O mecanismo de vinculação mínima de impostos a gastos públicos específicos foi criado na Constituição Federal de 1934. Esse dispositivo foi suspenso apenas por ditadores; durante o Estado Novo e na Ditadura Militar.
Andre de Melo Modenesi, Fábio Araujo de Souza e Daniel Negreiros Conceição
Fonte: GGN
Data original da publicação: 05/03/2021
A educação pública do Brasil está longe do ideal. Ao contrário do que muitos acreditam, somos um dos países com menor investimento por aluno/ano do mundo! Segundo o respeitado Education at a Glance 2019, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o custo anual de um aluno brasileiro no ensino fundamental e médio é de US$ 3.800. Nos países da OCDE, esse valor é (em média) igual a US$ 8.600, mais que o dobro.
Já o custo/aluno do Fundeb (Fundo que financia nossa educação básica), para o ensino fundamental, em 2020, foi de apenas R$ 280 por mês. Esse valor se torna ainda mais irrisório quando se leva em conta que ele não se destina apenas ao pagamento dos diversos profissionais da educação; mas também, serve para construir, ampliar e reformar prédios escolares, adquirir serviços e equipamentos para as escolas etc.
De acordo com o Plano Nacional de Educação (2014/2024), o país deveria aplicar o equivalente a 10% do PIB em educação, para alcançar avanços como: ampliação da oferta de vagas; valorização dos profissionais da educação; aumento da escolarização da população; gestão democrática etc. Como o PIB foi de R$ 7,7 trilhões, em 2020, seria preciso investir em educação cerca de R$ 770 bilhões.
No entanto, atualmente aplicamos somente cerca de 6% do PIB em educação, ou seja, R$ 460 bilhões. Note que essa rubrica também engloba os recursos gastos no setor privado com bolsas de estudo, financiamento estudantil e transferência para entidades privadas. Assim, faltam R$ 310 bilhões para se chegar a um gasto minimamente adequado. Assim, 85% das metas do Plano Nacional de Educação não foram cumpridas até o momento.
Cabe ressaltar que, segundo dados do Inep/MEC, o país conta com mais de 140 mil escolas públicas. Infelizmente, 10% das nossas escolas não contam com banheiros; 30% não têm água potável; quase 50% não possuem esgotamento sanitário; e quase 70% não têm biblioteca e nem quadra poliesportiva. Para piorar esse quadro sombrio, ainda existem milhões de brasileiros analfabetos funcionais. Além disso, 70% dos jovens de 18 a 24 anos de idade estão fora da educação superior no país. Por fim, o Brasil é um dos países que paga a menor remuneração aos profissionais da educação.
Mesmo diante dessa verdadeira tragédia, a proposta do governo – em nome do equilíbrio fiscal – para pagar o Auxílio Emergencial assenta-se na chantagem de retirar recursos das áreas sociais, sobretudo, da educação. Essa medida certamente irá agravar ainda mais a precarização do trabalho dos profissionais da educação, as péssimas condições das escolas públicas, a não universalização da educação básica e a falta de vagas na educação superior pública.
A história já demonstrou o quanto se pode perder ao não vincular recursos mínimos para a educação. Na Primeira República, a ausência de um mecanismo de financiamento ao ensino ensejou e manteve níveis inaceitáveis de analfabetismo (80% da população era analfabeta à época). A oferta de ensino primário e secundário era restrita e escassa.
O mecanismo de vinculação mínima de impostos a gastos públicos específicos foi criado na Constituição Federal de 1934. Esse dispositivo foi suspenso apenas por ditadores; durante o Estado Novo e na Ditadura Militar. Foi somente após a redemocratização, na Constituinte de 1987, com louvável esforço de um grupo republicano de Constituintes e dos movimentos em defesa da escola pública, que a vinculação dos gastos públicos foi estabelecida na Constituição Federal de 1988.
Entretanto, desde então, esse precioso mecanismo tem sido vítima constante de ajustes fiscais, baseados em dogmas econômicos neoliberais e numa visão ultrapassada das finanças públicas, que não diferencia os usuários da moeda (empresários, trabalhadores e consumidores) de seu criador, o Estado. Primeiro, ele foi golpeado pelo Fundo Social de Emergência (posteriormente nomeado Desvinculação de Recursos da União), sob a justificativa de contribuir para a eliminação da alta inflação, durante o Plano Real.
Recentemente, a Emenda Constitucional n. 95/2016 deferiu novo golpe contra as vinculações orçamentárias. Ademais, essas vinculações têm sido sistematicamente descumpridas pelo executivo federal, governadores e prefeitos. Financiar minimamente o ensino é o que uma nação justa e democrática deve fazer pelos seus cidadãos.
Diante da verdadeira tragédia exposta acima, não podemos retirar ainda mais recursos da educação. Trata-se de proposta completamente descabida. Não há desenvolvimento socioeconômico sem educação. Todas as experiências de desenvolvimento se fundamentaram em maciços investimentos públicos, notadamente em educação e em pesquisa; haja vista os casos da Korea do Sul e da China, para citar apenas dois exemplos recentes.
Em breve, será votada a proposta de Emenda Constitucional n. 186, com uma série de medidas de arrocho fiscal, sob a desculpa de que é preciso sanear as contas públicas e reverter o supostamente insustentável processo de endividamento público. A justificativa é que o país estaria quebrado e que, portanto, seria necessário tirar recursos da educação (e da saúde, notadamente) para financiar o auxílio emergencial. Esse argumento é absolutamente falacioso.
O governo brasileiro, como qualquer outro que emite dívida denominada na moeda nacional, por definição, não pode quebrar. O setor público é um agente macroeconômico singular: ele dá curso forçado e emite sua própria moeda. A lógica da gestão orçamentária do governo Federal é, portanto, distinta da lógica de qualquer empresa, ou família. Estes últimos podem quebrar; o governo nunca quebra – salvo se estiver endividado em moeda estrangeira, como nos anos 1980.
Restabelecer o auxílio emergencial para que os mais vulneráveis sobrevivam durante a pandemia é urgente e necessário. Foi graças a esse auxílio (e todos os demais gastos e renúncias fiscais) que a retração econômica foi atenuada. Sem essas medidas, certamente teríamos sofrido uma queda muito superior a 4,5% do PIB, como ocorreu em 2020. Sem o auxílio, milhões de brasileiros teriam ficado sem renda para sobreviverem. Retirar da população mais vulnerável sua única fonte de sustento no meio de uma pandemia (que já matou mais de 250 mil brasileiros) terá consequências sociais e econômicas apocalípticas. É simplesmente inaceitável.
Esperamos que a classe política tenha sensibilidade e responsabilidade social ao votar a matéria. Que ela não se precipite e não cometa tremendo equívoco, ainda que em prol do necessário auxílio emergencial. Trocar um dos principais eixos estruturantes da redemocratização por uma medida – por mais louvável que ela seja – de caráter conjuntural é um verdadeiro tiro no pé dos parlamentares; e, também, um tiro de misericórdia, na já combalida educação brasileira. Ademais, esperamos que a população se mobilize para que a PEC n. 186 não seja promulgada: o que urge é salvar a educação no Brasil!
Andre de Melo Modenesi é Professor Associado ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq.
Fábio Araujo de Souza é Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRJ.
Daniel Negreiros Conceição é Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.