Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico

Organizadores: Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker
Editora: Autêntica
Ano: 2022
ISBN: 9786588239810

Resenha por Martin Magnus Petiz

Em dezembro de 2023, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal requereu a inclusão da Reclamação (Rcl) nº 64.018 na pauta do Plenário para julgamento. O caso trata da demanda de um trabalhador pelo reconhecimento do seu vínculo de emprego com a Rappi, empresa multinacional do ramo dos aplicativos de entrega[1]. Embora a notícia possa indicar que o STF enfim se sensibilizou pela reivindicação da classe de trabalhadores “uberizados” por seus direitos, a tendência é que se uniformize a rejeição do pedido para esse tipo de caso – a decisão da 1ª Turma no caso citado foi unânime pela suspensão da decisão que reconhecia o vínculo –, com a consequente ausência da cobertura de direitos sociais garantida no art. 7º e seguintes da Constituição. 

Há alguns anos, o STF vem sucessivamente suspendendo decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem o vínculo de trabalhadores de aplicativos, alegando que essa modalidade de contratação se dá entre partes autônomas e livres. Mas não faz parte da essência do direito do trabalho rejeitar essa tese? O que leva julgadores a concordarem com o argumento de que é da vontade dos trabalhadores terem seus direitos flexibilizados? Como pode um indivíduo ser livre para decidir trabalhar mais e receber menos, sem direitos? [2]

No livro organizado por Safatle, Junior & Dunker, membros do Laboratório de Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da Universidade de São Paulo, filósofos e psicanalistas buscaram explorar as razões de vivermos em uma sociedade que compartilha de uma certa concepção de que a liberdade é o valor máximo a ser protegido, entendida como ausência de restrições a escolhas pessoais. Ao mesmo tempo, contudo, essa sociedade aprisiona os seus membros a um modelo econômico que os submete a condições de trabalho indignas e insalubres. O livro se divide em três partes, as quais podem ser resumidas em blocos: sobre (i) a filosofia por trás do neoliberalismo, (ii) o papel da psicanálise no contexto do neoliberalismo e (iii) o neoliberalismo no contexto brasileiro. Em função da minha formação e da audiência desse espaço ser predominante jurídica, limitarei-me a expor em especial o primeiro e o terceiro blocos. 

Os artigos exploram o aspecto disciplinador do neoliberalismo em conter e direcionar os desejos dos agentes para fins do Estado. O neoliberalismo torna o capitalismo um sistema “gestor do sofrimento psíquico” porque molda também o que conta como padrão de normalidade e desvio psíquico com base na racionalização econômica de toda a vida. Ele define o que conta como sintomas clínicos, conquanto cria ele mesmo os elementos de mal-estar, angústia e as conflitivas existenciais. [3]

O aspecto clínico se expressa na definição de críticas sociais como formas de patologia: “a recusa ao primado da propriedade privada e da competitvidade não seria apenas um equívoco econômico, mas principalmente uma falta moral.”[4] Como solução para a disfuncionalidade produtiva, oferece-se a “funcionalização” dos indivíduos por meio da farmacologia, quando não a rotulação dos sintomas como “desvios de personalidade.”[5] 

O segundo aspecto decorre da concepção de sujeito neoliberal como “empreendedor.” Obviamente, as formas de angústia vão derivar de uma noção individual de fracasso em atingir uma vida boa.[6] “Num tempo em que os ideais são a soberania absoluta da vontade individual sobre seu próprio destino, qualquer falha possui o valor de fraqueza, incompetência, covardia e falta de vontade.” [7]

É importante contextualizar as origens do neoliberalismo para separá-lo claramente de teorias do liberalismo político. O livro aborda apenas a definição positiva de neoliberalismo, entendido como o movimento intelectual que defende a submissão de todos os aspectos da vida à racionalidade econômica. No entanto, em nenhum momento o distingue – definição negativa – do liberalismo político contemporâneo. 

Os representantes mais ilustres do liberalismo político contemporâneo – John Rawls e Ronald Dworkin – pregavam como critério de justiça para as instituições políticas não só a garantia das liberdades mais básicas – de pensamento, de associação, etc. -, como faz o neoliberalismo, mas também defendiam a intervenção estatal, sob certas condições, para restaurar a igualdade de condições e de recursos para a disputa pelos bens que cada um necessita para ser feliz. Rawls e Dworkin defenderam políticas de ações afirmativas como medidas desse tipo, por exemplo[8]. A ausência de uma definição negativa no livro pode contribuir para a confusão que se vê cotidianamente entre discursos “neoliberais” e “liberais” na opinião pública. 

O livro explora o surgimento do neoliberalismo a partir da mobilização de certos setores intelectuais na Europa e nos EUA já no período pré-Segunda Guerra, como resposta a formas “coletivistas” de organização social – um “balaio” em que se incluía o nazi-fascismo, o comunismo e o Estado de bem-estar social Keynesiano[9]. O seu objetivo ia além da proposta do liberalismo clássico de garantir as condições da liberdade. Uma sociedade livre, ditam os neoliberais desde a sua fundação, só surgiria de fato da domesticação moral do sujeito contra valores coletivos. Como defendia Hayek, a “liberdade” deveria ser mais valorizada do que a “segurança” que intervenções estatais no mercado costumam se dispor a produzir[10].

Apesar disso, os autores elaboram muito bem o discurso moral(ista) por trás do neoliberalismo.  Citam Margaret Thatcher de modo recorrente para reforçar o mantra neoliberal: “economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma.” [11] Expõe-se como o neoliberalismo exerce fortes métodos de controle social. Ele não visa apenas a garantir condições para cada indivíduo escolher como ser feliz, mas impõe a todos a racionalidade da maximização do lucro e da utilidade como o único critério para a ação racional – social ou pessoal. Como mostram Safatle e Franco et al em seus artigos, a ascensão da teoria neoliberal acabou contaminando todas as nossas instituições, pregando a maximização da utilidade como racionalidade a ser perseguida. Isso explicaria, na visão dos autores, porque um neoliberal como Friedrich Hayek teria dado aval à ditadura de Pinochet como “sistema necessário durante um período de transição” para um modelo mais liberal, embora menos democrático[12]; e porque a implantação do neoliberalismo no Brasil exigiu tantas ações estatais no Governo FHC[13]. 

O neoliberalismo também funciona como filosofia política, portanto, uma vez que justifica ações econômicas e estatais com base na liberdade. Mas a “liberdade” é definida pelos teóricos neoliberais a partir de uma concepção de sujeito como alguém que se mobiliza estritamente em função do lucro[14]. Ao lado da crítica à defesa de formas positivas de liberdade – que veem o indivíduo como se constituindo e se realizando socialmente, em formas comunitárias de vida[15] –, o neoliberalismo concebe o sujeito como totalmente isolado dos demais[16]. Aliada a uma concepção de sujeito como “empresário de si mesmo”, uma forma de “capital humano”, que investe em si mesmo e colhe os seus próprios frutos e as perdas – escancarando as portas da meritocracia como filosofia moral egoística em uma autora como Ayn Rand[17] –, a despolitização social é a consequência mais óbvia. O movimento sindical sofrer da desmobilização não é a causa do individualismo, mas o seu sintoma. A tese deste livro é a de que a governabilidade neoliberal entra também no campo psíquico[18]. 

Os autores apontam muito bem que o fato de o principal defensor da tese do “capital humano”, o economista Gary Becker, ter sido nomeado para o Prêmio Nobel da Economia em 1993, com amplo reconhecimento acadêmico – inclusive com influência sobre o chamado movimento “Direito & Economia”, nascido na sua “Escola de Chicago”[19] – reforça o quão atual e importante é a leitura crítica e aprofundada do discurso neoliberal, inclusive por juristas e operadores do direito. 

O “discurso libertário” neoliberal se reveste de um pano de fundo moralista, autoritário e desmobilizador da vida política e associativa..  Ele justifica a precarização do trabalho sob o viés da maximização do lucro como única medida de racionalidade da ação social. Discursos como esse, tão propagados hoje em dia em discussões trabalhistas, são o sucesso de um trabalho ideológico intenso de setores adeptos do neoliberalismo há quase um século. Repensar o sujeito sob o aspecto da sua inserção em formas de coletivas de vida – como o sindicato, a sociedade civil organizada, a comunidade política, etc. – é tarefa urgente para se conter os avanços corrosivos do neoliberalismo sobre os direitos sociais.

Onde encontrar

A obra está disponível para venda no site da editora.

Notas

[1]  PLENÁRIO do STF deve examinar reclamação sobre vínculo de emprego de trabalhadores de aplicativos. STF, 2023. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521493&ori=1>, acesso 24 jan. 2024.

[2]  Ver ALEGRETTI, Laís. Trabalhar para app rende menos por hora a motoristas e entregadores; veja salários. BBC News Brasil, 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84535d7v7xo#:~:text=Sal%C3%A1rio%20de%20motorista%20de%20aplicativo&text=E%20as%20jornadas%20s%C3%A3o%20mais,(40%2C9%20horas)>, acesso 24 jan. 2024

[3]  Introdução, p. 11.

[4] SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral, p. 20.

[5] Ver no livro: NEVES, Antonio et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. DUNKER, Christian. A hipótese depressiva. DUNKER, Christian et al. Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira.

[6]  FRANCO, Fábio et al. O sujeito e a ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo, p. 48.

[7]  JUNIOR, Nelson da Silva. O Brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do “Pacto edípico e pacto social”, de Hélio Pellegrino, ao “E daí?”, de Jair Bolsonaro, p. 274.

[8]  Ver RAWLS, John. A theory of justice. Revised edition. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1971. RAWLS, John. Political liberalism. Expanded edition. New York: Columbia University Press, 1993. DWORKIN, Ronald. What Is Equality? Part 1: Equality of Welfare. Philosophy & Public Affairs, vol. 10, no. 3 (1981), pp. 186-220. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019. 

[9]  SAFATLE, Op. cit., p. 23-24; FRANCO et al, Op. cit., p. 65-66.

[10]  SILVA, Daniel Pereira et al. Matrizes psicológicas da episteme neoliberal: a análise do conceito de liberdade,, p. 87-88.

[11]  SAFATLE, Op. cit., p. 24.

[12]  Ibid., p. 26.

[13]  FRANCO et al, Op. cit., p. 72.    

[14]  SILVA et al, Op. cit., p. 88.

[15]  Para críticas comunitaristas ao liberalismo político contemporâneo que se aplicam mais claramente ainda ao neoliberalismo: TAYLOR, Charles. Cross-purposes: the liberal-communitarian debate. In: Philosophical arguments. Cambridge: Harvard University Press, 1995. SANDEL, Michael J. Liberalism and the limits of justice. 2nd edition. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

[16]  SILVA et al, Op. cit., p. 96.

[17]  Ibid., p. 98-105.

[18]  SAFATLE, Op. cit., p. 31.

[19]  SILVA et al, Op. cit. p. 105-117. Sobre a relação entre direito e economia e a impropriedade de se transpassar acriticamente a lógica econômica para o campo da decisão jurídica: LOPES, José Reinaldo de Lima. The traditional dialogue between law & economics. Revista Direito GV, São Paulo, Especial nº 1, p. 171-194, 2005.

Martin Magnus Petiz é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito pela Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail para contato: martin_petiz@usp.br

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