O sucesso neoliberal e de seus economistas não foi fruto de erros político e éticos da classe política, em combinação com a ganância da banca e das corporações multinacionais. Ele só vingou por ser a única alternativa que poderia manter o sistema vivo, depois das crises de lucratividade da economia real na década de 1970.
Wilton Cardoso Moreira
Fonte: GGN
Data original da publicação: 25/08/2019
Este texto é um comentário ao artigo “Culpem os economistas pela bagunça” de Binyamin Appelbaum, publicado recentemente no GGN.
O artigo de Binyamin Appelbaum ilustra um erro clássico de julgamento, baseado no sucesso distributivo provisório dos anos dourados do capitalismo, que duraram de 1945 a 1975, quando os países do Primeiro Mundo conseguiram colocar 2/3 da população na classe média e proporcionar uma pobreza “digna” para o terço restante.
Para o autor, a culpa pelo fim deste sucesso foi um erro político dos governos, somado à ganância das corporações, principalmente da banca, que promoveram a ideia dos economistas (neoliberais principalmente) em favor do crescimento dos lucros a qualquer custo.
Mas havia, em meados da década de 70, realmente uma crise de lucratividade em todo mundo ocidental, cuja expressão foi uma estagflação prolongada. Ora, sem lucratividade, o capitalismo não é capitalismo. O que os economistas neoliberais sugeriram foi apenas uma maneira do sistema continuar lucrativo, ou seja, do capital continuar se reproduzindo: mais exploração do trabalho, menos impostos corporativos e sobre os ricos e mais financeirização, para permitir que o capital se reproduza fora fora dos limites da produção real, cujo lucro realmente estava minguando – o que acontece até hoje.
E funcionou! O neoliberalismo financista e globalizante salvou o capitalismo do colapso a que ele seria levado pela falta de lucratividade. Foi às custas da distribuição de renda e do empobrecimento da maior parte da população? Sim, mas quem disse que esse é o objetivo principal do capitalismo? As pessoas, neste sistema, são apenas meios para a reprodução do capital: não há nada mais coerente com a lógica capitalista do que um economista liberal, que não vacila nem mesmo em precificar uma vida humana.
O autor acredita que, como os mercados são criados e geridos por pessoas, no governo e na iniciativa privada, é possível fazer com que o capitalismo seja usado para beneficiar o povo, via distribuição de renda e políticas públicas. Para ela é possível, mediante decisões políticas, utilizar o enorme potencial do capitalismo para produzir riqueza material em favor do bem estar da maioria da população.
Esta é uma visão comum entre (neo)keynesianos, que ignora o fato (teorizado por Marx e demonstrado pela história) que o capital, uma vez posto em movimento, não pode ser controlado, freado ou domesticado, a não ser pontualmente, para atuar em favor da vida das pessoas. O capital é que acaba por se servir (instrumentalizar) da vida humana e da natureza para seu único fim: sua própria reprodução.
Mesmo as elites, que sem dúvida se beneficiam deste processo, são instrumentos do capital. Apenas se encontram no topo da cadeia predatória que o capitalismo instaura na sociedade como se fosse uma segunda natureza. Pobre do banqueiro, industrial ou CEO que comece a contrariar as exigências da acumulação e queira repartir os lucros com seus “colaboradores” ou com a comunidade, ou queira pagar realmente os seus impostos sem o recurso a paraísos fiscais. A “seleção natural” do mercado os esmagaria em instantes, dando lugar a outros profissionais mais “adaptados” ao meio ambiente hostil da concorrência e da acumulação capitalista.
O “milagre” da humanização do capital que ocorreu no pós-guerra só foi possível por circunstâncias impossíveis de se repetir:
1- O medo da expansão comunista, que forçou políticos e elite econômica a fazer concessões improváveis ao trabalho;
2- A enorme expansão do capital industrial das economias centrais, que possibilitou um crescimento exponencial do PIB dos países de Primeiro Mundo, sem a qual não seria possível financiar o estado do bem-estar social, fazendo frente à ameaça comunista.
E, por sua vez, este enorme crescimento do pós-guerra foi possível porque:
1-A s duas guerra mundiais proporcionaram uma inédita queima de capital nos países centrais, abrindo o terreno para um novo ciclo de expansão capitalista;
2- Havia um imenso mercado mundial no terceiro mundo para a exportação de produtos industriais ou instalação de multinacionais que remetiam lucros às suas matrizes;
3- E por conta do dinamismo excepcional da indústria armamentista, baseada no guerra fria com a URSS.
Destas três condições, apenas a última subsiste, pois a produção de armas continua forte como nunca. A partir da década de 1970 os lucros industriais começam a cair e, com ele, os de toda a chamada economia real. Isto devido à 3a revolução industrial, que introduz a informática e microeletrônica no chão da fábrica, substituindo trabalho humano por máquinas inteligentes.
Como Marx previra, uma hora este processo de automação iria levar o capitalismo ao colapso, vítima de seu próprio sucesso produtivo. A decadência começou em meados de 70 e tende a se aprofundar com a indústria 4.0, ainda mais poupadora de trabalho humano, e não só na indústria, mas também no setor terciário, que tem sido a válvula de escape empregatícia para os trabalhadores expulsos das fábricas.
Sem lucros crescentes, a economia real não podia mais financiar o relativo igualitarismo do estado do bem-estar social e, depois do fim do regime soviético, não havia mais a necessidade de se enfrentar a ameaça da ideologia socialista se espalhar entre o povo. Então, os economistas neoliberais intuíram acertadamente que, para o sistema continuar lucrando, era necessário aprofundar a globalização e a concorrência entre capitais privados mundiais, aumentar a exploração do trabalho e principalmente financeirizar a economia, já que a produção real produzia cada vez menos lucros.
E decidiram, também acertadamente (para a lógica do capital, é claro), que já era o momento de parar de financiar o estado do bem-estar social, cujas políticas públicas universalistas são uma desnecessária absorção improdutiva de capital. Somente a defesa, a justiça, a polícia, a fazenda, o BC, alguma infraestrutura e talvez um sistema educacional de qualidade deveriam ser públicos: a mínima estrutura estatal necessária ao funcionamento dos mercados. Os gastos sociais deveriam limitados ao mínimo possível, apenas para manter, junto com a repressão policial, a paz social e evitar a revolta da massa de perdedores que são os pobres.
Portanto, as decisões políticas da década de 1970 e 1980, que configuraram o neoliberalismo que ainda governa o mundo, não foram erradas, do ponto de vista do capital. Aliás, foram a única alternativa para manter o sistema funcionando ou, por outra, palavras, para o capital continuar seu processo de reprodução infinita. Os economistas neoliberais foram os vencedores neste processo porque se adaptaram melhor à “seleção natural” capitalista, que premia os grupos e pessoas que conseguem fazer o capital se reproduzir em mais quantidade e velocidade.
Binyamin Appelbaum, como quase todos as pessoas “de esquerda” ou progressistas, se ilude ao achar que basta uma decisão política das massas e das elites (um novo pacto social-democrata?) para o capitalismo voltar aos trilhos e servir ao bem estar das pessoas. Este nunca foi o trilho do sistema capitalista e os trinta anos gloriosos foram uma exceção histórica que dificilmente se repetirá. O trilho normal do capitalismo é o que ele percorreu, de seu nascimento no século XVIII até 1945, e da década de 1980 até agora. O seu caminho normal é a instrumentalização das pessoas, sociedades e natureza para seu único objetivo, a reprodução do capital.
O capital é uma criação do ser humano, mas, a partir do momento em que ele é posto em movimento, as pessoas se tornam apenas um instrumento de sua reprodução e pouco podem fazer para deter ou controlar sua lógica desumanizadora e excludente: mais uma vez, Marx teorizou sobre isto e a história tem provado que ele está certo. A única forma de deter o capitalismo é acabar com ele, fundando uma nova sociedade não mais baseada no valor, na mercadoria e no trabalho, categorias básicas do capital.