Sílvia*, uma indígena de 20 anos de idade, saiu em fevereiro de 2018 da aldeia de Santa Rosa, distante a cinco dias de canoa de São Gabriel da Cachoeira (AM), sem saber que se tornaria uma trabalhadora doméstica escravizada em São José dos Campos (SP).
Seu antigo patrão, Paulo Hindenburgo de Carvalho Oliveira, falecido no ano passado, é um dos novos nomes do cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho escravo, a conhecida “lista suja”, atualizada nesta terça-feira (5) pelo Ministério do Trabalho e Previdência.
Contudo, esse não é o único cadastro em que Oliveira aparece: ele também recebeu o auxílio emergencial durante a pandemia.
Os 52 empregadores incluídos no cadastro foram responsabilizados por escravizar 417 trabalhadores. Dos novatos na lista, pelo menos dez receberam o auxílio emergencial pago pelo governo, totalizando um gasto público de R$ 38.700, segundo registros públicos.
Com a atualização desta terça, o cadastro totaliza 89 empregadores, autuados pelos auditores fiscais do trabalho nos últimos anos e incluídos após exercerem seu direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa. Confira a relação completa neste link do Ministério do Trabalho.
O café lidera entre os setores econômicos com mais registros de trabalhadores encontrados em situação análoga à de escravidão, com 122 resgatados. A segunda atividade que mais registrou trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea foi a construção civil (50 resgatados), seguida por produção de carvão vegetal (46) e pecuária bovina (26).
A atualização da “lista suja”, divulgada semestralmente pelo governo federal, também conta com cinco vítimas do trabalho escravo doméstico, como Sílvia.
Sob a falsa promessa de receber um emprego para ajudar os pais, que pescam e plantam mandioca para subsistência, a indígena aceitou morar e trabalhar em Manaus, na residência em que Oliveira vivia com sua mulher, Carlucy Marinho Maranhão. Em julho de 2018, mudou-se com eles para o interior de São Paulo.
Pela jornada diária de 24 horas por dia, sete dias por semana, sem fins de semana nem feriados, o salário combinado com a indígena era de R$ 500 mensais – menos da metade do salário mínimo paulista (R$1.163,55, à época do flagrante).
Além de o nome de Oliveira ter sido incluído na “lista suja”, o casal foi preso em flagrante pela Polícia Federal na ocasião do resgate. Por submeter uma pessoa à escravidão, eles respondiam a um processo judicial, protocolado pelo Ministério Público Federal após a fiscalização. Oliveira faleceu antes do julgamento, mas as acusações contra Maranhão seguem na Justiça.
A renda mensal do casal na época do resgate, em 2019, foi estipulada em R$ 12 mil pelos responsáveis pela fiscalização. Segundo levantamento da Repórter Brasil, Oliveira chegou a receber sete parcelas do auxílio emergencial entre junho e dezembro de 2020, totalizando R$ 3.600. Não há impedimento legal para empregadores flagrados com trabalho escravo receberem o benefício.
O casal devia à empregada mais de seis meses de salário no momento do flagrante, além de FGTS e demais encargos. Após o resgate, Silvia recebeu as verbas rescisórias. Os antigos empregadores também pagaram sua passagem de volta para São Gabriel da Cachoeira, retorno que foi acompanhado pelo Ministério Público e pelos serviços de assistência social de São Paulo e do Amazonas.
O advogado David Conley de Azevedo Lima, representante do casal, questionou a inclusão do caso na ‘lista suja’ antes da conclusão do processo judicial, lembrando que “em nosso sistema de Justiça ninguém será considerado culpado até sentença penal transitada em julgado”. Lima criticou ainda que “sequer aguardou-se o fim do processo para carimbar os envolvidos como agressores” e, sobre o recebimento do auxílio emergencial, afirma ter sido surpreendido pela notícia.
Café com exploração
Se Renata* quisesse preparar uma xícara de café no intervalo da colheita do grão, tinha que ser no meio do mato, usando três pedras e uma latinha com álcool como fogareiro. Não havia cozinha na frente de trabalho. Nem água ou banheiro. Muito menos carteira assinada ou qualquer direito trabalhista. Ela foi uma das 34 pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão, em 2020, na fazenda Mesas, em Campos Altos (MG).
Mesmo depois do resgate na fazenda Mesas, o patrão de Renata, Wagner Arthur Gonçalves dos Santos, foi agraciado com um cargo público na prefeitura de Campos Altos. Desde janeiro, ele é “chefe do departamento de planejamento, gestão e potencialização da indústria e comércio” na Secretaria de Agricultura do município, segundo consta no Diário Oficial.
Além disso, Santos é outro beneficiário do auxílio emergencial oferecido pelo governo durante a pandemia – ele recebeu R$ 5.250 entre dezembro de 2020 e outubro de 2021.
A Repórter Brasil entrou em contato por e-mail com a assessoria de imprensa da prefeitura de Campos Altos, mas ainda não obteve resposta. Não foi possível localizar o proprietário da fazenda Mesas, Wagner Arthur Gonçalves dos Santos. O espaço para posicionamento segue aberto para todos os empregadores mencionados nesta reportagem.
Também entrou na “lista suja” a propriedade Córrego das Almas, conhecida como Fartura, em Piumhi (MG), que em 2018 ostentava certificações internacionais de boas práticas, uma delas ligada à Starbucks, conforme revelou a Repórter Brasil. À época, a Starbucks afirmou que a fazenda era certificada desde 2016, mas negou que comprasse café da unidade e informou que iria rever a concessão do selo.
A realidade na fazenda era bem diferente do que exigia uma certificação de qualidade. “A gente não recebia por feriado, domingo, nada. Durante a semana, entrava às 6h e só parava às 17h”, afirmou um dos 18 trabalhadores resgatados. “Tinha muito morcego e rato. A gente comprava comida e os ratos comiam”, disse outra ex-trabalhadora da fazenda.
A reportagem não conseguiu localizar os representantes atuais da fazenda para comentar a inclusão na ‘lista suja’. Na época do resgate, a então advogada dos proprietários afirmou que recebeu a fiscalização “com espanto”, porque o trabalho escravo não era a “filosofia de trabalho” da empresa, que atuava no mercado havia muitos anos e sempre “procurou cumprir todas as exigências legais”.
Trabalho escravo com dinheiro público
A maior parte das autuações em fazendas de café ocorreram no interior de Minas – e foi também lá que houve a fiscalização de um caso na construção civil envolvendo recursos públicos.
Quando a prefeitura de Viçosa (MG) inaugurou sua nova creche, construída com R$ 889.966,89 obtidos em repasses federais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, a mídia local celebrou o imóvel como símbolo do otimismo para a volta às aulas presenciais, interrompidas pela pandemia. Não recebeu a mesma repercussão o fato de aquele bem público ter sido construído por 11 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em junho de 2019.
As vítimas eram funcionárias da Jari Segurança e Logística Empresarial – que, apesar do nome, atua como construtora. A Repórter Brasil apurou que a companhia participou de ao menos 11 licitações para erguer prédios públicos em no mínimo 10 cidades mineiras diferentes.
No canteiro de obras da creche de Viçosa, os operários trabalhavam de dia e estendiam seus colchões à noite para dormir por ali mesmo, entre fios desencapados, montes de entulho, ferramentas e poeira. Não havia captação de esgoto, e fezes e outros rejeitos se acumulavam. O cardápio oferecido estava muito aquém da energia gasta no trabalho braçal: pela manhã, era café com pão puro, enquanto almoço e jantar repetiam quase sempre o mesmo prato de arroz e feijão, com raros acréscimos de alguma carne.
A Repórter Brasil entrou em contato com a Prefeitura de Viçosa, a Jari Segurança e Logística Empresarial e a assessoria de imprensa do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, mas ainda não recebeu posicionamento.
Direitos viram fumaça na queima do carvão
Também em Minas, condições desumanas foram flagradas pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho em uma carvoaria.
Ali, André* só tinha percebido um escorpião escondido após ser picado na mão esquerda ao arrastar a tora de madeira para um forno de carvão vegetal. Ficou com o braço dormente, mas na fazenda localizada em Perdizes (MG) não havia kit de primeiros socorros. Para aliviar o efeito do veneno, o trabalhador tomou água com alho e desinfectou a ferida com cachaça. Naquela noite, tomou banho de balde, com água que estava em embalagem destinada ao armazenamento de produtos corrosivos. Apesar de tudo, André sobreviveu.
Ele foi um dos 15 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão em 2020 em cinco fazendas arrendadas por José Eustáquio Lima, outro dos novos integrantes da “lista suja”. Os funcionários não possuíam vínculo formal, e um deles relatou que alimentava os fornos e ensacava o carvão das 7h às 18h e, depois do expediente, ainda precisava vigiar a queima madrugada adentro. Enquanto os empregados trabalhavam de domingo a domingo, segundo o relatório da fiscalização, o patrão dirigia uma picape Mitsubishi L200 – cujo modelo de entrada ano 2021 não custa menos de R$ 193 mil.
Em entrevista à Repórter Brasil, José Eustáquio Lima afirmou que, logo após a fiscalização ocorrer, em maio de 2020, iniciou a adequação do local de trabalho. “Contratamos um construtor para fazer as casinhas e todas são equipadas com chuveiro elétrico, geladeira e filtro de água”, disse. Ele afirmou também, por telefone, que todos os trabalhadores que prestam serviços para ele hoje são registrados. “Agora quando eles chegam, já levo na clínica, faço exame [médico admissional], e registro”.
Disse também que compra botina, luva, capacete, óculos e abafador para os trabalhadores e que eles não ultrapassam seis horas diárias de jornada. “Quem falou que trabalha durante a noite toda, mentiu”.
Vida pior do que de gado
O contraste entre a riqueza do patrão e a miséria dos funcionários também chamava a atenção no resgate feito pelos auditores nas fazendas Alaia, Santa Adelaide e Arizona, em São Miguel do Araguaia (GO), de propriedade de José Eduardo Sanches – os bois viviam em condições melhores do que os 15 empregados resgatados do local em 2018, nove deles sem registro em carteira.
As terras do empresário, que reside em São Paulo, se estendem por mais 17 mil hectares e abrigam um rebanho com cerca de 12 mil cabeças de gado. Ali, os fiscais encontraram instalações de primeira linha para os bovinos: currais e cocheiras construídos de alvenaria e revestidos com cimento, telhados resistentes suspensos por vigas de concreto, mato cortado para evitar cobras e outras pragas.
Já os trabalhadores rurais resgatados viviam em barracos, um deles tão precário que recebeu o apelido de “curral do meio”. Tinha chão de terra batida, nenhuma porta ou janela e as paredes, incompletas, eram feitas de lona, madeira e outros materiais improvisados. Um casebre sem teto fazia as vezes de banheiro, enquanto as camas eram colchonetes velhos, restos de espuma e papelão empilhado.
Embora as fazendas de Sanches estejam em uma região de difícil acesso perto da fronteira com o Mato Grosso, seus bois são integrados ao mercado da carne através de grandes empresas. Mesmo após o resgate dos trabalhadores, o empresário forneceu cabeças de gado para as gigantes JBS, Marfrig e Mataboi (hoje Prima Foods). Além de problemas trabalhistas, Sanches também já teve que lidar com questões ambientais. Em julho de 2018, o pecuarista foi multado em R$ 11 mil pelo Ibama por desmatamento ilegal de 10.800 hectares de vegetação nativa na fazenda Alaia.
Procurado pela Repórter Brasil, Luiz Alberto Dias, advogado de José Eduardo Sanches, afirmou que as “manifestações a respeito dos temas continuarão sendo feitas oficialmente junto aos órgãos administrativos e judiciais competentes”.
Já a JBS respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que a fazenda Santa Adelaide está bloqueada para compras pela empresa desde agosto de 2021 e que todas as demais propriedades ligadas a produtores mencionados na lista do trabalho escravo já foram bloqueadas. A empresa disse ainda que, no momento das compras mencionadas, elas “atendiam aos critérios da Política de Compra Responsável da companhia e dos protocolos estabelecidos pelo Ministério Público Federal, entre eles não constar na lista do trabalho escravo”.
A Marfrig afirmou, por meio de nota, que “sua unidade de abate em Pirenópolis, em Goiás, foi desativada em setembro de 2019. Portanto, a partir desta data, não houve qualquer relacionamento entre a companhia e o produtor José Eduardo Sanches”. A empresa disse ainda que “em 9 de junho de 2018, data da compra de animais da Fazenda Alaia, de Sanches, por parte da Marfrig, não havia qualquer registro da propriedade na lista de fazendas embargadas pelo Ibama” e que “a Fazenda Alaia também não fazia parte da lista do trabalho escravo”. […] Sendo assim, com base nesses documentos oficiais, a propriedade estava aderente às políticas socioambientais estabelecidas pela Marfrig” (leia o posicionamento na íntegra).
Já José Augusto de Carvalho Junior, responsável pela PrimaFood, afirmou que a empresa tem “uma política muito rígida e não compramos animais de fornecedor não conforme”, acrescentando que “o pecuarista [Sanches] entrou na lista no dia 5 e nosso último abate foi no dia 2.”.
A ‘lista suja’ do trabalho escravo
Prevista em portaria interministerial, a “lista suja” inclui nomes responsabilizados em fiscalização após os empregadores se defenderem administrativamente em primeira e segunda instâncias.
Os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos do cadastro. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.
Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.
Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da lista suja, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.
O relator destacou que um nome vai para a relação apenas após um processo administrativo com direito à ampla defesa.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de se desligar do patrão); servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas); condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida); ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
*Os nomes dos trabalhadores citados na reportagem foram alterados para preservar sua identidade
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Gil Alessi, Guilherme Zocchio, Isabel Harari, Poliana Dallabrida, Marina Rossi e Mariana Della Barba
Data original da publicação: 05/04/2022