Nas respostas à pandemia, afloram as hierarquias brutais do capitalismo financeirizado. Países ricos emitem dinheiro, salvam bancos e dão algum conforto às maiorias. Aos pobres, sem moeda forte, resta resignar-se à miséria e “caridade”.
Jayati Ghosh
Fonte: Outras Palavras, com Project Syndicate
Tradução: Antonio Martins
Data original da publicação: 18/05/2020
Entre as muitas desigualdades reveladas pela pandemia de covid-19, uma das mais chocantes é a diferença dramática nas respostas fiscais dos governos. A atividade econômica entrou em colapso no mundo todo, como resultado das medidas de quarentena para conter o coronavírus. Mas enquanto alguns países desenvolvidos foram capazes de oferecer estímulos ficais em escala inédita, a maior parte das nações não conseguiu.
Desde março o governo dos EUA anunciou gastos suplementares que equivalem a 14% do PIB do país. No Japão, o percentual é superior a 21%, comparado com quase 10% na Austrália e cerca de 8,4% no Canadá. Na Europa, a falta de um acordo sobre um esforço comum de estímulo levou a respostas mais diversas. As despesas adicionais contra a pandemia varia entre 1,4% do PIB na Itália e 1,6% na Espanha a 9% na Áustria. A Alemanha e a França estão no meio, com 4,9% e 5%, respectivamente. As regras orçamentarias rígidas da UE continuam a limitar o gasto governamental, precisamente naqueles países que mais precisam de estímulos fiscais.
Enquanto isso, em muitas economias avançadas, as respostas da política monetária ampliaram a capacidade fiscal nos níveis subnacionais de governo. Ao cortar as taxas de juros, ao comprar títulos das dívidas de municípios e estados e ao introduzir novas facilidades para empréstimo a setores e empresas específicos, o banco central dos EUA (Federal Reserve, ou Fed) e outros bancos centrais de países ricos usaram todos os meios disponíveis para manter os baixos os custos de tomar empréstimos, e para manter a liquidez das agências públicas.
Em contraste, a resposta fiscal em muitas economias em desenvolvimento é medíocre, embora as condições econômicas com que estes governos se deparam não sejam menos dramáticas. As medidas de quarentena e o desarranjo do comércio e investimento globais infligiram danos muito maiores nas economias em desenvolvimento e emergentes que no mundo rico.
Na Índia, por exemplo, estima-se que 122 milhões de pessoas tenha ficado desempregadas, só em abril. Pior: apesar das medidas de lockdown, o número de casos de covid-19 no país continua a crescer rapidamente. A redução das remessas de imigrantes e a queda abrupta das receitas com as exportações e o turismo atingiram muitas outras economias em desenvolvimento – mesmo aquelas que adotaram quarentenas menos rígidas
Mas, apesar das demissões maciças e da queda brusca da renda das famílias, houve relativamente pouca resposta fiscal dos governos. Na Índia, o primeiro ministro Narendra Modi acaba de anunciar um pacote que equivale a apenas 10% do PIB. E ele inclui compromissos firmados anteriormente e o impacto apenas previsto de medidas monetárias. As despesas públicas realmente novas representam uma minúscula fração do montante anunciado.
Estas desigualdades são evidentes no interior do G20. No final de abril, as despesas públicas novas feitas pelo grupo de economias emergentes representavam, em média, 3% do PIB – comparados a 11,6%, entre as economias “avançadas”. E mesmo neste grupo há importantes variações. A África do Sul expandiu o investimento público em 10% do PIB, enquanto na Índia este percentual foi de apenas 1%. Não é surpresa que, fora do G20, países de baixa renda lutem desesperadamente para lançar mesmo pacotes de socorro minúsculos a suas populações e pequenas empresas. São montantes muito menores do que os que seriam necessários para combater o vírus e evitar o colapso econômico.
Uma grande destas diferenças, nas respostas fiscais de distintos países, pode ser explicada pelas desigualdades sistêmicas duradouras, na economia global. Os países em desenvolvimento são obrigados a tomar dinheiro emprestado, em moedas internacionalmente aceitas. Por isso, eles simplesmente não têm a liberdade fiscal de que desfrutam países que emitem suas próprias moedas. É por este motivo que seria tão importante que o Fundo Monetário Internacional emitisse, com prioridade máxima, Direitos Especiais de Saques para todos os seus membros.
Além disso, muitos países em desenvolvimento já estavam sendo esmagados por uma montanha de dívida externa antes de a pandemia irromper. Um exemplo: os países africanos já desembolsavam mais com pagamento de juros externos que com Saúde pública. Enquanto muitos de seus credores permanecem em negação, sobre a necessidade de reduzir substancialmente as dívidas, a implosão iminente do sistema global de crédito torna esta saída inevitável
Além de tudo, a paralisação generalizada das atividades econômicas significa que a arrecadação de impostos está despencando no exato momento em que os governos precisam desesperadamente ampliar os gastos. Nos países que podem tomar emprestado diretamente de seus bancos centrais [ou seja, emitir dinheiro], isso não é um problema. Mas na maior parte dos países em desenvolvimento, a conta é mais difícil. Mesmo aqueles que não estão obrigados e saldar dívidas encontram enorme dificuldade de elevar o gasto público para qualquer nível próximo do necessário para prevenir um colapso sanitário e econômico.
Jayati Ghosh é professora de Economia na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi em Délhi, Secretaria Executiva da International Development Economics Associates, e membro da Comissão Independente pela Reforma Tributária de Corporações Internacionais.