“Neste ano de pandemia nosso trabalho se tornou muito arriscado”, afirma cobradora

Responsáveis pela mobilidade urbana e pelo transporte de milhares de vidas diariamente, motoristas e cobradores estão entre os profissionais que não puderam parar na pandemia e nem praticar o isolamento social.

O setor foi atingido pelo corte de linhas e redução de horários, afetando ainda mais uma realidade já existente em muitos trajetos – a superlotação dentro do transporte público.

Trabalhadores da linha de frente, esta categoria, segundo pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é a segunda com maior risco de contaminação pelo novo coronavírus

Esta é a terceira reportagem da série especial Trabalhadoras e Trabalhadores Invisíveis, realizada pelo Brasil de Fato RS no mês de luta da classe trabalhadora. Você pode acessar as matérias anteriores sobre trabalhadoras domésticas e garis e catadores.

“Nesse ano de pandemia nosso trabalho se tornou muito arriscado, pois somos linha de frente e é um desafio diário sair de casa para trabalhar, sem perspectiva de quando seremos vacinados, sem EPis de segurança necessários nos ônibus para proteger motoristas e cobradores, sem saber se estamos contaminados, pois nem testagem é feita. Muitos de nós podemos ser assintomáticos e estar contaminados sem ter conhecimento”, relata Rosangela Pires Machado, 49 anos, que em julho deste ano completa 17 anos como cobradora de ônibus.  

Motorista profissional há 16 anos, Rafael Cunha Machado, 37 anos, conta que nesse mais de um ano de pandemia, a palavra tensão é o que descreve os momentos iniciais, por ser um vírus totalmente desconhecido com proporções gigantescas no mundo todo.

“Não dá para negar que a tensão tomou conta, ainda mais lembrando da família que ficava em casa compartilhando a aflição vista nos telejornais. Nosso desafio num primeiro momento foi a limpeza no local de trabalho, o cuidado individual com a higienização, e a conscientização de todos à volta para ter essa dedicação e prevenção contra o vírus”, expõe.

Rosangela e Rafael trabalham na Carris, empresa pública de transporte coletivo de Porto Alegre. Eles pertencem a uma categoria que exerce sua atividade em um espaço onde o distanciamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é impossível.

E ainda há o fator da interação entre passageiro, motorista e especialmente cobrador. Fatores que explicam o resultado do estudo da UFRJ, que aponta que a categoria tem 71% de chance de contaminação. Em nível de risco, a categoria vem logo após os profissionais da saúde.

O mapeamento foi realizado em maio de 2020 pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ), que analisou 2,6 mil ocupações no país, nas mais variadas áreas, para identificar o índice de risco das profissões. 

“Isso é muito preocupante e muitas pessoas não cumprem os protocolos básicos e tiram a máscara para comer dentro do ônibus’, , exemplifica Rosangela.

“Temos que estar atentos a tudo, e agora com as novas regras no transporte, 20 passageiros em pé em ônibus pequeno e 35 em articulado, isso está se tornando muito alarmante pois dá um excesso de pessoas juntas. Não tem como cuidar pois o espaço se torna muito pequeno entre os usuários”.

“Ser motorista é ter a certeza de não ter errado na escolha da profissão” 

Morador do bairro Hípica, beco do Adelar, na Zona Sul de Porto Alegre, Rafael, é casado, pai de uma filha de 10 anos e um filho de sete. Ele fala com orgulho da sua profissão, por ser um caminho de aprendizado e conhecimento.

“O trabalho de motorista profissional sempre foi importante para o mundo. Uma profissão que não permite erros, quando acontecem são sempre lembrados com mais ênfase que o dia a dia de luta”, afirma, ressaltando que não vê o seu trabalho como desapercebido ou invisível.

“O que difere é como somos vistos e lembrados por nossos usuários, amigos e clientes”, complementa. 

O seu horário de trabalho atual é das 17h20 às 4h40. “Minha rotina é fazer linha até as 22h. Após intervalo de três horas, faço transporte dos funcionários da noite e busco os funcionários do turno da manhã. Pela manhã durmo, em seguida faço as tarefas da casa ajudando minha esposa Cláudia, sem esquecer das crianças”, conta. 

Rafael comenta que, assim como a maioria das pessoas, foi necessário a ele buscar informação da ciência, política e economia no que diz respeito à pandemia e filtrar os boatos.

Como ter cuidado redobrado com o contato com as pessoas, superfícies e troca de máscaras, assim como a precaução do contato com parentes próximos e a preocupação da transmissão do vírus.

No trabalho, aponta, demorou para as pessoas mudarem seus hábitos, seu comportamento dentro dos coletivos e até mesmo em ambientes coletivos.

Sobre a vacinação, avalia que ela foi demorada e que o país continua atrasado em relação à cura. “O transporte coletivo foi esquecido na escala de vacinação”, afirma.

E por fim, como mensagem final, Rafael agradece aos profissionais dos serviços essenciais, em especial os tripulantes do transportes coletivos.

“Não vamos desistir, pois a crise vai passar e a vida normal vai voltar. Minha solidariedade às famílias que perderam seus entes queridos. E quero lembrar as lideranças que a vida humana não é negócio e não tem preço cada um que se foi”, finaliza. 

“Adoro o que faço, embora meu trabalho não seja reconhecido e valorizado como merecemos”

Para Rosangela, exercer a função como cobradora representa algo especial, embora ele não seja reconhecido e valorizado como deveria.

“Somos uma categoria pouco respeitada em seus direitos e muitas vezes invisíveis perante a sociedade, pois muitos dos que passam diariamente pela roleta nem ao menos percebem quem está sentado cobrando a sua passagem”, desabafa. 

Moradora da Restinga, periferia da Capital, Rosangela é separada e mãe de um casal. Ela acorda diariamente às 4h30 da manhã. Antes da pandemia, sua rotina de trabalho era de até 12 horas, iniciando às 7 da manhã até às 19 horas e 30 minutos.

Com a pandemia, conta que está trabalhando 15 horas e 30 minutos diariamente, chegando em casa às nove da noite. Além do trabalho, a dupla e tripla jornada com os afazeres doméstico e a ajuda para a filha com os temas escolares e a defesa do serviço público.

“Faço parte da comissão de funcionários em defesa da Carris pública. Fui delegada sindical da Carris e vice-presidente da comissão de funcionários. Tenho uma rotina bem puxada com tripla função”, destaca. 

Ao comentar as mudanças que a pandemia trouxe à sua vida, Rosangela destaca o medo e preocupação frente à perda de colegas. Segundo conta a cobradora, aproximadamente 200 colegas foram diagnosticado com covid-19, e 26 vidas foram perdidas para a doença.

“Isso afeta muito psicologicamente. As informações não são repassadas para não alarmar a categoria. As empresas escondem de fato quantos casos tiveram, assim como quantas mortes. E mesmo com o STF (Supremo Tribunal Federal) ter considerado a covid como acidente de trabalho, e ter direito à CAT ( Comunicação de Acidente de Trabalho), as empresas estão negando esse direto aos funcionários que testaram positivo. Isso é preocupante pois não sabemos as sequelas que podem vir a ter mais tarde”, relata. 

Para ela os governantes deveriam ter um olhar mais aprofundado sobre a forma da vacinação. “Nos consideram serviço essencial, não paramos um dia sequer durante a pandemia e nem se cogita a vacinação para os rodoviários. Os ônibus andam cheios o dia todo, circulam milhares de pessoas. Nós, cobradores, manipulamos dinheiro e isso tem se tornado uma preocupação constante, pois além de nos contaminar poderemos estar espalhando o vírus para multidões diariamente”, frisa. 

Como mensagem final, Rosangela faz um apelo para que os usuários de transporte coletivo colaborem com o motorista e cobrador. “Suba sempre de máscara, não a tire em hipótese alguma, para assim proteger a si e os demais, e que os governantes repensem e autorizem a vacinação já para os rodoviários”, finaliza. 

De acordo com a prefeitura de Porto Alegre, segundo o plano municipal de imunização, balizado pelo nacional, a vacinação para os trabalhadores do transporte coletivo acontecerá após a vacinação das mulheres apenadas, agentes penitenciários, população em situação de rua, portadores de deficiência permanente severa e trabalhadores do transporte de cargas. Conforme explica o executivo municipal, a vacinação não segue cronograma de datas preestabelecidas e sim a disponibilidade de vacinas. 

Fonte: Brasil de Fato
Texto: Fabiana Reinholz
Data original da publicação: 06/06/2021

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