Ana Lucia Araujo
Fonte: The Intercept Brasil
Data original da publicação: 19/02/2019
Desde sexta-feira, dia 08/02, uma foto emblemática escancarou o racismo e a supremacia branca no Brasil. Nela, Donata Meirelles, então diretora da Vogue Brasil, uma mulher branca, aparece sentada numa cadeira utilizada pelas mães de santo no Candomblé cercada de figurantes negras vestidas com roupas tradicionais de baianas – saias longas rodadas, batas brancas, panos da costa, turbantes, múltiplos colares dourados e prateados, brincos e pulseiras. A imagem fatídica era clara: negros em posições subjugadas ao lado de uma branca em um cenário onde a cultura negra é apropriada com fins festivos – Donata celebrava seus 50 anos. Oitenta por cento da população de Salvador é negra, mas a indústria de turismo que vive da imagem de homens e mulheres negras é branca. “Sorria, você está na Bahia!” Donata se desculpou e pediu demissão da revista.
Nem uma semana depois de as imagens da festa evocando a escravidão gerarem uma onda de revolta nas mídias sociais, um jovem negro de 19 anos foi assassinado por um segurança no supermercado Extra no Rio de Janeiro. Pedro Henrique Gonzaga foi morto a sangue frio, depois de ter sido sufocado até a morte pelo segurança, diante de várias testemunhas, algumas das quais alertaram para a morte iminente do jovem.
Estrangulado como Eric Garner – que sucumbiu depois de um abraço mortal de um policial em julho de 2014 nos Estados Unidos e uma comoção nacional –, o brasileiro Pedro Gonzaga agora faz parte das estatísticas assustadoras que mostram que quase 75 % das vítimas de homicídios são negros, a maioria jovens. A revolta contra o racismo de Donata e o assassinato a sangue frio de Pedro são como chagas abertas num país que nunca indenizou nenhum ex-escravo e seus descendentes pelo período no cativeiro. Nenhuma sociedade escravista nas Américas pagou reparações aos antigos escravizados.
Mas o que pouco se sabe é que a luta das populações afrodescendentes contra o racismo e para obter reconhecimento nas mais diversas esferas, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, data desde o fim do período da escravidão. E os pedidos de reparações financeiras e materiais pela escravidão continuam em voga nos dias de hoje.
Indenização só a quem escravizou
Desde o século 18, escravos e libertos começaram a conceitualizar a ideia de reparações em correspondência, panfletos, discursos públicos, narrativas de escravos e petições judiciais, redigidos em inglês, francês, espanhol e português. O sistema escravista tinha base legal, mas escravos e ex-escravos tinham plena consciência de terem sido vítimas de uma injustiça. Eles sabiam que ao fornecer trabalho não remunerado aos seus proprietários estavam contribuindo para construir suas riquezas. Vários são os casos de pessoas escravizadas ilegalmente que pediram reparações pelo tempo em que viveram no cativeiro.
Entre 1804 e 1888, todas as sociedades nas Américas aboliram a escravidão. Mas o fim da escravidão foi um processo lento e gradual. Mesmo em regiões vistas como paraísos da liberdade, como o norte dos Estados Unidos e o México (onde a escravidão foi abolida mais cedo do que em muitas regiões do continente americano), o fim da escravidão foi um processo longo. Do norte ao sul das Américas, as elites escravistas temiam o fim do sistema servil. Os senhores enfatizavam que a escravidão e o comércio de escravos eram atividades legais e que os direitos de propriedade deveriam ser respeitados acima de todos os direitos.
Alguns abolicionistas até chegaram a chamar atenção para a necessidade de reparações aos ex-escravos e seus descendentes, por meio da redistribuição de terras, salários e educação. Luiz Gama, por exemplo, muitas vezes denunciou publicamente o tráfico ilegal de africanos depois da assinatura da lei de 1831. Na realidade, 786 mil africanos escravizados chegaram no Brasil entre 1831 e 1856. Em 1883, nas páginas do panfleto da Confederação Abolicionista Luiz Gama chegou a calcular o montante devido em salários aos escravizados: “Realmente são insaciáveis os parasitas do trabalho africano! Fazem, por ventura, ideia da soma, que devem em salário às gerações, que se sucederam no cativeiro durante três séculos?” Tomando em conta apenas o número de 1,5 milhão de escravizados que aqui residiam (na verdade, o Brasil importou mais de três vezes esse número de africanos), Gama calculou que mais de R$ 18 bilhões de reais lhes eram devidos.
Mas isso foi exceção. O que realmente prevaleceu nos debates públicos era a questão de como compensar financeiramente os proprietários de escravos pela perda da propriedade escrava. Em outras palavras, o fim gradual da escravidão nas Américas durante o longo século 19 foi planejado para proteger os interesses dos senhores de escravos e proprietários de terras, que em diferentes graus recebiam pelo menos algum tipo de compensação monetária.
Após abolir a escravidão em suas colônias em 1834, a Inglaterra indenizouos senhores de escravos. Ao abolir a escravidão em 1848, a França pagou 6 milhões de francos (em vinte prestações com juro anual de 5%) aos antigos proprietários de escravos. Até o Haiti, que aboliu a escravidão e se tornou independente em 1804, teve que pagar a enorme soma de 120 milhões de francos para ter sua independência reconhecida pela França.
Nos Estados Unidos, os senhores de escravos não receberam indenização, mas cabe lembrar que a abolição da escravidão se fez num contexto de uma guerra civil sangrenta que matou 2% da população do país. Ainda durante a abolição gradual da escravidão seja no norte dos Estados Unidos ou no Brasil, as leis do ventre livre previam algum tipo de indenização para os senhores de escravos. Além disso, os proprietários de escravos receberam indenizações quando a escravidão foi abolida na capital Washington DC em 1862.
Apesar disso, durante a era da abolição gradual nos Estados Unidos, um pequeno número de ex-escravos exigiu que o governo ou seus antigos senhores lhes fornecessem algum tipo de reparação financeira. Uma dessas libertas foi Belinda. Nascida na África Ocidental e trazida para Antigua no Caribe britânico, foi escrava do rico fazendeiro inglês Isaac Royall, que se mudou para a colônia britânica do Massachusetts em 1737.
Após sua morte, seu filho Isaac Royall Junior herdou todas as suas propriedades, inclusive Belinda. Mas quando a Revolução Americana eclodiu em 1775, o herdeiro (leal ao rei da Inglaterra) fugiu para a Inglaterra, deixando em seu testamento uma pensão por um período de três anos para Belinda. Em 1778, o estado do Massachussets confiscou as propriedades de Royall Junior, inclusive seus escravos, que foram então libertados. Logo após ser liberta, Belinda, já com 65 anos, foi viver em Boston e presume-se que tenha recebido a referida pensão. Mas quando o período de três anos terminou e a pensão foi interrompida, ela entrou na justiça pedindo ao estado uma pensão como forma de reparar o tempo em que trabalhou sem ser remunerada para a família Royall. Ela ganhou, mas tinha de entrar com um pedido a cada novo ano. A casa dos Royall, perto de Boston, foi hoje transformada em museu e dá destaque para a história de Belinda.
Nos Estados Unidos, o período que se seguiu à abolição da escravidão trouxe esperanças de redistribuição de terras para os libertos. Mas esses projetos também falharam. A chamada Reconstrução fracassou e, em vez de terra e cidadania plena, a população negra do país se viu privada de direitos e vítima do ódio racial crescente. Foi nesse contexto que, durante a década de 1890, milhares de libertos circularam petições para introduzir no congresso dos Estados Unidos projetos de lei lhes dando pensões pelo tempo em que foram escravizados. Os líderes desse movimento concebiam o pagamento de pensões como reparação financeira pelos muitos anos de trabalho não remunerado que haviam dado aos seus senhores. As atividades desses grupos geraram grandes debates e mobilizaram dezenas de milhares de ex-escravos, mas nunca foram aprovados. Além disso, as autoridades federais perseguiram os líderes do movimento como Isaiah Dickerson e Callie House, que passou um ano na prisão.
Nada parecido aconteceu na América Latina. Embora privados de recursos materiais, em países como o Brasil, provavelmente iludidos pelo canto da sereia da ideologia da democracia racial, os libertos privilegiaram a luta pela cidadania.
Vítimas do holocausto e prisioneiros da II Guerra conseguiram
Mas no período que se seguiu ao final da Segunda Guerra, esse contexto começou a mudar, especialmente depois que os sobreviventes judeus do Holocausto obtiveram reparações financeiras. Vários grupos que defendiam as reparações surgiram durante a Guerra Fria nos Estados Unidos, enfrentando o estigma de serem constantemente associados ao comunismo. Durante a década de 1960, o movimento ganhou novo sangue com a ascensão de grupos como o Comitê de Reparações para os Descendentes dos Escravos Americanos, liderado pela ativista negra Audley Moore, a República da Nova África e o Manifesto Negro, assinado pelo militante dos direitos civis, James Forman.
No período final da Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos pagou restituições financeiras aos nipo-americanos que foram ilegalmente colocados em campos de concentração durante a Segunda Guerra. As décadas de 1980 e 1990 renovaram os pedidos de reparações pela escravidão. Brasil, Colômbia e Equador promulgaram novas constituições reconhecendo o direito de propriedade da terra para suas comunidades negras. Nos Estados Unidos, novas organizações combinando ativismo e ações litigiosas solicitando reparações também emergiram.
Os ecos desse movimento também foram ouvidos na África, onde um grupo de intelectuais, artistas, políticos e ativistas divulgou um documento pedindo reparações para o comércio atlântico de escravos e o colonialismo. Em 2001, a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, reconheceu a escravidão e o comércio atlântico de escravos como crimes contra a humanidade. Mais do que nunca, pedidos de reparação adquiriram uma nova força.
Recentemente, em março de 2014, a Comunidade do Caribe (Caricom) aceitou um plano com foco em reparações pela escravidão e pelo genocídio indígena. O programa consiste em dez pontos que compreendem demandas materiais, financeiras e simbólicas dirigidas a vários países europeus como o Reino Unido, Espanha, França, Holanda, Dinamarca, Suécia e Portugal. Esses pedidos de reparações receberam grande atenção da mídia nos países europeus e caribenhos e também nos jornais dos Estados Unidos e do Brasil. Mas apesar desses movimentos e dos debates recorrentes, não houve avanço.
R$ 2 milhões a cada descendente
Esse contexto pode sugerir uma perspectiva pessimista, mas os debates sobre as reparações nas suas mais variadas modalidades continuam muito vivos. Todos os anos novos pedidos de reparação continuam a ser objeto de ações judiciais e permanecem presentes na sociedade por meio de manifestações populares, debates públicos, palestras e encontros internacionais.
No Brasil, a partir da década de 1990, organizações negras lideraram protestos e apresentaram projetos de lei no Congresso Nacional pedindo reparações financeiras ao governo federal brasileiro. Em 1993, estudantes e ativistas negros, membros do Grupo Consciência Negra da Universidade de São Paulo, lançaram o Movimento pelas Reparações (MPR). Em dezembro de 1994, o MPR submeteu uma ação declaratória à Justiça Federal de São Paulo, na qual solicitaram que o estado brasileiro pagasse reparações financeiras aos descendentes de escravos. No documento, pediram ao tribunal que reconhecesse que 70 milhões de afro-brasileiros tinham o direito de receber reparações financeiras do estado brasileiro por 350 anos de escravidão.
Em 2012, Claudete Alves, ativista negra, professora paulista e ex-vereadora da cidade de São Paulo, apresentou uma ação civil pública ao Ministério Público contra o estado solicitando indenização pelos danos causados “a todos os descendentes de africanos escravizados que vivem no Brasil e residem na cidade de São Paulo”. Segundo os advogados de Alves, cada descendente de escravos deve receber R$ 2 milhões. Em 2014, no mesmo ano em que o Caricom, a Comunidade do Caribe, lançou um plano de dez pontos pedindo reparações simbólicas e financeiros a vários países europeus, a Ordem* dos Advogados do Brasil, a OAB, anunciou a criação de uma Comissão Nacional da Verdade Sobre a Escravidão no Brasil cujo objetivo era examinar o período da escravidão no Brasil e estabelecer modalidades de reparação. Nenhuma dessas iniciativas, porém, tiveram um retorno prático.
Embora muitos grupos tenham privilegiado as reparações de ordem simbólica, o debate sobre as reparações financeiras e materiais, principalmente em relação à propriedade da terra tendem a crescer sobretudo no caso do Brasil, onde o novo governo do presidente eleito Jair Bolsonaro ameaça rever as demarcações de terras quilombolas. Neste momento, mais do que nunca, o estudo da história das reparações pode também nos ajudar lutar melhor contra o racismo, contra as desigualdades raciais e a supremacia branca que dominam as antigas sociedades escravistas, principalmente no Brasil e nos Estados Unidos.
* Esse texto é baseado no livro Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History (2017), ainda não traduzido para o português.
Ana Lucia Araujo é historiadora e professora titular na Howard University, Washington DC, EUA, e membro do Projeto A Rota do Escravo da Unesco.