A velocidade da acumulação mistura legalidades e ilegalidades no mesmo prato. As mesmas pessoas continuam nos mesmos postos da crise de 2008.
Jessé Souza
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 29/05/2018
O capitalismo para se legitimar criou, desde o início, uma justificação filosófica, social e política.
Primeiro, transformou a ganância individual que estimula nos indivíduos em coisa boa, como na fábula dos vícios privados e virtudes coletivas, onde a ganância serviria, ao fim e ao cabo, ao bem comum.
Depois, criou a noção de mercado honesto, na medida em que o processo de acumulação primitiva e de ganhos com o saque e a rapina direta passou a ser percebido como uma fase “imatura” do capitalismo, cujo processo maduro seria, por contraposição, contratual, puro e honesto. Até Marx deu uma palhinha para este engodo.
Finalmente, criou a noção de “crime” e de “criminoso” que a sociedade inteira iria acolher. O crime capital passa a ser o crime contra o patrimônio desde que seja o roubo pequeno do ladrão de galinhas ou do batedor de carteiras.
Se você assalta um país inteiro por meio de ataque especulativo e deixa alguns milhões de pessoas sem aposentadoria e previdência, não só não é preso, como aparece glorificado como “investidor do ano” na capa em revistas como The Economist. Sem este trabalho prévio de legitimação secular que nos rouba a capacidade de reflexão não existiria capitalismo.
A fase de ouro do capitalismo industrial de meados do século XX deixou essas virtualidades do capitalismo invisível por vários motivos. Tolhido pelo arranjo democrático vigente em vários países, a produtividade do capitalismo em muitos casos passou a servir efetivamente para a melhoria das condições de vida da maioria da população.
A base era o Estado fiscal onde quem pagava mais era quem mais possuía. Nenhum capitalista podia chantagear o Estado já que não se passa uma planta industrial de um país a outro de um dia para o outro. O capitalismo financeiro, ao assumir o comando do processo de acumulação de capital, pode, ao contrário, controlar o fluxo de capitais de dado fundo de investimento e transferi-lo, num piscar de olhos, de um país a outro.
E pode chantagear o Estado e a política ao criar um sistema paralelo de fluxo financeiro por paraísos fiscais possibilitando a sonegação fiscal em grande escala de milionários e empresas. Com isso o Estado tributador se torna Estado devedor já que agora o que antes era imposto devido se transforma em empréstimo a ser pago com juros.
Os capitalistas não só deixam de pagar imposto, como cobram agora pelo imposto sonegado com juros sob a forma de empréstimos aos Estados sem fonte de arrecadação. Isso sem se falar nos títulos fraudulentos das dívidas públicas como a auditoria grega deixou claro. Nem todos os Estados são, no entanto, enfraquecidos.
Os EUA estão no comando deste processo na dimensão global e se locupletam do controle econômico, político e militar dos fluxos de capitais legais e ilegais, do controle sobre os ativos reais em matérias primas internacionais como o petróleo e provocam crises e golpes de Estado, como no caso recente do Brasil, sem sujar as mãos com sangue de soldados americanos.
A velocidade do processo de acumulação e lucros cada vez maiores mistura legalidades e ilegalidades no mesmo prato. As mesmas pessoas continuam ocupando os mesmos postos chaves que ocupavam na crise de 2008.
Não existe qualquer indício de que as práticas tenham mudado desde então. A mesma “desregulação” do mercado do mercado financeiro impera como antes criando uma “legalidade” específica que é apenas o eufemismo para a corrupção real de processos opacos para o grande público nas relações entre a política e a economia em todos os níveis.
Fundamental para este processo é a compra da imprensa pelo mercado financeiro. Essa compra pode ser direta como ela o é efetivamente em inúmeros casos, mas pode ser também indireta e não menos eficiente quando os lucros das grandes companhias de comunicação são financeirizados e seus anunciantes principais são os grandes bancos.
O público então é bombardeado com ameaças de um “mercado” tão opaco quanto suas práticas. Mantras de “preços de mercado”, como se houvesse qualquer competição real nessa dimensão, são jogados perversamente sobre uma audiência indefesa, como as políticas atuais da Petrobras comprovam tão bem.
Na verdade, se forma entre mercado financeiro e sua mídia comprada e sem nenhuma independência um complexo de obscurecimento sobre como o mundo funciona em todos os níveis. Enquanto o mercado financeiro assalta a população como um todo por meio de mecanismos de mercado, como lucros e juros extorsivos, e por mecanismos de Estado, como controle do orçamento e via inúmeras formas de privatização dos lucros e socialização dos prejuízos, a imprensa mente e distorce uma realidade já de difícil compreensão.
Jessé Souza é sociólogo e escritor.