Nota sobre a reindustrialização do Brasil

Fotografia: Alexandre Lallemand/Unplash

O Brasil resultante das políticas dos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro foi reconvertido em um país primário (agro-minério) exportador.

Marlon Luiz de Souza

Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 26/12/2022

Estudos avançados da economia política mundial comprovam que não há país no mundo que tenha atingido o estágio de desenvolvido e ao status de potência econômica sem ter se industrializado elevadamente. A indústria tem a produção com maior valor adicionado, é o setor que emprega o trabalhador mais qualificado e por esta razão paga uma média salarial maior, é onde se gera mais empregos por firma.

Além disto, a relevância da indústria para o desenvolvimento econômico reside em que é o setor produtivo industrial que mobiliza e forma todo um volumoso agrupamento produtivo de fornecedores (medias e pequenas empresas) entorno de suas plantas de fabricação. Ao contrário do que anuncio alguns órgãos de imprensa erroneamente em editorial a maior potência econômica mundial, os EUA, hoje está em um processo de reindustrialização, a segunda maior economia do globo a República Popular da China é o motor industrial do planeta, com uma indústria diversificada desde a siderúrgica pesada, automobilística até inteligência artificial de alta performance.

As ciências econômicas contemporânea comprovam que a trajetória para a superação do subdesenvolvimento é a industrialização.

O Brasil resultante das políticas dos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro – na contramão global – foi reconvertido em um país primário (agro-minério) exportador.

O professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e oficial de assuntos econômicos da Comissão para América Latina e Caribe (CEPAL) Ricardo Bielschowsky explica que “não há meios de alcançar uma industrialização eficiente por meio das forças espontâneas do mercado, por isto é necessário que o Estado o planeje”.

De acordo com ex-Ministro do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior (MDIC), pós doutor pela Universidade de Ilinois e pela Universidade de Paris em economia Mauro Borges e que integrou o Gabinete de Transição o diagnóstico central é de que no governo Bolsonaro houve efetivamente um desmonte intencional da política industrial e do comércio exterior do Brasil.

Mauro Borges apresenta vários indicadores para demonstrar a decomposição da política industrial: (a) violações das políticas antidumping – que são o uso de normas definidas pela Organização Mundial do Comercial (OMC) contra práticas desleais de concorrentes estrangeiros em relação aos produtores brasileiros. (políticas de defesa comercial, que não podem ser confundidas com protecionismo); (b) completa descapitalização do principal banco brasileiro do ponto de vista do financiamento do investimento que é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O BNDES tem hoje uma dotação de desembolsos que é 0,74% do Produto Interno Bruto (PIB), que é a menor dotação percentual desde a criação do BNDES em 1952; (c) a infraestrutura do Brasil está abaixo do nível de reposição da depreciação.

BNDES

O ex-Ministro do MDIC Mauro Borges evidencia que houve por parte do governo Jair Bolsonaro uma política deliberada de descapitalização do BNDES. O BNDES que já teve uma capacidade de desembolso superior ao Banco Mundial e que foi o principal banco de desenvolvimento da América Latina hoje está descapitalizado.

Em Efficiency, Finance and Varieties foi Industrial Policy livro organizado pelo prêmio Nobel de Economia e professor de Economia da Universidade de Columbia Joseph Stiglitz em parceria com o economista Akbar Noman constata que bancos públicos são imperativos para industrialização a partir de financiamento de custo adequado a longo prazo para empresas industriais. Para nível de comparação o BNDES já representou para investimento em infraestrutura anual 1,25% de desembolso em relação ao PIB – que era um grau de desembolso percentual historicamente padrão de investimento em infraestrutura. Hoje o desembolso do BNDES para investimento em infraestrutura anual é de 0,25% do PIB e isto ainda porque é residual, uma série de investimentos que são via de regra a longo prazo e foram contratados ainda nos governos Lula. Este percentual de desembolso pode ser verificado ainda menor se for se considerar apenas os desembolsos contratados somente a partir do governo Bolsonaro.

A política deliberada de descapitalização do BNDES também fica evidente nas operações de venda dos resultados eficientes que teve na compra de ações e de lançamento de empresas. O BNDES hoje é uma instituição financeira acanhada, um banco sem capacidade de financiamento, sem impulsionar a indústria, sem atenção a pequena e microempresa.

Mauro Borges explica que “todo o lucro do BNDES é convertido em dividendos. Se o banco é um banco de desenvolvimento ele deveria seguir rigorosamente o limite estabelecido pela CVM que é de 25% de distribuição de lucros e reter estes lucros para investimentos adicionais. E estes investimentos adicionais vão gerar muito mais caixa para o Tesouro porque faz a economia crescer. Se a economia ficar estagnada não há como fazer o país crescer”.

O já anunciado novo presidente do BNDES o economista Aloizio Mercadante relata que “o BNDES teve um aumento de lucro até o terceiro trimestre de 2022 de 30%, R$ 34 bilhões de aumento de lucro. Só que esta lucratividade em vez de se transformar em financiamento, crescimento, investimento, desenvolvimento ela é toda transferida para o Tesouro Nacional. O BNDES transferiu todo os R$ 45 bilhões e agora de dividendos que vai receber vai transferir mais R$ 24 bilhões, dos quais já foi transferido R$ 19 bilhões”.

Os resultados certificam que o BNDES é uma instituição pública de financiamento do investimento plenamente viável. O BNDES tem hoje uma taxa de inadimplência muito baixa. Em até 90 dias a inadimplência está em 0,1%, é uma inadimplência muito baixa para o sistema bancário. Pelo Acordo de Basileia – que são parâmetros básicos de liquidez e responsabilidade para todo o mercado para minimizar o risco das operações de crédito e assegurada a estabilidade do sistema financeiro de forma geral – o BNDES está excessivamente prudente em torno de 36% e o patamar é 20%.

Mercadante explica que “o BNDES é um banco que tem espaço para aumentar o seu funding – capacidade de captar capital para oferta de financiamento específico de investimento para aumento de produção industrial – sem qualquer custo fiscal, sem nenhuma necessidade de repasses dos recursos do Tesouro Nacional porque o BNDES tem capacidade de se recompor se for dado a ele os instrumentos necessários de recomposição do funding”.

O Gabinete de Transição aponta este como um dos desafios do Governo Lula, recompor o funding do BNDES. Um dispositivo estudado pelo Gabinete de Transição seria retomar o funding captado do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) através da destinação do percentual de 40% do Programa de Integração Social e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP) que era destinado para funding do BNDES. Este percentual com a Reforma da Previdência foi reduzido para 25% – isto significa tirar investimento do país. A retomada do funding a partir do FAT é uma medida necessária.

O temor do mercado financeiro é de o BNDES retome a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) que era subsidiada pelo Tesouro Nacional e que foi substituída pela atual Taxa de Longo Prazo (TLP) no governo Michel Temer. Segundo integrantes do Gabinete de Transição qualquer alteração neste sentido “será precedida de discussão técnica aprofundada e somente o Congresso tem competência para promover alterações na TLP através de aprovação de lei”.

Do ponto de vista pragmático para a política industrial do Brasil a reforma da TLP é uma reforma fundamental para que seja viável o financiamento de longo prazo do investimento. A TLP como ela é hoje varia entre 15% e 16% o que é uma taxa inviável para investimentos no país. Em investimento acima de 10 anos, a taxa de retorno não viabiliza o custo do crédito no patamar da TLP. Isto é, a TLP é ineficiente como instrumento de financiamento de longo prazo no Brasil.

A TLP tem que ser reformada e flexível com taxas distintas para médio e longo prazo. O custo da TLP de um investimento de 5 anos não pode ser a mesma taxa de um de 30 anos. Um redutor da TLP sem recursos adicionais do Tesouro é determinante, por exemplo, para programas especiais como de transição climática e de transição energética.

Como o Brasil não tem um mecanismo privado de financiamento de investimento com crédito de médio e longo prazo eficiente outro dispositivo estudado pelo Gabinete de Transição para o BNDES aumentar sua capacidade de crédito principalmente para o financiamento de médio e longo prazo é a formação de um fundo garantidor. A concepção é de que o BNDES entraria diminuindo o risco e com isto atrairia o investimento porque tem uma liquidez internacional gigantesca para projeto privado. A grande vantagem comparativa é que o BNDES diminui o risco e com isto consolida segurança para os projetos serem executados.

Reforma tributária e responsabilidade fiscal

A política do novo governo Lula é de responsabilidade fiscal com justiça social. Não há dicotomia entre responsabilidade fiscal e responsabilidade social. O que é ineficaz é uma rigorosa política econômica de responsabilidade fiscal e de desprezo à responsabilidade social. Se o governo for irresponsável fiscalmente é evidente que isto tem impactos sociais. Mas também se for responsável fiscalmente as custas do campo social isto gera resultados fiscais ruins porque o país deixa de crescer, deixa de gerar empregos, reduz a produtividade industrial, a receita governamental cai e obviamente tem impacto sobre as próprias contas públicas.

Uma das prioridades do governo Lula é também a Reforma Tributária que, embora ainda não esteja definida, o Gabinete de Transição tem se dedicado ao estudo das propostas mais consistentes em pauta. Algumas linhas gerais para a reforma tributária que são quase consensuais dentro do Gabinete de Transição são; a proposta de taxação de dividendos, combate a regressividade do sistema tributário brasileiro, reforma dos impostos indiretos para desencadear aumento da produtividade.

Comércio exterior e pequenas empresas

Se faz necessário desencadear uma política ofensiva de comércio exterior para abrir, ampliar o acesso aos mercados internacionais, diversificar os destinos das exportações brasileiras, promover os produtos e melhorar a percepção internacional acerca das empresas brasileiros.

De acordo com o presidente da Pequena Empresa da Federação do Comércio, Bens e Serviços (Fecomércio/SP) e professor da USP de Economia das Organizações Paulo Roberto Feldmann apenas 1% das exportações brasileiras são de pequenas empresas. Na Itália que exporta mais do que o dobro do Brasil, as pequenas empresas respondem por mais da metade das exportações. Feldmann explica que esta participação da pequena empresa na exportação italiana decorre porque na Itália por ação do Estado foi criado um consórcio que articula as pequenas empresas auxiliando com metodologias de gestão e com isenções fiscais.

O professor da USP pondera ainda que as pequenas empresas no Brasil não inovam e aponta que isto deriva da ausência de políticas de extensão das universidades de apoio ao desenvolvimento da inovação nas pequenas empresas. “Em outros países onde a pequena empresa inova há uma relação íntima de apoio entre as universidades (públicas e privadas) e as pequenas empresas”, relata Paulo Feldamann.

A partir do conceito exposto acima por Paulo Feldmann é possível formular que o Estado brasileiro através de políticas de comércio exterior pode dispor de consultoria e assessoria com o objetivo de orientar pequenas empresas para definirem estratégias de internacionalização. O governo pode ainda disponibilizar capacitação com o objetivo de incrementar nas empresas a competitividade para o mercado mundial, além divulgação no exterior de indicadores econômicos articulado com posicionamento do país através de site location atrair investimentos internacionais.

O anunciado Ministro da Fazenda Fernando Haddad tem citado sobre a agenda de comércio exterior seu o objetivo de consumar o acordo anunciado em 2019 com a União Europeia (UE). É o tratado mais ambicioso dos países sul-americanos. Se concretizado, de acordo com balanço de 2019 do atual Ministério da Economia é de que, uma área de livre comércio entre os países do Mercosul e da UE representaria um aumento do PIB do Brasil de R$ 87,5 bilhões em 15 anos. Um dos principais motivos dos países europeus por não terem retificado o acordo é por causa do aumento das queimadas da Amazônia.

Conclusão

É decisivo para inaugurar a trajetória do novo desenvolvimento do Brasil investimento em bens de capital, pesquisa, conhecimento, ciência e tecnologia, recompor o papel indutor e coordenador do Estado e dos bancos públicos e das empresas estatais para que cumpram, com agilidade e dinamismo, seu papel no processo de desenvolvimento econômico e progresso social, produtivo e ambiental do país.

No processo de reindustrialização do país é capital reposicionar o Brasil na Indústria 4.0, na Inteligência Artificial e nas cadeias globais de valor com produtos de alta valor agregado, transição energética, climática e digital como também constituir a integração econômica da América do Sul, Latina e Caribe com os países em desenvolvimento do Sul Global em um programa soberano da região de respeito a autodeterminação dos povos, mas de crescimento mútuo, compartilhado e pacífico com os EUA e a União Europeia.

Marlon Luiz de Souza é  jornalista, é mestrando em Economia Política Mundial pela UFABC.

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