Os lockdowns diante da COVID-19 estimularam uma discussão renovada sobre quais empregos são realmente necessários – e sobre o quanto nossas sociedades permanecem centradas no trabalho. Com a chamada “Grande Renúncia”, isso tem assumido a forma de uma crescente recusa em aceitar trabalhar em empregos maçantes por salários de pobreza. No entanto, em muitas explicações “tecno-otimistas”, o poder dos trabalhadores de aceitar ou recusar um emprego estaria em declínio, em geral. Elas afirmam que a inteligência artificial e a automação estariam trazendo uma onda de redundância sem precedentes – e que, por sua vez, isso exigiria que encontremos outras maneiras de garantir aos cidadãos uma renda estável.
No entanto, o sociólogo do trabalho francês Juan Sebastian Carbonell insiste que a afirmação de que a nova tecnologia estaria substituindo a necessidade de uma força de trabalho humana se trata de uma visão míope – e, de fato, de um mito tão antigo quanto o próprio capitalismo. Em seu novo livro Le futur du travail (O futuro do trabalho), ele argumenta que o trabalho não está desaparecendo, mas sendo transformado, com as consequências materiais de novas tecnologias, terceirização e subcontratação sendo formadas tanto pelos planos administrativos quanto pela resistência dos trabalhadores.
O colaborador da Jacobin David Broder conversou com Carbonell sobre o mito da “grande substituição tecnológica”, a resiliência da força de trabalho em nível global e as bases da identidade de classe nas economias pós-industriais.
Seu trabalho resiste à ideia de que estaríamos vendo uma “grande substituição tecnológica” do trabalho humano. Por quê? E o que os caixas de autoatendimento têm a nos dizer sobre isso?
Primeiro, porque isso é falso: a substituição tecnológica não está acontecendo. Tomo o exemplo dos caixas de autoatendimento porque eles representaram uma controvérsia na França no início dos anos 2000. A CFDT (Confédération française démocratique du travail, Confederação Francesa Democrática do Trabalho) fez campanha contra eles, dizendo que iriam substituir os trabalhadores dos caixas dos supermercados. Os sindicatos às vezes são vítimas dessa ilusão: a mitologia capitalista de uma “grande substituição” da mão de obra por máquinas. Ainda assim, vinte anos após a sua introdução, as caixas de autoatendimento estão presentes em apenas 57% dos supermercados na França e, onde estão presentes, representam um acréscimo, e não substitutos de caixas convencionais com operadores humanos. Eles também não são tão automáticos assim: ainda há caixas humanos para supervisionar e ajudar os clientes, embora suas tarefas tenham mudado.
Portanto, o livro tenta questionar esse senso comum. Para mim, o problema com a transformação do trabalho hoje é menos que as novas tecnologias poderiam eventualmente substituir os trabalhadores, mas que elas são usadas para degradar as condições de trabalho, manter os salários estagnados e estabelecer uma grande flexibilização do tempo de trabalho.
Você explica que as “tecnologias de economia de mão de obra” não eliminam a necessidade de trabalhadores em geral, mas transformam a maneira como o trabalho é organizado.
Quando você olha para os efeitos concretos das novas tecnologias no trabalho, vê imediatamente consequências que não podem ser reduzidas apenas à “substituição”. Há uma substituição de tarefas específicas, o que não elimina totalmente os empregos.
O objetivo da administração também pode ser desqualificar a força de trabalho, para que um trabalhador seja mais facilmente substituído por outro. Isso está ligado à tese de Harry Braverman sobre a degradação do trabalho no século XX, que continua no século XXI. Essa tese afirma que quando a administração introduz uma nova tecnologia, ela o faz para aumentar seu controle sobre o processo de trabalho. Vi muito disso na indústria automobilística, quando introduziram a chamada “fabricação digital” nas unidades das montadoras: como disse um técnico, o objetivo é que qualquer pessoa seja capaz de fazer qualquer coisa no local de trabalho. Outro resultado importante – ainda que não necessariamente deliberado – é que você também precisa de uma requalificação dos trabalhadores: algumas máquinas novas precisarão de programadores e trabalhadores de manutenção, e isso também significa uma certa transformação das habilidades dentro da força de trabalho.
Por exemplo, no contexto da chamada Quarta Revolução Industrial e da fabricação digital, também estamos vendo o aparecimento de cientistas de dados dentro das fábricas. Ainda é difícil saber quantos empregos isso representa, mas às vezes é preciso contratar diferentes tipos de trabalhadores para fazer diferentes tipos de coisas no processo de trabalho em transformação.
Essa desqualificação traz também uma intensificação do processo de trabalho. Isso significa simplesmente mais trabalho para menos pessoas com as mesmas habilidades, durante o mesmo tempo de trabalho – algo muito comum na dinâmica da transformação tecnológica.
Outra consequência importante – geralmente ignorada por pesquisadores, jornalistas ou pelos chamados especialistas em novas tecnologias – é o aumento do controle e da vigilância no local de trabalho. Fica mais fácil para a gerência, por exemplo, acompanhar os trabalhadores com GPS e controlar seus movimentos, como no caso de mensageiros e entregadores.
Uso o exemplo do jornal Daily Telegraph, onde a gerência introduziu sensores de movimento para saber se os trabalhadores realmente estavam na frente de seus computadores. Você vê isso também na indústria, novamente com a introdução da fabricação digital, por exemplo, com o registro do momento em que a máquina pára de funcionar, para que a administração saiba se os trabalhadores fizeram uma pausa mais longa.
De maneira mais geral, o uso de dados na fabricação tem como consequência tornar o processo de trabalho mais transparente aos olhos da gerência. Assim, ela sabe quando e como as máquinas estão sendo usadas, com qual intensidade, quando elas vão quebrar, e assim por diante. O software MES (manufacturing execution system ou sistema de execução de fabricação) permite centralizar todas essas informações e ter uma visão mais clara do processo de trabalho. Os apologistas das novas tecnologias apresentam isso como sendo um progresso, mas não falam sobre seus efeitos negativos sobre os trabalhadores.
Você nos diz que alguns defensores da tese da “grande substituição tecnológica” admitem que as ondas anteriores de inovação tecnológica reorganizaram a força de trabalho ao invés de substituí-la, mas insistem que com a Quarta Revolução Industrial e a Inteligência Artificial, isso seria diferente. Para dar um exemplo concreto, vou economizar tempo na redação desta entrevista utilizando um serviço de transcrição baseado em IA, mas ainda levarei horas editando os resultados. Então, qual é a diferença na prática?
Especialistas e “futurólogos” estão conscientes de que as ondas passadas de automação não trouxeram o fim do trabalho. Então, eles tentam ver o que há de específico na nova onda de automação atual, e dizem que ela vai trazer uma ruptura mais profunda e definitiva ao capitalismo, finalmente dando um fim ao trabalho.
O título do meu livro, Le futur du travail, tem um duplo sentido em francês: os debates sobre o futuro do trabalho referem-se ao futuro, mas para mim eles evocam o passado. Eu enfatizo as continuidades entre as ondas passadas de automação e a atual, dizendo que a robotização e o software nas fábricas e escritórios tiveram mais ou menos as mesmas consequências que a introdução, por exemplo, das tecnologias digitais na fábrica ou da IA atualmente.
Embora a IA seja apresentada como a tecnologia que vai acabar tanto com o trabalho de colarinho branco quanto com o trabalho operário, ela ainda é muito limitada em seus usos e potenciais. O programador ainda tem um papel central não apenas na criação, mas também na operação cotidiana da IA: eles fornecem sua arquitetura, seu método de aprendizado, os dados que a alimentam e assim por diante. Portanto, estamos muito longe de uma tecnologia que funcione de maneira totalmente autônoma. Alguns pesquisadores falam sobre a IA como sendo uma tecnologia de uso geral, o que significa que ela seria uma tecnologia cujos usos estão se tornando mais amplamente difundidos, mas cujas consequências ainda precisam ser determinadas. Não obstante, elas serão tão gerais que provavelmente criarão tantos empregos quanto contribuirão para destruir. Mais especificamente, a inteligência artificial não é independente dos trabalhadores, programadores e desenvolvedores, que trabalham nesse software.
Então, por trás da aparente novidade dessas novas tecnologias que se apresentam como uma grande ruptura com o capitalismo, na verdade, há a mesma continuidade, as mesmas lógicas de substituição, desqualificação e intensificação do controle. Por exemplo, os softwares de tradução substituirão alguns elementos do trabalho dos tradutores, mas também poderão tornar algumas especialidades mais valiosas.
Eu gostaria de me voltar para a ideia de “sociedade do trabalho”. Como você nos diz, os níveis gerais de emprego não caíram, especialmente dado que a era do “pleno emprego” incluía uma população não ativa tão alta, por exemplo, no trabalho doméstico. Não obstante, afirma-se amplamente que o mundo do trabalho estaria agora tão fragmentado que seria impossível falar da condição comum de “ser trabalhador”, muitas vezes caracterizada em termos de uma era fordista que já passou. Seu trabalho desafia essa visão. Por quê?
Tento historicizar a discussão sobre a esmagadora precariedade da força de trabalho de hoje, dizendo que isso não é necessariamente algo tão novo, mas em parte um produto da feminização da força de trabalho. Se foi registado um aumento do desemprego na França (de 1% em 1968 para 10% em 2015), é também porque se verifica uma diminuição da população “inativa”, sobretudo mulheres (que eram trabalhadoras domésticas), que caiu de 27% em 1968 para 11,5% em 2015. Se havia pleno emprego durante os “Trente Glorieuses” – as “três décadas gloriosas” após 1945 – foi também porque a taxa de não-empregados (ou seja, aquelas pessoas que não trabalhavam nem procuravam trabalho remunerado) era alta.
Em certo sentido, a precariedade tem sido funcional para o capitalismo desde seu início: o que havia de novo na era do pós-guerra era a ideia de que os capitalistas precisariam (e buscariam) ter uma força de trabalho mais estável. Eu tento desenvolver essa ideia no livro. Mesmo formas de trabalho como o Uber e o emprego autônomo em plataformas digitais não são coisas novas. O emprego autônomo mediado por outras pessoas sempre existiu no capitalismo: dou o exemplo dos mineiros de carvão na França da virada do século XX, que trabalhavam em um sistema comparável à Uberização, onde alguns eram contratados não pelos patrões ou diretamente pela mina, mas por intermediários, chamados “butties”, que os pagavam por carroça carregada – algo que Émile Zola descreve em Germinal. A diferença é que hoje esse intermediário é uma plataforma digital e impessoal.
Então, estou tentando dizer que essa experiência comum do trabalho nunca existiu de verdade. No debate na França, há uma frase que eu gosto: “a classe trabalhadora já não é mais aquilo que ela nunca foi”. Ela nunca foi essa pessoa contratada em um emprego estável, trabalhando das 9 às 5, como dizia a Dolly Parton.
De maneira mais geral, tentei dizer que o trabalho continua central, de duas maneiras, apesar das transformações. A primeira é que ele continua sendo a principal forma pela qual a sociedade produz e reproduz a si mesma; e ele permanece central, também, de uma forma social, no sentido de que o trabalho é também uma ordem social encarnada na forma do trabalho assalariado e também nas representações sociais, que conferem ao trabalho sua centralidade na vida dos indivíduos. Hoje, apesar das alegações de precariedade generalizada, o emprego permanente é a norma na França: 75,2% de toda a força de trabalho está empregada com contrato permanente.
O que muda com a COVID é que nessas representações, onde o trabalho permanece central, o emprego não é mais idealizado. Com a “Grande Renúncia”, vemos que hoje as pessoas estão mais desiludidas com as condições de trabalho, com os salários e com a flexibilização do trabalho. Contudo, olhando para o número de demissões, pelo menos na França, elas aumentaram apenas porque estão alcançando as demissões que de outra forma teriam acontecido durante os lockdowns, e porque quando há crescimento, quando a acumulação recomeça, há maior mobilidade interna de empregos. Por exemplo, na França, no final de 2021, houve mais contratações do que demissões, enquanto as contratações atuais com contratos permanentes excedem os níveis pré-COVID do final de 2019.
Você diz que “a desindustrialização está em toda parte, exceto nas estatísticas”, especialmente fora da Europa Ocidental. Tomando como exemplo uma grande potência industrial europeia como a Itália, há uma experiência já de algumas gerações – delimitada aproximadamente pela Segunda Guerra Mundial e pela década de 1980, que viu o ressurgimento, ascensão e queda do movimento trabalhista – seguida de desindustrialização e terceirização em larga escala, mesmo que algumas indústrias importantes tenham permanecido. Claramente, esses fatores combinados fornecem uma base material para a narrativa da “morte da classe trabalhadora”. Mas, olhando para além do Norte Global, quão real é essa narrativa e até que ponto se trata de um discurso dominante?
A “morte da classe trabalhadora” é uma questão interessante porque um dos principais motivos que instigam o discurso sobre o fim do trabalho é a desindustrialização e o fim dos operários (ou trabalhadores de “colarinho azul”). O que isso deixa de levar em consideração é a globalização das cadeias de valor, a regionalização das indústrias e o fato de que – para tomar uma indústria proeminente – há hoje mais trabalhadores automotivos em todo o mundo do que há trinta anos: muito menos deles na Itália, França ou no Reino Unido, mas muito mais na China, Índia e América Latina.
O emprego no setor automobilístico teve um aumento de 35% em nível mundial entre 2007 e 2017. Veja a China, onde o emprego no setor aumentou 68%, chegando a cerca de 5 milhões de trabalhadores em 2017, ou o México, onde o emprego dobrou durante o mesmo período. Ao mesmo tempo, o emprego na indústria automobilística na França caiu de 280.000 para 190.000 no mesmo período. Isso sem levar em conta o surgimento de uma cadeia de valor de baterias, cujos efeitos sobre o emprego industrial ainda precisam ser determinados.
Portanto, o discurso sobre a “morte da classe trabalhadora” é uma narrativa do Norte Global, cega às transformações econômicas do capitalismo mundial. Utilizo o quadro referencial teórico de Beverly J. Silver, que diz que o capital enfrenta duas forças opostas. A primeira é a crise de lucratividade: o capital busca novos países onde a força de trabalho seja mais barata e novas indústrias onde possa investir, para contrariar a tendência de queda da taxa de lucro. A segunda força é a organização da classe trabalhadora. É por isso que o capital sempre busca classes trabalhadoras “disciplinadas” e “pacíficas” nos países do Sul Global. No entanto, ele também cria as mesmas contradições nesses outros países. Assim, ao mesmo tempo em que investe na criação de novas indústrias e novas classes trabalhadoras em outros países, também cria novos conflitos e novas demandas trabalhistas.
Nesse sentido, lado a lado com a desindustrialização dos países do Norte, há uma industrialização em países do Sul e do Leste. A Eslováquia tem mais produção de veículos por pessoa do que qualquer outro país da Europa. Novamente, no noroeste da Europa, há também uma tendência à criação de novos centros de trabalhadores industriais; no livro dou o exemplo da área de logística, que é um dos setores de trabalho industrial que mais crescem nos países ricos. Há uma pequena explosão no número de trabalhadores neste setor, onde os empregos são geralmente manuais, de baixíssima qualificação e bem mal pagos.
Na França, há agora 800.000 trabalhadores braçais em centros logísticos nas periferias das grandes cidades. Pode-se pensar também no UPS Worldport em Louisville, Kentucky, nos EUA, com 20.000 funcionários. Isso reflete novamente a ideia de que onde o capital investe, surgem conflitos trabalhistas. Vimos isso na França e vimos isso no norte da Itália, onde houve uma onda de greves de trabalhadores imigrantes em centros logísticos. Trata-se de uma consequência direta desse desenvolvimento da logística como um setor industrial, como foi com a indústria automobilística há alguns anos.
Alessandro Delfanti disse que a Amazon é a nova Fiat. Não tenho certeza se concordo inteiramente com isso, porque a Fiat, agora Stellantis, ainda existe. No entanto, a configuração da força de trabalho é um pouco semelhante. Significa que há trabalhadores jovens, não qualificados, migrantes, mal pagos e altamente concentrados nesses novos núcleos logísticos – e em certo sentido esse é um coquetel explosivo para a organização da classe trabalhadora, e pode vir a ser uma possível fonte de renovação também para o movimento operário atual.
Quando pensamos na Fiat em Mirafiori ou na Renault em Boulogne-Billancourt – históricas “fortalezas vermelhas” do trabalho organizado – seu significado não era apenas o número de trabalhadores que empregavam ou mesmo as cadeias de suprimentos vinculadas a elas, mas também uma certa importância simbólica como “campeões nacionais” e centros de modernidade industrial que os trabalhadores lutavam para controlar. Hoje, existem setores econômicos maiores que empregam mais pessoas (por exemplo, o turismo na Itália), mas eles não parecem ter o mesmo papel agregador, como um possível foco de identidade de classe ou de visão sobre onde está o poder na sociedade.
Sim, entendo, e há autonomistas que dizem que “o poder é a logística, vamos bloquear tudo!” e, portanto, o setor de logística possuiria uma importância estratégica na organização dos trabalhadores e na derrubada do capitalismo, se ao menos construíssemos sindicatos mais fortes e não burocráticos por ali, e etc. Acho que isso é tanto verdadeiro quanto falso. A logística possui a particularidade de não ser tão fácil de se mandar a sua operação para o exterior, simplesmente pelo seu funcionamento. Ao mesmo tempo, há uma verdadeira desindustrialização da Europa Ocidental e dos países ricos em geral.
Mas quando você relembra a história do movimento dos trabalhadores, pode ver que alguns setores que estiveram na vanguarda não eram necessariamente mais concentrados ou estratégicos. Erik Olin Wright faz a distinção entre o poder associativo – o poder que vem da organização coletiva dos trabalhadores – e o poder estrutural, que vem da localização dos trabalhadores na economia capitalista. O papel de liderança nem sempre foi desempenhado por aqueles capazes de impedir o funcionamento de toda a economia.
Tomo o exemplo da França de meados do século XIX, onde os sapateiros eram os trabalhadores mais subversivos: eles tinham um forte poder associativo e eram extremamente organizados. Estima-se que 4% das pessoas presas por resistir ao golpe de Estado de Luís-Napoleão Bonaparte em 1851 eram sapateiros. Eles também criaram um dos primeiros sindicatos em Paris, em 1866. Além disso, muitos dos eleitos na Comuna de Paris também eram sapateiros, incluindo Auguste Serraillier, que estava informando Karl Marx sobre os acontecimentos em Paris.
Isso me leva ao fato de que, por exemplo, trabalhadores das plataformas digitais não têm necessariamente o mesmo poder estrutural que, digamos, os trabalhadores de logística, mas há dinâmicas semelhantes de investimento de capital, trabalho e de concentração. Eles também têm estado na vanguarda de muitas lutas na França, na Itália, na Alemanha e etc, bem como na renovação de parte do movimento dos trabalhadores na Europa Ocidental. É por isso que digo que nesses novos setores você encontra não só as mesmas lógicas do capitalismo na organização do trabalho, mas também as mesmas lógicas de conflito.
Em seu livro, você relativiza a verdadeira extensão da uberização, mas também apresenta a “economia de plataforma” mais como uma fantasia pró-mercado do que como um modelo econômico viável. Muitas vezes, vemos políticos deslumbrados com a ideia de que as plataformas digitais de alguma maneira não seriam tão “reais” e que não deveriam ser limitadas pelas regulações “antiquadas” e, nesse sentido, elas representam um Cavalo de Tróia para minar as condições de trabalho. Mas você também aponta para alguns limites materiais à expansão desse modelo.
Sim, a primeira coisa é compreender, em termos relativos, a importância numérica do trabalho para as plataformas digitais. As estimativas variam muito: na França, entre 1% e 6% da população. Existe um status específico chamado de “microemprego” – nem todos os autônomos, e não incluindo profissionais que possuem suas próprias firmas, como médicos e advogados, mas pessoas que trabalham, entre outras coisas, para plataformas digitais – e isso representa apenas 2,8% da força de trabalho total. Então, eu queria primeiramente apontar para a realidade desses números.
Depois, há os limites materiais. O primeiro é o problema que os capitalistas têm em estabelecer uma força de trabalho na qual possam confiar. Com esse tipo de organização do trabalho em plataformas digitais, às vezes as condições de trabalho são tão ruins que os trabalhadores não serão leais à plataforma – pois ela também não é leal aos trabalhadores. Então, você tem muita rotatividade, às vezes criando um problema em termos da continuidade do serviço.
O outro problema é o que Marx chama de consumo antieconômico da força de trabalho, do ponto de vista do capital: como as condições de trabalho são tão ruins, os trabalhadores ficam extremamente cansados e a rotatividade é muito alta. Por exemplo, alguns motoristas do Uber estão rodando até sessenta horas por semana. Isso cria condições de esgotamento da força de trabalho, criando novamente esses problemas de continuidade do serviço.
O último problema é a viabilidade desse modelo econômico. Pegue o exemplo do Uber: não é economicamente viável, exceto em algumas cidades muito grandes como Londres, Paris e Nova York e, em geral, perde muito dinheiro. Este também é o caso da Deliveroo.
Isso significa que algumas plataformas digitais na realidade dependem fortemente de subsídios públicos. Na França, existe uma plataforma para serviços domésticos como faxineiros, cabeleireiros e treinadores esportivos, chamada Wecasa. O Estado subsidia os clientes por certos serviços, como faxina de casa ou cuidado de crianças, para tornar a plataforma economicamente viável – caso contrário, a plataforma não poderia pagar aos trabalhadores uma renda suficiente. Assim, eles também podem ser atraídos para ela, em concorrência com outras plataformas de serviços domésticos existentes, porque ela é mantida artificialmente à tona pelo Estado.
Parece, no entanto, que ainda que alguns desses trabalhadores possam vir a resistir a essas condições por meio da exigência do seu reconhecimento como funcionários – por exemplo, no Uber ou Deliveroo – a sindicalização seria um desafio mais difícil quando se trata, digamos, do Fiverr, onde o as tarefas do trabalho são tão divididas a ponto de destruir a identidade profissional.
Entendo o que você quer dizer, embora no livro eu fale sobre o exemplo dos microtrabalhadores para a Amazon Mechanical Turk (MTurk). Essa é a força de trabalho mais fragmentada que você pode imaginar: pessoas trabalhando por alguns minutos de cada vez para uma plataforma digital, fazendo “clique, clique”, de forma totalmente anônima pela internet. Mas, apesar dessa extrema fragmentação, alguns conseguiram se organizar não exatamente em sindicatos, mas de maneiras que lembram as “sociedades fraternas” que existiam na Inglaterra do século XIX. Isso foi feito também por meio das ferramentas digitais que o capitalismo nos forneceu, sendo voltadas contra seus senhores, de certa maneira – usando, por exemplo, os fóruns que a Amazon colocou online. Eles começaram a discutir entre si, dizendo que “precisamos fazer isso ou aquilo”.
É engraçado, porque lembra muito a forma como os trabalhadores pensavam no início do século XIX, dizendo, por exemplo: “deveríamos escrever cartas para Jeff Bezos dizendo que esta é a nossa situação, você precisa mudá-la. Poderíamos receber mais? Você poderia tornar mais transparente a forma como os salários são determinados?” e assim por diante. Então, eles criaram essa associação em torno de suas demandas. Aí a Amazon fechou o fórum, então eles decidiram se organizar fora da Amazon e criar sua própria cooperativa, que tem uma forma mais transparente de funcionamento, o que era uma das principais críticas ao MTurk.
Como você referiu aí, um tema do livro é sobre como a tecnologia não produz simplesmente resultados negativos – há uma luta sobre os seus efeitos, na qual a própria tecnologia é uma ferramenta. Mas quais bons exemplos podemos apontar onde sindicatos ou organizações de trabalhadores têm sido proativos em delinear como os avanços tecnológicos podem ser usados de maneira socialmente útil?
Eu teria dificuldade para pensar em qualquer exemplo de organização de trabalhadores que tenha apresentado uma ideia original em relação à tecnologia, exceto aqueles casos que mencionei sobre os sindicatos serem céticos em relação a essas novas tecnologias. De fato, os trabalhadores geralmente estão certos em serem céticos em relação a elas, porque quando são implementadas, elas têm as consequências negativas que descrevi.
Trinta anos antes do CFDT fazer essa campanha contra os caixas de autoatendimento, eles fizeram uma pesquisa com sociólogos e publicaram um livro, muito importante na época, chamado Les dégâts du progrès (O dano trazido pelo progresso). Foi uma reflexão muito interessante sobre o uso da tecnologia no ambiente de trabalho, basicamente dizendo que, claro, as tecnologias são ruins para os trabalhadores quando elas estão nas mãos dos patrões, mas poderiam ser algo diferente.
Essa é a ideia que tento defender no livro. As tecnologias não são emancipatórias em si, pois quando estão nas mãos dos patrões, elas tomam parte na subordinação dos trabalhadores; no entanto, se as tecnologias estiverem acompanhadas de um projeto político emancipatório, elas podem ter o efeito exatamente inverso. É por isso que questiono por que os sindicatos não exigem investimento público na melhoria das condições de trabalho por meio de novas tecnologias no local de trabalho. Quando conversei com os trabalhadores das fábricas de automóveis onde fiz minhas pesquisas, eles disseram que é claro que eles não são fundamentalmente contra as novas tecnologias se elas os libertarem desta ou daquela tarefa física.
Mas o problema é que, historicamente, a esquerda e o movimento trabalhista têm exigido que a automação signifique a redução da jornada de trabalho. Essa demanda não é mais o suficiente por si só: a redução da jornada de trabalho tem sido sistematicamente acompanhada pela flexibilização do tempo de trabalho. Na França, a semana de trabalho de 35 horas foi vista positivamente pelos sindicatos, mas a literatura acadêmica mostra que os patrões a utilizaram para flexibilizar os empregos e intensificar a carga de trabalho, já que o tempo de trabalho por semana era calculado como uma média ao longo de um ano, o que significava que às vezes os trabalhadores trabalhavam seis ou sete dias por semana e em outros momentos ficavam de licença, criando uma situação impossível para suas famílias. As pessoas que exigem uma semana de trabalho de 32 horas ainda não fizeram um balanço adequado do que aconteceu com a semana de 35 horas.
Uma solução proposta para os efeitos da automação é a Renda Básica Universal (RBU, ou UBI na sigla em inglês). Você rejeita a alegação – o suposto desaparecimento do trabalho – que muitas vezes serve de justificativa para essa demanda. Porém, eu gostaria de aprofundar na razão por que você acha que a esquerda deveria rejeitar essa demanda. Seu livro cita Daniel Zamora, que argumenta que a RBU se encaixaria na lógica da redução da pobreza e não no tipo de igualdade e controle democrático exercido pelos trabalhadores organizados. Mas por que uma renda mínima não constituiria pelo menos uma base sobre a qual se poderia construir outras demandas?
O problema com a RBU é que ela se baseia em uma premissa que normalmente é falsa. Geralmente, os defensores da RBU o fazem porque acreditam que há um precariado substituindo o proletariado, ou porque pensam que a automação acabará levando a um futuro sem trabalho e que, portanto, precisamos de uma solução para todas essas pessoas que acabarão desempregadas.
Mas, para mim, os problemas com a RBU são mais políticos. A principal razão pela qual eu me baseio muito em Zamora é que essa demanda estreita os horizontes da esquerda e do movimento operário. Se antes ela costumava exigir a abolição do trabalho assalariado, a abolição do Estado, uma sociedade sem classes, a socialização dos meios de produção, a RBU não passa de uma medida redistributiva que limita a esquerda no interior de um cálculo orçamentário.
Outro problema é que ela substitui a força coletiva dos trabalhadores por uma relação pessoal e individualizada – mas também anônima – com o Estado. É por isso que para mim a RBU não se trata apenas de um problema, mas também pode ser perigosa para a esquerda, como solução para a chamada crise do trabalho atual.
Muitas de suas linhas de argumentação parecem situar seu trabalho como uma crítica ao autonomismo, mas esses pontos dificilmente são exclusivos a esse meio. Por exemplo, a ideia da morte da classe trabalhadora também informa um certo populismo de esquerda que busca reagrupar os precários e atomizados sob a bandeira do “povo”. Por que você acha que essas ideias são tão comuns?
Sim, a esquerda autonomista compartilha muitos equívocos sobre o trabalho com um certo “senso comum” sobre a substituição de trabalhadores por máquinas ou sobre o surgimento de um “precariado”. É também por isso que incluí uma discussão do famoso “Fragmento das máquinas” de Marx nos Grundrisse e sobre o poder estratégico dos trabalhadores no setor de logística, no qual os autonomistas muitas vezes se concentram.
No meu livro eu queria dar algumas ferramentas à esquerda, especialmente na Europa Ocidental, para pensar sobre as realidades dos trabalhadores hoje e o potencial subversivo que eles ainda possuem. Alguns camaradas na França disseram que meu livro é sobre a classe trabalhadora, mas não é: eu tento defender a ideia de E.P. Thompson de que a classe trabalhadora é na verdade o resultado da luta de classes e não o contrário. Para mim, a classe é uma questão política, simbólica e cultural – ela nunca existe “em si mesma”. É por isso que é necessário partir do trabalho como é hoje, desvinculando-nos de todos os equívocos e confusões sobre ele – alguns deles às vezes perpetuados pela esquerda – e, ao invés, pensar sobre classes e políticas de classe em bases científicas.
Talvez o capítulo que faltou neste livro seja sobre as lutas no setor de reprodução social, outro setor em que o trabalho está passando por grandes desenvolvimentos. O capital está contratando mulheres precárias em massa para empregos no trabalho doméstico tornado em mercadoria. Este é um setor que, para mim, também pode estar na vanguarda da luta de classes e do movimento dos trabalhadores – só que outras pessoas falam sobre isso melhor do que eu teria feito.
Fonte: Jacobin Brasil
Texto: David Broder
Tradução: Everton Lourenço
Data original da publicação: 16/06/2022
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