Em uma sociedade profundamente estamental como a nossa, prevalecem as hierarquias baseadas em status.
Vítor Queiroz de Medeiros
Fonte: A terra é redonda
Data original da publicação: 23/04/2021
“Empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”. É o Brasil do “você sabe com quem está falando?”, “engenheiro, melhor que você”, do elevador de serviço, do auxílio de R$ 250 reais, do uso político da Polícia Federal para perseguir adversários políticos.
Em uma sociedade profundamente estamental como a nossa, prevalecem as hierarquias baseadas em status. À posse de dinheiro soma-se o poder político e se combinam marcadores sociais de diferença relacionados à cor da pele, ao sobrenome familiar, ao bairro onde se mora e ao consumo de bens especiais. Mais que viga mestra da reprodução de nossas desigualdades, essa ordem de status também deu base para nosso autoritarismo, afinal, as desigualdades desabilitam nosso potencial democrático quando revestem os endinheirados de prestígio e humilham os pobres, ora subjugados pelo fantasma da fome.
Mesmo num país desses, multiplicam-se às dezenas críticos moderados do bolsonarismo. Em geral, subscrevem as decisões de Paulo Guedes, mas criticam o autoritarismo do presidente quase como “falta de educação”, como se toda a tragédia fosse apenas um problema de etiqueta. Só falta dizer: “que pena que ele é fascista, isso atrapalha tanto a agenda….”[i] (Que agenda?!). Negam a relação evidentemente estabelecida entre o liberalismo e o autoritarismo de viés fascista[ii]. Outros distinguem “dois liberalismos”[iii], forçando um matiz nada representativo no espectro ideológico brasileiro.
Mesmo esse tal “liberalismo democrático”, dotado de maneiras mais sutis e refinadas, não dá conta de responder ao desafio brasileiro que é superar suas dimensões estamentais. Isso deve ser gritado aos quatro ventos. Apesar das boas intenções, seus agentes não abrem mão de velhos dogmas, inadequados na periferia do capitalismo, tampouco conseguem incorporar as demandas populares das classes subalternas. O governo Bolsonaro é a expressão mais acabada do elitismo e do ranço escravista desse país.
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O liberalismo original dos contratualistas ingleses foi forjado na crítica ao absolutismo. Porém, à medida que as liberdades primárias se sedimentaram às democracias modernas, o liberalismo político se aproximou do conservadorismo e se restringiu, no mais das vezes, à defesa do livre mercado. Até a promoção e garantia de direitos de minorias étnicas e sexuais ficou por conta da velha esquerda, privando as hostes liberais de qualquer ímpeto mudancista e selando de vez seu papel histórico conformista.
Em contextos republicanos, tanto o conservadorismo quanto o liberalismo tornaram-se velhas roupas coloridas, já que o conflito distributivo, e não a tirania, passou a ocupar o centro das preocupações coletivas. Claro que no Brasil atual a luta contra a tirania está ao lado da luta contra a desigualdade, mas isso não torna o liberalismo mais atual e moderno; apenas atesta o atraso em que nos metemos. Na verdade, muita gente pratica aqui o liberalismo que o tirano gosta.
O bolsonarismo é um plexo de reacionarismo cultural, pretensões ditatoriais e ultraneoliberalismo. Combatê-lo em apenas uma de suas dimensões é ignorar a interrelação entre elas – atitude ineficaz e ingênua. Basicamente ocorre que os liberais brasileiros querem esclarecer o déspota ao invés de depô-lo. Lamentável? Mas nem tão surpreendente. O liberalismo conivente tem ficha corrida.
Roberto Schwarz nos deu o esquadro da crítica no clássico “Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos Inícios do Romance Brasileiro” (1977), especialmente no ensaio “As ideias fora do lugar”, escrito anos antes, em 1972. Ali Schwarz olha para o Brasil Império e o alvorecer da vida republicana para pôr em questão nossos dilemas emancipatórios – um olhar que busca também interpretar o Brasil no calor do fracasso de sua civilização, posto que o ensaio data de poucos anos depois do golpe militar de 1964.
O autor discute a relação entre as ideias, o liberalismo moderno europeu, e seu lugar, um Brasil cuja vida social era estruturada pelo latifúndio monocultor movido a trabalho escravo. Embora a ruptura do estatuto colonial date de 1822, a estrutura produtiva funcionava com as mesmas engrenagens dos três séculos anteriores. Um mundo triangulado entre o senhor latifundiário, os negros escravizados e os brancos, mestiços e pretos forros e pobres. Ao primeiro correspondia o poder; aos segundos, o opróbrio da exploração; aos terceiros, o favor. É nesse arranjo que se tentava colar o liberalismo.
Schwarz põe em conta o movimento do moderno (o ideário liberal) sediando-se no arcaico (a vida social estruturada pelo arbítrio e pelo favor). Flagrou assim o descompasso entre a ideologia liberal gestada nas sociedades filhas de revoluções burguesas do capitalismo central e o “impolítico e abominável” Brasil cujo ranço autoritário-estamental era avesso a quaisquer laivos de igualdade. Aí é que inaugura-se uma nova “comédia ideológica”, cuja primeira piada de mau gosto foi o copia-e-cola da Declaração Universal dos Direitos do Homem na Constituição de 1824. A carta mantinha intocada a escravidão. Como ideias de liberdade e igualdade jurídica podem conviver com relações de produção escravistas? Que raio de liberalismo era esse? Que espécie essa a de liberais escravocratas?
Mesmo a abolição foi fruto de movimentos sociais que pressionaram politicamente, sim, mas, pondera o autor, se concretizou fundamentalmente porque a escravatura se opunha à racionalização do sistema produtivo, impedindo que a força de trabalho vigesse como capital variável. Décadas antes, a lei de terras de 1850 já havia marcado a sina dos libertos à margem da sociedade.
A superação da escravatura, portanto, não extingue a aporia: renitem nossas imensas desigualdades sociais, raciais e de gênero acerca das quais os liberais não se pronunciam. Estes, quando muito, engasgam com o osso roído da “meritocracia” e de uma vaga noção de “igualdade de oportunidades” que simplifica o debate. “Nada mais parecido com um conservador do que um liberal” – dizia o bordão-síntese do quadro ideológico do Segundo Império. Um liberal genuíno como Joaquim Nabuco, por exemplo, se viu como carta fora do baralho; embora abolicionista, uniu-se aos monarquistas contra os republicanos anti-abolicionistas. Tudo do avesso ou tudo em seu lugar?
A escravidão foi a instituição fundamental do Brasil. Dela derivaram: 1) o que Paulo Sérgio Pinheiro chamou de “autoritarismo socialmente implantado”, o primado do arbítrio e da violência como mediação dos conflitos ordinários fora das instituições públicas; 2) a “superexploração do trabalho”, fórmula com que Ruy Mauro Marini caracteriza nosso capitalismo. A estruturação de uma ordem competitiva entre classes econômicas no Brasil, bem como de um espaço público habitado por cidadãos iguais, esbarrou no passivo estamental de uma sociedade com quatro séculos de escravidão.
Igualmente perniciosa é a relação entre liberalismo e favor. Maria Sylvia de Carvalho Franco em seu magistral, Homens Livres na Ordem Escravocrata (1969) chama a atenção para a multidão de homens pobres que flutuavam pela entre a casa-grande e a senzala. São os tropeiros, vendeiros e agregados em geral, uma não-classe. Sua impossível colocação social autônoma e sua descartabilidade produtiva os mantinha encerrados à dependência e grata sujeição ao “nhô”, ao “coronel”. O indivíduo pobre e livre atava-se ao senhor num esquema de prestação e contraprestação de serviços e favores, uma troca de pão e proteção. Trabalho manual e jagunçagem em troca de terra para morar, por exemplo. Não raro, ainda se alegrava em dar o filho para ser batizado pelo patrício, estabelecendo assim, um dito “compadrio”. É disso que decorre um tipo de “dominação pessoal” baseada em “associações morais e ligações de interesses”, diz Franco. Por isso, endossando a análise da socióloga, Roberto Schwarz concebeu o favor como uma espécie de “mediador universal” no Brasil, papel cumprido pelo dinheiro na Europa.
À sua maneira, a convivência entre liberalismo e favor também é autoritária porque opera em um registro pré-contratual das relações sociais, enclausurando no privado aquilo que é público; opondo o direito ao costume, o universal ao particular, endividando moralmente o favorecido e estabelecendo o paternalismo-clientelismo. O favor tende à acomodação ideológica porque dissimula a hierarquia, mas nem por isso deixa de ser avesso à ratio particular de uma sociedade de tipo contratual-democrática: “Aí a novidade: adotadas as ideias e razões europeias [o liberalismo], elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente “objetiva”, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor” (Schwarz, Ao vencedor as batatas, 1977, p.18).
Não é à toa que Roberto Schwarz invoca a ironia machadiana. As classes dominantes e sua claque de liberais bem intencionados são todos Brás Cubas, “defuntos arrogantes”. Não, não é por conta de sua fidalguia esculhambada e cafonice, mas, alerta Schwarz, por sua atitude volúvel. Eles vacilam entre o credo a que aderem e aos deuses que adoram: defendem o liberalismo, mas praticam o escravismo; defendem o liberalismo, mas antepõem o favor ao direito; defendem a igualdade social, mas são contra ações afirmativas; defendem a “modernidade”, mas acham normal um teto de gastos antissocial; defendem a cidadania, mas ao invés de registrarem a empregada doméstica, exercem seu cristianismo doando-lhe roupas velhas.
Mas se esse liberalismo requentado não nos serve, como suprimi-lo como discurso e programa que goza de relativo respaldo em amplos setores nacionais? A tarefa da crítica no Brasil permanece a mesma: desarmar a “comédia ideológica” do liberalismo.
Para isso há muito o que se fazer, mas de pronto cabem duas coisas: 1) exigir mudanças agora. 2022 está muito longe e pode não chegar para muita gente. É hora de pôr os críticos moderados na parede; 2) oferecer um programa de restauração de direitos, defesa das prerrogativas do Estado e reforço cultural de todo anti-elitismo possível. De nada adiantará derrotar Bolsonaro e não reverter o teto de gastos, a reforma trabalhista, a vulnerabilização social que torna direitos em privilégios.
Às margens do bicentenário da Independência, o lugar-Brasil nos pede, mais do que originalidade, a resoluta afirmação de ideias intransigentes com qualquer balanço volúvel que até hoje tem caracterizado a atitude dos dominantes e a própria anacronia do liberalismo importado ante o abismo social nacional. 2022 não pode ser nossa capitulação à ideia de gerir a barbárie ou uma “reconciliação” impotente. Todos os que têm voz na sociedade civil, incluídos os presidenciáveis da (centro)esquerda, devem demarcar claramente o debate e apontar para um futuro de dignidade, sem medo do “mercado”.
Romper com a hesitação é o primeiro passo para desfazer esse Brasil estamentalizado. Para essa tarefa, a liberdade tem que ser aliada da igualdade, e não sua rival.
Notas
[i] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/03/bolsonaro-expoe-autoritarismo-de-neoliberais-e-nova-jornada-de-otarios-de-liberais.shtml
[ii] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml
[iii] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/03/bolsonaro-expoe-autoritarismo-de-neoliberais-e-nova-jornada-de-otarios-de-liberais.shtml
Referências
Roberto Schwarz. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades / Editora 34.
Vítor Queiroz de Medeiros é mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP).