Numa segunda-feira de outubro, era preciso passar 15 minutos na fila para entrar na sala com objetos do São José – Paquete de África, no subsolo do Museu de História e Cultura Afroamericana.
Inaugurado em setembro pelo Smithsonian Institution, o museu custou o equivalente a R$ 1,7 bilhão se tornou o mais concorrido da capital americana: os ingressos estão esgotados até março de 2017.
Em 1794, o São José deixou a Ilha de Moçambique, no leste africano, carregado de pessoas que seriam vendidas como escravas em São Luís do Maranhão. A embarcação portuguesa naufragou na costa da África do Sul, e 223 cativos morreram.
Visitantes – em sua maioria negros americanos – caminhavam em silêncio pela sala que simula o porão de um navio negreiro, entre lastros de ferro do São José e algemas usadas em outras embarcações (um dos pares, com circunferência menor, era destinado a mulheres ou crianças).
“Tivemos 12 negros que se afogaram voluntariamente e outros que jejuaram até a morte, porque acreditam que quando morrem retornam a seu país e a seus amigos”, diz o capitão de outro navio, em relato afixado na parede.
Prova de existência
Expor peças de um navio negreiro era uma obsessão do diretor do museu, Lonnie Bunch. Em entrevista ao The Washington Post, ele disse ter rodado o mundo atrás dos objetos, “a única prova tangível de que essas pessoas realmente existiram”.
Destroços do São José foram descobertos em 1980, mas só entre 2010 e 2011 pesquisadores localizaram em Lisboa documentos que permitiram identificá-lo. Um acordo entre arqueólogos marinhos sul-africanos e o Smithsonian selou a vinda das peças para Washington.
Que o destino do São José fosse o Brasil não era coincidência, diz Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne e um dos maiores especialistas na história da escravidão transatlântica.
Ele afirma à BBC Brasil que fomos o paradeiro de 43% dos africanos escravizados enviados às Américas, enquanto os Estados Unidos acolheram apenas 0,5%.
Segundo um estudo da Universidade de Emory (EUA), ao longo da escravidão ingressaram nos portos brasileiros 4,8 milhões de africanos, a maior marca entre todos os países do hemisfério.
Esse contingente, oito vezes maior que o número de portugueses que entraram no Brasil até 1850, faz com que Alencastro costume dizer que o Brasil “não é um país de colonização europeia, mas africana e europeia”.
O fluxo de africanos também explica porque o Brasil é o país com mais afrodescendentes fora da África (segundo o IBGE, 53% dos brasileiros se consideram pretos ou pardos).
Por que, então, o Brasil não tem museus ou monumentos sobre a escravidão comparáveis ao novo museu afroamericano de Washington?
Apartheid e pilhagem da África
Para Alencastro, é preciso considerar as diferenças nas formas como Brasil e EUA lidaram com a escravidão e seus desdobramentos.
Ele diz que, nos EUA, houve uma maior exploração de negros nascidos no país, o que acabaria resultando numa “forma radical de racismo legal, de apartheid”.
Até a década de 1960, em partes do EUA, vigoravam leis que segregavam negros e brancos em espaços públicos, ônibus, banheiros e restaurantes. Até 1967, casamentos inter-raciais eram ilegais em alguns Estados americanos.
No Brasil, Alencastro diz que a escravidão “se concentrou muito mais na exploração dos africanos e na pilhagem da África”, embora os brasileiros evitem assumir responsabilidade por esses processos.
Ele afirma que muitos no país culpam os portugueses pela escravidão, mas que brasileiros tiveram um papel central na expansão do tráfico de escravos no Atlântico.
Alencastro conta que o reino do Congo, no oeste da África, foi derrubado em 1665 em batalha ordenada pelo governo da então capitania da Paraíba.
“O pelotão de frente das tropas era formado por mulatos pernambucanos que foram barbarizar na África e derrubar um reino independente”, ele diz.
Vizinha ao Congo, Angola também foi invadida por milicianos do Brasil e passou vários anos sob o domínio de brasileiros, que a tornaram o principal ponto de partida de escravos destinados ao país.
“Essas histórias são muito ocultadas e não aparecem no Brasil”, ele afirma.
Reparações históricas
Para a brasileira Ana Lucia Araújo, professora da Howard University, em Washington, “o Brasil ainda está muito atrás dos EUA” na forma como trata a história da escravidão.
“Aqui (nos EUA) se reconhece que o dinheiro feito nas costas dos escravos ajudou a construir o país, enquanto, no Brasil, há uma negação disso”, ela diz.
Autora de vários estudos sobre a escravidão nas Américas, Araújo afirma que até a ditadura (1964-1985) era forte no Brasil a “ideologia da democracia racial”, segundo a qual brancos e negros conviviam harmonicamente no país.
São recentes no Brasil políticas para atenuar os efeitos da escravidão, como cotas para negros em universidades públicas e a demarcação de territórios quilombolas.
Ela diz que ainda poucos museus no Brasil abordam a escravidão, “e, quando o fazem, se referem à população afrobrasileira de maneira negativa, inferiorizante”.
Segundo a professora, um dos poucos espaços a celebrar a cultura e a história afrobrasileira é o Museu Afro Brasil, em São Paulo, mas a instituição deve sua existência principalmente à iniciativa pessoal de seu fundador, o artista plástico Emanoel Araújo.
E só nos últimos anos o Rio de Janeiro passou a discutir o que fazer com o Cais do Valongo, maior porto receptor de escravos do mundo. Mantido por voluntários por vários anos, o local se tornou neste ano candidato ao posto de Patrimônio da Humanidade na Unesco.
Para a professora, museus e monumentos sobre a escravidão “não melhoram as vidas das pessoas, mas promovem um tipo de reparação simbólica ao fazer com que a história dessas populações seja reconhecida no espaço público”.
Visibilidade e representação
Para o jornalista e pesquisador moçambicano Rogério Ba-Senga, a escravidão e outros pontos da história entre Brasil a África têm pouca visibilidade no país, porque “no Brasil os brancos ainda têm o monopólio da representação social dos negros”.
“Há muitos negros pensando e pesquisando a cultura negra no Brasil, mas o centro decisório ainda é branco”, diz Ba-Senga, que mora em São Paulo desde 2003.
Para ele, o cenário mudará quando negros forem mais numerosos na mídia brasileira – “para que ponham esses assuntos em pauta” – e nos órgãos públicos.
Para Alencastro, mesmo que o Estado brasileiro evite tratar da escravidão, o tema virá à tona por iniciativa de outros grupos.
“Nações africanas que foram pilhadas se tornaram independentes. Há nesses países pessoas estudando o tema e uma imigração potencialmente crescente de africanos para o Brasil”, ele diz.
Em outra frente, o professor afirma que movimentos brasileiros em periferias e grupos quilombolas pressionam para que os assuntos ganhem espaço.
“Há hoje uma desconexão entre a academia e o debate no movimento popular, mas logo, logo tudo vai se juntar, até porque a maioria da população brasileira é afrodescentente. Os negros são maioria aqui.”
Fonte: BBC Brasil
Texto: João Fellet
Data original da publicação: 29/10/2016