Notas sobre a devastação do trabalho no Brasil atual e o bolsonarismo

Fotografia: Marcelo Camargo/ABR

Bolsonarismo aprofundou a devastação do mercado de trabalho no Brasil, reforçando uma dinâmica estrutural de nossa formação social de base colonial, escravocrata e concentradora de renda.

Felipe Brito

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 06/09/2022

O mercado de trabalho expõe um retrato assustador, mas fidedigno, da devastação em curso no país: o que prevalece é a superacumulação de uma massa de pessoas desempregadas, “desalentadas” (designação para quem nem está empregado(a) nem procurando emprego), subempregadas, uberizadas, “se virando” na informalidade etc. O mercado de trabalho expõe, também, a implementação deliberada de uma tecnologia de governança e de um projeto societário. Ao mesmo tempo, expressa a manifestação de um fator estrutural do modo de produção comandado pela mercadoria e o dinheiro (vigente, mais ou menos, desde a metade da década de 1970) – a crise econômica: fator estrutural que se manifesta com características próprias em uma formação social de base colonial, escravocrata, de predomínio de uma modernização concentradora de renda/riqueza e truculenta.

Há várias formas de se dimensionar essa devastação e propor caminhos para mapeá-la, articulando diversas variáveis. A análise do papel e da situação do salário mínimo constitui um fio condutor significativo para mapear a terra arrasada socioeconômica em curso, e isso exige agenciamentos entre fatores conjunturais e estruturais. O alcance de pessoas que dependem, direta e indiretamente, do salário mínimo no Brasil é imenso. Segundo indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do segundo semestre de 2021, na superacumulação de uma massa de pessoas subempregadas, uberizadas, “se virando” na informalidade, 33,8 milhões sobreviviam com um rendimento mensal de até um salário mínimo. Desse contingente, 21,9 milhões obtêm rendimento entre meio e um salário mínimo. No intervalo de um ano, houve um aumento de 4,4 milhões de trabalhadores (as) nessa condição. Tomando como parâmetro o primeiro trimestre de 2022, o número salta para 36,414 milhões de pessoas – um montante de 8,2 milhões a mais de trabalhadores e trabalhadoras em relação ao mesmo período do ano de 2018. O alcance da dependência, direta e indireta, do salário mínimo também inclui as milhões de pessoas que precisam dos benefícios da Seguridade Social. Grande parte desses benefícios, como a aposentadoria e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), são indexados ao salário mínimo. Ademais, um outro aspecto a ser considerado diz respeito ao fato de que o salário mínimo serve como uma espécie de balizamento para a dinâmica geral das composições salariais, de modo que uma elevação continuada do salário mínimo tende a provocar uma tendência média de elevação salarial.

Um dos principais alvos das maquinações em torno do impeachment fraudulento de 2016 foi, decerto, a política de valorização continuada do salário mínimo que, em uma década, suscitou um aumento real de 72% e, com isso, contribuiu, direta e indiretamente, para uma ampliação da participação dos rendimentos do trabalho na composição da renda nacional. A propósito, eis um dos principais pontos de fixação e obsessão das classes dominantes brasileiras ao longo da modernização truculenta e concentradora de renda/riqueza do país: o achatamento dos custos de produção e reprodução da força de trabalho. Aliás, uma averiguação da história econômica e política do Brasil revela que as reiteradas mobilizações das classes dominantes brasileiras voltadas ao barateamento intensivo do preço da força de trabalho compuseram o emaranhado de golpes e/ou tentativas de golpes. O golpismo inveterado e incrustado na política brasileira no Brasil funcionou, em grande medida, como reação às raras iniciativas institucionais de valorização continuada do salário mínimo (impulsionadas, em maior ou menor escala, por lutas sindicais e populares).

Nessa direção, vale rememorar que tentativas de (re)configurações democratizantes do desenvolvimentismo econômico atiçaram acordos de elite pelo alto e, no limite, obstruções golpistas, como a de 1964, que instaurou uma ditadura empresarial-militar de 21 anos. Algumas dessas tentativas até acentuavam a dimensão do aquecimento do mercado interno e considerava alguma expansão de direitos sociais, mas não reivindicavam, pelo menos na mesma proporção, dispositivos diretos de distribuição de renda/riqueza, estabelecimento de uma rede vasta de direitos com alcance universal, participação nos assuntos e instâncias estatais, protagonismo e auto-organização populares. Mesmo, assim, não escaparam do arco de proscrições do golpe de 1964, que não tolerou nem mesmo o projeto veiculado por Juscelino Kubitschek (insuscetível de qualquer taxação de “comunista”), voltado à disputa das eleições programadas para o ano de 1965. Apesar da distância entre o desenvolvimentismo de JK e uma estatização ao estilo “soviético”, propostas como o estabelecimento de um salário mínimo como piso remuneratório nas relações trabalhistas no campo, conforme prescrevia o Plano JK 65, revelaram-se como intoleráveis nos marcos predominantes da atuação política e econômica das classes dominantes brasileiras. A propósito, há indícios de que JK foi assassinado pela ditadura militar.

Voltando a focar no cenário atual, estamos diante de um contexto que envolve a depreciação real do valor monetário do salário mínimo e, junto a isso, a corrosão de duas atribuições fundamentais e articuladas do mesmo: a atribuição de piso remuneratório e a atribuição de marco normativo. A contrarreforma trabalhista de 2017, um dos vetores do impeachment fraudulento de 2016, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma modalidade de trabalho que lança pessoas na condição de auferirem um rendimento mensal menor do que o salário mínimo pela venda da força de trabalho. É o tal do “trabalho intermitente”, cuja incidência no mercado de trabalho vem se alastrando, desde a sua instituição. Segundo levantamento do IBGE do biênio 2018-2019, mais que dobrou o montante de contratos de trabalho intermitente. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), no primeiro semestre de 2021, o quantitativo de contratações sob o vínculo intermitente foi quase 50% maior do que no mesmo período do ano de 2020. No âmbito dessa forma de contratação, trabalhadores(as), permanecendo subordinados(as) à determinada empresa, podem ficar dias, semanas ou meses sem serem acionados(as) e, consequentemente, sem remuneração. Quando acionados(as) pela empresa, as respectivas remunerações ficam estritamente acorrentadas às horas trabalhadas. Ademais, é importante sublinhar o impacto corrosivo dessa modalidade de contratação ao direito à aposentadoria, visto que a obrigação patronal na contribuição previdenciária não ocorrerá de forma contínua. Também não acontecerá de modo contínuo o depósito do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS). O direito às férias remuneradas fica também comprometido, visto que a remuneração do trabalhador(a) pelas horas trabalhadas, pelo período trabalhado já envolve, ali no momento, a quantia referente às férias. Nesses termos, tal quantia fica suscetível de ser tragada na tarefa de “se virar” no dia a dia, permeada por endividamentos.

No dia 25 de maio de 2022, foi instituído um tal “Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário”, através da aprovação da Medida Provisória 1.099/2022. Na prática, o Estado brasileiro institucionalizou mais uma forma de trabalho esvaziada de direitos trabalhistas e previdenciários, cuja remuneração é inferior ao salário mínimo. Diante da terra arrasada socioeconômica, o Estado promoveu mais uma regulamentação que insere no ordenamento jurídico brasileiro formas de trabalho cuja remuneração (não salarial e/ou pós-salarial) é menor que o salário mínimo. Conforme registrado acima, trata-se não apenas de uma depreciação do valor monetário do salário mínimo, mas das atribuições de piso remuneratório e marco normativo. O tal programa chancela e incrementa, também, uma característica marcante do mercado de trabalho atual – a  subocupação por insuficiência de horas trabalhadas. Além do mais, as prefeituras, responsáveis pelo financiamento do Programa, não estão incumbidas de pagar 13º salário, FGTS, férias etc.

No tocante à deterioração do mercado de trabalho no Brasil, também é relevante notar que o desemprego, ainda elevadíssimo, em alguma medida cede mediante o aumento da informalidade, da subocupação por insuficiência de horas trabalhadas e do desalento. Por exemplo, segundo a PNAD Contínua referente ao primeiro trimestre de 2022, o desemprego cedeu em decorrência do aumento de pessoas que ficaram sem ocupação empregatícia e deixaram de procurar empregos, saindo da catalogação de “desempregados”, caindo na situação de “desalento”, de “população fora da força de trabalho”. Sobre a carga ostensiva da informalidade no universo de trabalhadores(as) empregados(as), cabe destacar que de 4,6 milhões de vagas de trabalho criadas entre 2016 e o primeiro trimestre de 2022, 76% foram informais. Vale sublinhar, ademais, que no período de 5 anos o quantitativo de pessoas cujo trabalho está vinculado a aplicativos de entrega de mercadorias aumentou 979,8%. Amplia-se, intensamente, a massificação de trabalhadores(as) dependentes de renda diretamente auferida dos minutos trabalhados, do serviço prestado, excluídos(as) dos chamados “salários indiretos” e de grande parte dos direitos trabalhistas e previdenciários.

O desmantelamento da correia de transmissão entre trabalho formalizado, assalariamento e direitos trabalhistas/previdenciários, historicamente debilitada no Brasil, estabelece um pós-assalariamento de massas e atualiza o não-assalariamento de massas – um dos aspectos constitutivos da modernização capitalista no Brasil, concentradora de renda/riqueza e truculenta, erguida sobre as bases colonial, escravocrata e latifundiária. Com isso, forma-se um amálgama de não-assalariamento e pós-assalariamento de massas, em que ambos os fenômenos se entrelaçam e se tornam difíceis de serem divisados. Nesse amálgama, milhões de pessoas submetem-se a jornadas de 12, 14 horas de trabalho, por dia, em um frenesi de obtenção imediatista de remunerações que, muito dificilmente, terão alguma fração poupada para pagamento do INSS, visando uma aposentadoria e o acesso a outros benefícios/direitos.

Conjugada à superacumulação de trabalhadores(as) sobrantes/redundantes e ao desmanche do salário mínimo, a renda real média auferida pelo trabalho deteriora-se: encontra-se, atualmente, em um patamar inferior a de 2015. Deteriora-se não apenas a renda real média auferida pelo trabalho, mas a renda real média considerando-se a totalidade dos rendimentos dos(as) brasileiros(as), ou seja, considerando-se além de salários e de formas de renda obtidas pelo trabalho, benefícios previdenciários e assistenciais, como aposentadorias, Benefício de Prestação Continuada, Bolsa Família, dentre outros, e diversos tipos de rendimentos, incluindo, por exemplo, até doações. A obsessão das classes dominantes brasileiras de achatamento dos custos de produção e reprodução da força de trabalho no Brasil, incorporada, centralmente, pelo programa contrarreformista do golpe de 2016, atualiza-se e manifesta-se, de fato, nas situações aludidas. E um aspecto precisa, ainda, ser destacado: o peso das mencionadas deteriorações recai mais intensamente sobre segmentos mais vulnerabilizados da população – a deterioração de renda de usuários(as) do Bolsa Família foi o dobro se comparada com a queda de renda entre os(as) não usuários(as) do Programa. Quem mais necessita é quem foi mais penalizado: mais um corolário absurdo da estrutura de concentração de renda/riqueza do país e das disparidades socioeconômicas correspondentes.   

Com efeito, as análises e informações aqui arroladas acerca do mercado de trabalho também expressam a manifestação da crise econômica estrutural do capitalismo vigente, mais ou menos, desde a metade da década de 1970: fator estrutural, conforme já registrado, cujas manifestações incorporam características próprias da formação social brasileira. Em síntese, crise econômica do capitalismo é crise de superprodução/superacumulação de mercadorias, capitais, dinheiro, decorrente das contradições intrínsecas à finalidade compulsiva de acumulação monetária, correlata a um produtivismo também compulsivo. Essa superprodução/superacumulação acarreta aumentos gigantescos de capacidade produtiva ociosa e provoca a expulsão de massas de trabalhadores dos circuitos formais de trabalho, cuja implicação básica na lógica de acumulação de capital é a queda tendencial média da taxa de lucros (visto que lucros resultam, na realidade, de mobilização e utilização de força de trabalho em situação de exploração). Assim, o chamado trabalho vivo (Marx) vai ocupando posições lateralizadas nos circuitos produtivos e o capital, maníaco pela acumulação monetária, vai prescindindo de trabalho vivo sem deixar de necessitar dele, posto que a acumulação monetária resulta de mobilização e utilização de força de trabalho em situação de exploração, conforme mencionado. Há uma pressão contínua por incorporar tecnologia nos circuitos produtivos e, ao mesmo tempo, expulsar trabalhadores(as) em massa, advinda das disputas dos agentes econômicos por ampliação da rentabilidade (monetária). Atualmente, a fronteira tecnocientífica, lançada em patamares estratosféricos, contém a chamada indústria 4.0, composta por nanotecnologia, digitalização, inteligência artificial, internet das coisas, computação de borda e de nuvens, redes de 5G etc. Ademais, essa pressão contínua por incorporação de tecnologia nos circuitos produtivos, advinda das disputas por ampliação da rentabilidade monetária, que expulsa trabalhadores(as) em massa, conduz à concentração e centralização de capitais (e descentralização territorial pelo planeta). Podemos verificar isso na formatação e atuação das empresas multi/transnacionais, que concentram poder econômico e político.

É importante salientar que fatores geopolíticos e fatores políticos internos dos países também constituíram e constituem esse processo de crise estrutural, exigindo-nos agenciamentos entre as dimensões econômicas e políticas para impulsionar a complexificação dos estudos e análises. Como exemplos ilustrativos, podemos elencar dois vetores da emergência da crise estrutural do capital, na década de 1970 do século passado: o desmantelamento das bases do regime de Bretton Woods – taxas de câmbio fixas e o lastreamento/conversibilidade do dólar em ouro –, e as chamadas crises do petróleo. Ambos os eventos elencados não constituíram apenas fatores e episódios econômicos; ao mesmo tempo, configuraram-se como fatores e eventos políticos, atrelados às manobras para a manutenção e atualização da dominação norte-americana que blindaram a posição hegemônica do dólar e direcionaram o mundo para financiar a ampliação exacerbada do endividamento público, puxada pelo complexo industrial-militar e pela corrida armamentista do neoliberalismo de Ronald Reagan (melhor caracterizado como “keynesianismo militar”). Wall Street tornou-se uma máquina de sucção do excedente monetário do planeta, em um contexto de superacumulação de capital na forma monetária (uma das características da crise estrutural do capitalismo) e de incremento de inovações financeiras, que aprofundaram o processo de financeirização do capitalismo. Esse excedente planetário de capital em forma monetária passou a ser escoado para financiar não apenas o endividamento público norte-americano, mas também o privado. As políticas governamentais implementaram cortes de impostos para os ricos, em meio a políticas de achatamento salarial dos(as) trabalhadores(as).

No âmbito da formatação histórica de uma sociedade monetarizada, cujos bens e serviços adquirem a forma de mercadoria, não houve e não há mercado sem Estado, tampouco Estado sem mercado – decerto, com configurações empíricas diversas, posto que, por exemplo, as relações vigentes entre mercado e Estado (e vice-versa) no Burundi não são as mesmas da Dinamarca. Considerando essa perspectiva de fundo, formatações estatais e atuações governamentais podem se movimentar em direções pró-cíclicas à lógica e aos efeitos da crise ou em direções contratendenciais, com alcances variáveis. Focando na superacumulação de redundantes/sobrantes (um dos aspectos da crise econômica), e no contexto brasileiro atual, o governo Bolsonaro descarrega uma injeção pró-cíclica, em doses cavalares, à tendência estrutural de expulsão de trabalhadores e trabalhadoras dos circuitos formalizados de trabalho. Descarrega, também, uma injeção pró-cíclica, em doses cavalares, à tendência estrutural de precarização dos empregos, dos vínculos empregatícios ainda formalizados e de fragmentação do mundo do trabalho. Com isso, catalisa e aprofunda a corrosão do fio (historicamente já tênue) que liga formalização do trabalho, assalariamento e integração social mediada por direitos. Decerto, a tecnologia de governança bolsonarista operou e opera por meio de muita desregulamentação. Essa enxurrada de desregulamentações, entretanto, não prescinde de cargas e formatos diversos de regulamentações e outras intervenções estatais, em geral, com propósitos contrarreformistas, atrelados a dispositivos de expropriação/pilhagem de ativos públicos, fundo público e recursos naturais. Conforme registrado acima, com a aprovação da Medida Provisória 1.099/2022, por exemplo, o Estado brasileiro, capitaneado pelo governo Bolsonaro, regulamentou mais uma forma de trabalho esvaziada de direitos trabalhistas e previdenciários, cuja remuneração é inferior ao salário mínimo.

Mencionamos a tendência estrutural de fragmentação do mundo do trabalho e a injeção pró-cíclica, em doses cavalares, impingida pelo governo Bolsonaro. Na esteira da fragmentação exacerbada do mundo do trabalho, muitas unidades econômicas são constituídas por agregados de trabalhadores(as) terceirizados(as), intermitentes, não intermitentes (“regulares”) e instauram dispositivos de gestão empresarial desses agregados. O entrelaçamento de precarizações, uberizações e fragmentações, em meio a superacumulação de massas de sobrantes/redundantes, abala, com centralidade, os processos de mobilização, organização e atuação coletivas, gerando enormes desafios para a esquerda política, cujos diversos itinerários e graus de enfrentamento ao predomínio do lucro sobre a vida fundamentaram-se, historicamente, em algum nível, na mobilização de pessoas a partir do espaço de trabalho e das identidades construídas por intermédio da condição de trabalhares(as). De modos mais ou menos rígidos, mais ou menos elásticos, as gramáticas das esquerdas políticas ancoraram-se (e ancoram-se) no universo do trabalho.

Inclusive, nesse contexto de estilhaçamento funcional e simbólico do mundo do trabalho, permeado por precarizações abrangentes, as lutas sindicais por condições de trabalho dos(as) trabalhadores(as) que ainda mantêm vínculos formais são interpretadas e recepcionadas como “privilégios” entre parte das pessoas em situação de desemprego, desalento, informalidade, uberização, de maneira a suscitar, inclusive, reações ressentidas. Reações desse tipo dificultam a formação de laços de identidades intersubjetivas e, por conseguinte, a construção de ações coletivas intersetoriais, de alcance mais amplo entre trabalhadores(as). Favorecem, também, o recrudescimento de modalidades hiperindividualistas de agir, sentir e pensar; de modos subjetivos de “fechamentos sobre si mesmo(a)”, de “ensimesmamentos”, direcionados às exigências econômicas e sociais de adestramentos para se funcionar na “viração” do dia a dia, sem emprego formalizado, plano de carreira, salário, direitos trabalhistas, direitos previdenciários, respaldo sindical etc. Por meio desses adestramentos, diante de contextos de trabalhos permeados por fragmentação e precarização, trabalhadores(as) formatam-se como átomos, mônadas de obtenção/geração imediatista de rendimentos pós/não-salariais, com níveis elevados de automatismo funcional, psíquico. Oficialmente, o establishment chama isso de “empreendedorismo”. Uma fração dessa massa de trabalhadores(as), fixada no dito “empreendedorismo”, trata como ameaçadoras participação, diversidade e elasticidade sociais, aferrando-se a esquemas restritivistas, autoritários, ressentidos, estereotipadores/estigmatizadores de inserção na sociedade. Não à toa, ficam suscetíveis a engrossar as fileiras do extrato fanatizado da base bolsonarista. É importante frisar que esses referidos esquemas de inserção na sociedade encontram compatibilidades com os termos fundantes da formação social brasileira, atualizando-os e prolongando-os. Os ecos de uma formação social de base colonial, escravocrata, de predomínio de uma modernização truculenta e concentradora de renda/riqueza ressoam nesses referidos esquemas, bem como ressoaram, com estrondo, no golpe de 2016.

Também deve ser salientado que um contingente da massa de redundantes/sobrantes dos circuitos formalizados de trabalho é absorvido pelos mercados ilícitos, nos quais as fronteiras entre a “licitude” e a “ilicitude” se desmancham, se misturam ou se separam por uma linha muito tênue. O contexto atual do capitalismo, perpassado pela crise de superprodução/superacumulação de mercadorias, capital, dinheiro, e atravessado pela financeirização, é também marcado pela hipertrofia do setor de serviço/comércio. Nesse contexto, a compulsiva busca de expansão de fronteiras de negócios tende a se constituir como dispositivo de espoliação, expropriação, pilhagem, sobretudo na periferia do sistema capitalista. Esses dispositivos entrelaçam “violência econômica” (Marx) e “violência “extraeconômica” (Marx), e borram, quando não dissolvem, os limites entre o “legal” e o “ilegal”. Circunscrita aos marcos predominantes da urbanização brasileira, da formação de metrópoles no país, as tendências supracitadas ampliam-se, adquirindo tinturas próprias, e o desmanche bolsonarista as galvaniza. A título ilustrativo, cabe registrar: na cidade do Rio de Janeiro, mais da metade dos territórios são dominados por milícias, que controlam um vasto rol de atividades econômicas de forma direta, mas também indireta – por meio da cobrança de taxas escorchantes e extorsivas pelos tais “serviços de segurança”. Muitos(as) cariocas vendem a força de trabalho para atividades econômicas dominadas pela milícia, como distribuição e venda de gás, serviços de internet e TV, transportes, mercado imobiliário, comércio de autopeças, comércio varejista de drogas – alguns grupos milicianos arrendam, alugam parte de territórios para o comércio de drogas ou “terceirizam” essa venda, conforme apontam pesquisadores do tema. Algumas dessas atividades são integralmente ilegais, outras transitam entre a “ilegalidade” e a “legalidade”, cujas fronteiras, todavia, quando não se desmancham, misturam-se e contam com a atuação direta e/ou a conivência de agentes do Estado – das áreas da segurança pública, mas também administrativa. Cabe registrar que, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, há 1.096.398 agentes privados de segurança no país, número superior ao total de agentes de segurança pública – 772.202. Desse montante de 1.096.398 de agentes privados, 600.409 atuam à margem de qualquer regulação, supervisão do poder público e contam com a atuação direta e a conivência de agentes do Estado.

No Brasil, de alguma maneira, o desafio de se mover para além da gramática ancorada no mundo do trabalho sempre esteve presente para as mobilizações políticas de esquerda com pretensões reais de instituir força social capaz de, efetivamente, interferir na realidade concreta com o intuito de transformá-la. A condição periférica da formação social brasileira, de base colonial, escravocrata e latifundiária, marcada pelo predomínio de uma modernização concentradora de renda/riqueza e truculenta, provocou esse desafio e continua provocando-o. Com isso, o desenvolvimento dos chamados “trabalhos de base” requereu (e continua requerendo), além de perseverança, criatividade e versatilidade abrangentes. Os impactos da crise estrutural do capitalismo e da ampla gama de contrarreformas neoliberais (injetadas, com extremismo, no programa econômico do golpe de 2016 e prolongadas pelo bolsonarismo) implicam em mais camadas de desafios (e em novos desafios) às mobilizações políticas dos(as) trabalhadores(as), em grande medida amalgamados entre a massa de não assalariados(as) e a massa de pós-assalariados(as). Mobilizações que acionem interações ativas com a realidade externa, visando transformá-la e reconstruí-la e, nesse fluxo ativo de interações, encontrar ambiências favoráveis e estimulantes à autotransformação e reconstrução subjetiva de percursos de vida. Logo, mobilizações políticas que se configurem, efetivamente, como práxis – esse formato, esse estatuto de ação que agencia transformação da realidade externa e autotransformação dos(as) agentes.

São dignas de registro as iniciativas do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Os(as) ativistas do MTST atuam nas periferias urbanas, cientes de que a combinação entre a crise estrutural do capitalismo, a devastação neoliberal e as características estruturantes da formação social brasileira suscita a superacumulação de uma massa de sobrantes/redundantes, concentrada, sobretudo, em imensas áreas urbanas periféricas. Esmerando-se no trabalho de base, o Movimento, ao longo de sua trajetória, foi construindo formas de encontros, interações, interlocuções com essa massa de pessoas, o que exigiu experimentos para além da gramática ancorada no universo do trabalho, sem, todavia, incorrer em polarizações do tipo “território” em detrimento do (espaço de) “trabalho”. Atualmente, diante do quadro avassalador de fome que assola o país, o Movimento está muito dedicado às experiências das cozinhas comunitárias, que se constituem, ao mesmo tempo, como espaço de enfrentamento do flagelo da fome e espaço de acolhimento (no sentido abrangente de reconhecimento, sustentação, potencialização e formação). No momento de redação do artigo, 31 cozinhas comunitárias funcionam, em diversas partes do país.

Felipe Brito é docente do curso de Serviço Social da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Campus de Rio das Ostras. Pela Boitempo, organizou com Pedro Rocha de Oliveira o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (2013). Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.

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