacerbou amplas deficiências e desigualdades no mundo do trabalho. As mulheres, os jovens e os trabalhadores do setor informal, que se encontravam em uma situação muito desfavorável antes do início da crise, sofreram algumas de suas piores consequências.

Em contrapartida, aumentou a sensibilização do público para o trabalho muitas vezes complexo e desvalorizado de determinados grupos, em particular dos trabalhadores dos setores da saúde, assistência social e dos serviços de limpeza, bem como dos trabalhadores domésticos, cujo trabalho foi e continua essencial para superar a pandemia.

Obviamente, se não houver ênfase explícita na melhoria da situação dos grupos mais desfavorecidos e vulneráveis, os processos de recuperação podem agravar as atuais situações de injustiça.

Além disso, a OIT exortou a manutenção da solidariedade e do apoio internacional, em particular no que diz respeito aos países emergentes e em desenvolvimento, uma vez que a resposta geral à crise global da Covid-19 tem sido caracterizada por fraca cooperação internacional: a grande quantidade de recursos usados por países de alta renda para lidar com a pandemia não está disponível para outros países.

Isso afetou muito a capacidade dos países em desenvolvimento e emergentes de proteger seus cidadãos e enfrentar a pandemia, o que, por sua vez, condicionará a evolução da situação em todos os países no futuro.

A retórica sobre a necessidade de implementação de medidas de resposta em escala global frente à crise de Covid-19 deve ser substituída por ações específicas de assistência aos países com menor espaço fiscal, em particular através da adoção de medidas multilaterais voltadas para facilitar o financiamento e o pagamento da dívida.

Os debates estéreis, um absurdo dialético

É óbvio que a preocupação da OIT em alertar sobre as terríveis consequências de uma determinada realidade não é nova. Mas elas são o que são, recomendações. Na realidade, o debate se situa em outro cenário, entre os partidários do capitalismo que atribuem a crise à má gestão de banqueiros, governos, empresas ou da Covid-19 que pensam superar a qualquer custo e, por outro lado, os que se opõem ao capitalismo, que vinculam a crise à sua própria existência.

O sistema capitalista é caótico e dentro de si mesmo carrega uma crise após a outra, que por sua vez só aparece a olhos vistos no momento em que a grande burguesia começa a enfrentar dificuldades de lucratividade e, consequentemente, se aprofunda a contrapartida natural da imensa riqueza gerada no sistema; que, basicamente, nada mais é do que fome, misérias, precariedades e violência enlouquecedora.

O citado funeral do capitalismo não pode ser outra coisa senão o fim de uma era, pois o que fracassou não é uma ordem de desenvolvimento econômico ou social, mas o fim do desenvolvimento de uma ordem conhecida. Portanto, qualquer resposta ou sugestão à situação por vir do interior do sistema adquire caracteres absurdos. Encobrir a crise e fazê-la parecer um episódio externo ao sistema é um sucesso para os economistas da burguesia.

Entre seus defensores há quem pense que é a última das crises cíclicas do sistema moderno de exploração, que acabará por derrotá-lo e até fortalecê-lo, não obstante sua extrema gravidade, como em 1929, com uma refundação do capitalismo para salvá-lo de seu túmulo.

Outros argumentam que é a crise final e integral desse sistema e que a única saída para sair dela é estabelecer o modo de produção não-capitalista de desenvolvimento. Uma visão otimista daqueles que pensam que este colapso do sistema, este fracasso sistêmico, acabará com o capitalismo como num passe de mágica: seria despedaçado não tanto pela pressão subversiva ou revolucionária, mas pela fratura do seu próprio organismo.

A crise do capitalismo é abrangente porque engloba a crise financeira, a cíclica real, a crise energética, a crise do setor alimentar, a crise ecológica, a política externa imperialista agressiva, a ideológica, moral, de governança, o consumismo desenfreado, o de sua comunidade política, que mistura neoliberalismo e receitas de Keynes, antes descartadas. Uma vez que essas crises se tornaram uma, querer examiná-las separadamente é o erro mais grave.

O sistema é projetado para a acumulação de capital, não para a satisfação das necessidades de quem trabalha. O lucro é o único motor da atividade econômica, por isso, para a burguesia, com ou sem vírus, é indiferente investir em remédios, drogas ou tráfico de pessoas; é um negócio como outro qualquer.

O processo de competição está afogando milhões de empresas, concentrando e centralizando a produção para aproveitar as economias de escala. Essa é a única forma de frutificar os recursos técnicos para aumentar os lucros, tornar mais baratos os salários e aumentar a taxa de lucro.

A realidade nos mostra que, à medida que o sistema se desenvolve, ele aguça todas as suas contradições e se torna mais reacionário e selvagem.

O emprego, uma espécie em extinção no mundo das promessas

Antes da pandemia, a comunidade internacional já havia se comprometido em fazer transformações de longo alcance nos processos de desenvolvimento em escala global. E também no mundo do trabalho, por meio da adoção da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável e da Declaração do Centenário da OIT sobre o futuro do trabalho, respectivamente.

Enquanto isso, a realidade nos ensina que os trabalhadores são expulsos aos milhões, as empresas vão à falência aos milhares, a inflação dispara e torna impossível a subsistência. A burguesia, com os seus órgãos de propaganda, está empenhada em explicitar os altos e baixos da bolsa de valores, o que mostra a imbecilidade e a mistificação ilimitada dessa “análise”.

Depois que a pandemia acabar, o mundo terá um nível mais alto de desemprego, desigualdade, pobreza, dívida e frustração política. Diante disso, nada resta senão revelar a gravidade da crise, por que ela nos afeta profundamente, entender que não há saídas capitalistas para ela.

E que não há retorno à socialdemocracia populista, para salvar um sistema que faz águas nas crises ecológica, energética, ética, nutricional, cultural, e que, juntas, se embalam no quadro sistêmico da crise.

Mas apesar dos organismos internacionais carregados de boas intenções, não é e não será a burguesia – classe social que exerce a ação de valorização do capital – que, em sua dinâmica de acumulação e reprodução de riquezas, favorece a abertura e criação de espaços.

Ao contrário, as demandas das classes mais oprimidas sempre foram respondidas com violência e repressão. O paradoxo é que sem um horizonte revolucionário, quem detém a marcha do capitalismo?

Eduardo Camín é Jornalista uruguaio, credenciado na ONU-Genebra. Analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).

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