Morrendo para trabalhar

A maior parte da Europa e todos os cinquenta estados dos EUA estão em vários estágios de “reabertura”. Mas por que exatamente?

Robert Reich

Fonte: Carta Maior, com Site do autor
Tradução: César Locatelli
Data original da publicação: 28/05/2020

A pandemia ainda está conosco. Após os primeiros passos tentativos para facilitar o bloqueio na Alemanha – o país europeu de grandes dimensões de maior sucesso para deter a propagação do vírus graças a testes massivos – a doença mostrou sinais de propagação mais rápida.

Pelo menos a Alemanha está abrindo lentamente e aguardando até que quase não ocorram novos casos por lá, assim como o resto da UE.

Por outro lado, os Estados Unidos – com a maior taxa de mortalidade e a resposta mais a esmo à Covid-19 de qualquer nação avançada – estão abrindo caoticamente, cada Estado por si mesmo. Alguns estados estão suspendendo as restrições da noite para o dia, embora tenham sido realizados relativamente poucos testes para o vírus.

Os pesquisadores preveem que a reabertura cause milhares de mortes adicionais.

Duas semanas depois que o governador do Texas, Greg Abbott, começou a reabrir a economia, seu estado experimentou o maior aumento de casos desde o início da pandemia. Desde que Nebraska reabriu em 4 de maio, os casos de Covid-19 no Condado de Colfax aumentaram 1.390%

Especialistas alertam que Dallas, Houston, a costa de ouro do sudeste da Flórida, todo o estado do Alabama e vários outros lugares no sul, que reabriram rapidamente suas economias, estão em perigo de uma segunda onda de infecções por coronavírus nas próximas quatro semanas.

Na semana passada, a Ford Motor reabriu suas grandes montadoras na América do Norte. No dia seguinte, a Ford fechou e reabriu sua fábrica de Chicago duas vezes em menos de 24 horas depois que dois trabalhadores deram positivo para o Covid-19. Em seguida, a Ford fechou temporariamente sua fábrica de caminhões em Dearborn, Michigan, depois que um funcionário deu um resultado positivo e, em seguida, reiniciou imediatamente as operações.

Então, por que “reabrir” tão abruptamente, quando o Covid-19 continua a reivindicar vidas?

A principal razão apresentada é fazer com que a economia se mova novamente. Mas isso obriga a questionar qual a razão da economia existir em primeiro lugar, além de promover o bem-estar das pessoas dentro dela.

As duas fábricas da Ford são vitais para sua lucratividade, e a lucratividade da Ford é importante para os empregos no Centro-Oeste. Mas certamente o bem-estar dos trabalhadores da Ford, suas famílias, o povo de Chicago e Dearborn e outros no Centro-Oeste são mais importantes.

Um argumento relacionado é que os trabalhadores estão clamando para voltar ao trabalho. “As pessoas querem voltar ao trabalho”, afirmou Trump repetidamente desde março. O apresentador da Fox News, Sean Hannity, afirma que as pessoas estão “morrendo de vontade de voltar ao trabalho”, aparentemente inconsciente da ironia de suas palavras. [“dying to get back to work” pode ter o duplo sentido de “morrendo por voltar ao trabalho” ou “morrendo de vontade de voltar ao trabalho”]

Pesquisas sugerem o contrário. Os norte-americanos cujos empregos exigem que eles saiam de casa expressam receio em fazê-lo; 60% temem expor suas famílias ao COVID-19.

Muitos americanos precisam voltar ao trabalho porque precisam do dinheiro, mas esse não precisa ser o caso. As economias ricas podem apoiar seu povo por anos, se necessário. Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos fecharam a maior parte de sua economia por quase quatro anos.

O obstáculo no momento é a falta de vontade política de prover esse apoio, pelo menos até que testes e rastreamentos suficientes forneçam evidências razoáveis de que a pandemia está contida.

Embora quase metade de todas as famílias norte-americanas relatem que perderam renda no emprego desde meados de março, os benefícios adicionais de desemprego promulgados pelo Congresso estão apenas começando a chegar. Tanto Trump quanto o líder da maioria no Senado republicano, Mitch McConnell, se recusam a estendê-los além de 31 de julho, quando estão programados para terminar.

Enquanto isso, os estados estão negando benefícios àqueles chamados de volta por suas empresas.

Por fim, Trump e seus operadores argumentam que reabrir é uma questão de “liberdade”. Ele conclamou os cidadãos para “libertarem” seus estados das restrições da saúde pública, e as personalidades da Fox News criticaram o que chamam de negação de “liberdades básicas”.

Manifestantes armados invadiram a sede do governo do estado de Michigan, exigindo a “liberdade” de trabalhar. Na sede do estado de Kentucky, os manifestantes gritaram “Queremos trabalhar!” e “Somos cidadãos livres!”

Mas a suposta “liberdade” para trabalhar é uma piada cruel quando as pessoas são forçadas a escolher entre colocar comida na mesa ou arriscar suas vidas. É a mesma ideologia perversa que colocava os trabalhadores em risco, no início da era industrial, quando os barões ladrões exigiam que os trabalhadores fossem “livres” para trabalhar em fábricas perigosas doze horas por dia.

Na verdade, não há boas razões para reabrir quando a pandemia ainda está em fúria – nem para colocar economia em movimento, nem por que os trabalhadores clamam para voltar ao trabalho, nem pelo custo do apoio estendido à renda, nem por que os trabalhadores devem ser “livres” para se colocarem em risco.

Sejamos claros. A pressão para reabrir a economia vem de empresas que desejam retornar à lucratividade e de Trump, que quer concorrer à reeleição em uma economia que pareça estar se recuperando.

Nenhuma dessas é razão suficiente.

Robert Reich é um economista, professor, autor e comentarista político americano. Serviu nas administrações dos presidentes Gerald Ford, Jimmy Carter e Bill Clinton. Foi secretário do Trabalho de 1993 a 1997. Foi membro do conselho consultivo de transição econômica do presidente Barack Obama.

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