Um motorista de aplicativo é um empreendedor ou um trabalhador em uma situação precarizada? O debate, estimulado por uma matéria do programa “Fantástico”, da Rede Globo, tomou a internet desde a noite de domingo (12). De um lado, os que dizem que os motoristas são explorados pelas empresas. De outro, os que consideram que são donos do próprio negócio.
A questão é polêmica até mesmo entre especialistas. Para alguns, considerar estes profissionais empreendedores é uma deturpação do conceito de empreendedorismo. Para outros, o fator de risco ao qual eles se submetem permite classificá-los como tal.
Classificação tem ‘cunho político’
Clemente Ganz, diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), vê dificuldade em classificar esta “nova classe” de profissionais: não são empreendedores, tampouco se enquadram nas formas mais “clássicas” de trabalho.
“É uma situação anômala a tudo aquilo que relacionamos com trabalho. O motorista não é exatamente um autônomo, pois não há vínculo, ao passo que também não entra na relação assalariada clássica. Diria que é a expressão das novas ocupações, que precisam ser interpretadas no contexto atual, com cenário de forte desocupação”, afirmou.
Segundo ele, a associação do termo ao empreendedorismo tem cunho político, pois transfere a responsabilidade da empregabilidade para o trabalhador.
É a pessoa dizendo para o desocupado: vire-se para gerar um posto de trabalho. Então, fala em empreender, quando, na verdade, ele não tem controle algum. Não controla preço, não controla que passageiros vai pegar. Quem define é o aplicativo. Que autonomia ele tem? Empreendedor tem de ter autonomia.
Clemente Ganz, diretor técnico do Dieese
Não é um negócio próprio e duradouro
Para Marcus Quintella, coordenador do MBA de Empreendedorismo da FGV (Fundação Getulio Vargas), a classificação do motorista de aplicativo como empreendedor não se sustenta, pois empreendedor é alguém que cria um negócio e pretende perpetuá-lo.
O aplicativo já é um negócio estabelecido. Ele [o motorista] não criou nada, não está empreendendo, arriscando. Na grande maioria dos casos, aliás, esta opção vem como algo temporário. Ele está ali por certa razão, mas não pretende perpetuar [a situação], não quer estruturar um negócio. Logo, não é empreendedor.
Marcus Quintella, da FGV
Usar o termo empreendedorismo, para ele, é fruto de uma confusão de conceitos. “Empreendedor é alguém que monta um projeto, cria a empresa, assume o risco, investe e perpetua o seu negócio. Assim que ele der certo, vira empresário. Empreendedor é esta fase”, disse. O empreendedorismo, segundo ele, compreende um tempo em que só há investimento, sem lucro.
Qual é o empreendedor que instantaneamente começa a faturar dinheiro de um dia para o outro? Eu não conheço. Você tem de recuperar capital. No aplicativo, se começar hoje, amanhã o dinheiro está na conta. É mais uma maneira de sobrevivência, de renda instantânea, não de empreendedorismo.
Marcus Quintella, da FGV
Preço é definido pelo mercado
Para Guilherme Fowler, professor do Insper, o motorista de aplicativo pode, sim, ser comparado a um empreendedor por um motivo central: ambos assumem riscos quanto ao exercício do negócio. “Ele é um indivíduo que olhou a oportunidade, estabelecida por meio de uma plataforma, e decidiu ingressar em busca de ter lucro na condição de incerteza. Ele não sabe quantas pessoas vão chamá-lo ou se vai ter clientes de fato ou não”, afirmou Fowler.
O pressuposto básico, para ele, é que os aplicativos são plataformas de tecnologia, como afirmam ser, e não empresas que contratam motoristas. Por isso, Fowler vê liberdade de escolha de quando e quanto se trabalha e diz que o preço, no fim, não é definido pelo aplicativo, mas pelo mercado, como em qualquer outro negócio.
Quando você abre um negócio, está operando sujeito às leis econômicas. Quem define o preço é o mercado. Da mesma forma, o motorista não consegue definir seus valores, mas define o quanto trabalha para chegar ao patamar que deseja. Não é muito diferente de um pipoqueiro, no limite, mas é o oposto de um trabalhador assalariado, por exemplo.
Guilherme Fowler, professor do Insper
Crise atrai motoristas, não o risco
A questão do risco não é consenso. Para Wilson Amorim, professor de Administração da FEA-USP, o risco assumido pelos motoristas não se equipara ao de ter um negócio.
Eles não correm o risco de um empreendedor, correm os riscos de quem está no mercado de trabalho. É um risco de ocupação, não de negócio.
Wilson Amorim, da FEA-USP
É o que ele chama de “fluxo de trabalho”, quando alguém tem um emprego estável e, em meio à crise, perde e não consegue retomá-lo. Esta pessoa procura, então, uma modalidade que lhe sustente.
“O aplicativo oferece trabalho a quem quiser contratar este trabalho. Em um momento de crise profunda no mercado, com mudanças na legislação trabalhista, ele adere [ao serviço]. Mas não tenho dúvida que é uma pequena minoria [de motoristas] que faz porque gosta ou porque trabalha a hora que quiser, eles fazem porque precisam —diferente do empreendedor”, disse Amorim.
Legislação ainda debate como tratar motorista
O debate sobre qual é a relação da Uber com os motoristas é pauta nos tribunais trabalhistas do mundo todo. Na Califórnia (EUA), por exemplo, a Justiça obrigou o aplicativo a considerar os motoristas como funcionários. No Brasil, houve decisões neste sentido, mas o entendimento do STJ (Superior Tribunal de Justiça) é que o motorista não tem vínculo com a empresa , o que pode fortalecer o olhar de empreendedorismo.
“Tem várias perspectivas de enxergar e elas são complexas mesmo. Pelo mundo, a questão ainda está sendo debatida”, afirmou Ivandick Rodrigues, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Eu acho difícil falar como empreendedor porque, quem não tem os meios de produção, como teria o dono de um negócio, é empregado. E o motorista não tem essas liberdades: é o aplicativo que define sua forma de prestar serviço e o preço a ser cobrado por ele.
Ivandick Rodrigues, do Mackenzie
Além disso, disse o advogado trabalhista, o cliente tem o serviço prestado pelo motorista, mas lida apenas com a empresa.
Se você vai reclamar, reclama para quem? Quando você paga, paga para quem? Para o aplicativo. Logo, lembra mais relações de emprego entre motorista e empresa do que empreendedorismo.
Ivandick Rodrigues, do Mackenzie
Fonte: UOL
Texto: Lucas Borges Teixeira
Data original da publicação: 13/01/2019
Nem fazia ideia do quão rico é o seu conteúdo até entrar para ler o seu texto. Vou começar a acompanhá-lo. Fique com Deus e continue com esse trabalho maravilhoso